Doclisboa 2023 | The World Today e Redes, recriações humanistas no mundo da docuficção
No âmbito da retrospectiva “O Documentário em Marcha: Conturbados Anos 30 na América do New Deal”, e numa sessão na Cinemateca Portuguesa, foi possível ao público do Doclisboa 2023 assistir às curtas “The World Today: Sunnyside: The Second Battle of Long Island” e “The World Today: Black Legion” (ambas com produção NYKino) e ainda à longa metragem “The Wave” (com realização de Emilio Gómez Muriel e Fred Zinnemann, e supervisão e argumento de Paul Strand).
Isto numa sessão com direito à apresentação do aclamado documentarista nova-iorquino Tom Hurwitz.
O ciclo Documentário em Marcha – possível com a colaboração da Fundação Luso-Americana para o desenvolvimento e o apoio do Departamento de Cinema do MoMA – programa, no DocLisboa – Festival Internacional de Cinema, um conjunto de filmes que retratam a Grande Depressão nos EUA e no continente americano, a partir das sensibilidades bastante peculiares de um grupo de cineastas ‘radicais’ que tinham por objectivo impulsionar a criação de um novo documentário social.
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Revolucionários e incendiários em natureza, estes filmes exibidos no Doclisboa não só procuram fomentar valores socialistas e sindicalistas, como recorrem aos princípios da montagem soviética para, de uma forma simbólica e não sequencial, criar significado e também urgência no âmbito das imagens apresentadas (aqui, a criação de significado de acordo com a estética Eisensteiniana é notável, particularmente no grandioso “Redes”).
Estas produções funcionam como cápsulas de memória, e por muito que a linguagem fílmica empregue possa ter evoluído, caracterizam-se através da sua universalidade e atemporalidade, bem como através do seu carácter lírico (ainda mais notável, em primeiro plano, ao falarmos de “Sunnyside” e “Redes”.)
E o que é que fez “The World Today: Sunnyside”(1934), “The World Today: Black Legion” (1937) e “The Wave” ou “Redes” (no espanhol original, 1936) acabarem programados nesta mesma sessão do DocLisboa? Não apenas o facto de terem inicialmente sido programados em conjunto nos anos 30, nem somente a sua forte orientação social e sentido de justiça partilhados, mas acima de tudo o seu carácter de recriação, que não torna as imagens projetadas por isso menos poderosas. Todos eles baseados em eventos históricos, estes filmes trazem para o ecrã, em versões ficcionalizadas, eventos reais dos conturbados anos 30 no continente americano.
“The World Today: Sunnyside: The Second Battle of Long Island”, curta que totaliza 8 minutos, nunca antes exibida comercialmente em Portugal ou na Cinemateca, é apresentada na Folha de Antonio Rodrigues como “um raro documento”. Esta é uma pequena obra empolgante que nos apresenta um grande ato de resistência, na comunidade de classe média de Sunnyside, Long Island, retrato máximo da “Americana”, perturbada por ordens de despejo recorrentes aquando da inflação galopante.
Uma recriação à falta da existência de um retrato no aqui e agora dos eventos, “The World Today: Sunnyside” foi escrito, pensado e encenado por verdadeiros habitantes desta comunidade, a qual se amotinou de tal forma contra os despejos ordenados, que acabou por conseguir, por via da ‘desordem social’, garantir a preservação de parte dos seus alegados direitos inalienáveis – como o direito à habitação.
Este retrato foi exibido com uma qualidade imagética um pouco deficitária (mediante aviso prévio), à conta da raridade deste documento histórico. Deste lado, foi um prazer assistir a uma recriação curta mas poderosa, em película, e no conforto da sala escura.
Por outro lado, “Black Legion” a outra obra da saga “The World Today”, que acabou por contar apenas com estes dois capítulos, foi significativamente mais popularizada na época, apresentando uma especulação acerca da acção nefasta de um grupo do KKK. Prestando-se a questionar e colocar em ênfase a ascensão dos fascismos nos EUA desta época, “The World Today: Black Legion” pode não partilhar da emotividade e grandiosidade dos outros dois filmes exibidos nesta sessão, mas não deixa por isso de se elevar como documento histórico valioso.
E, por fim, a “jóia da coroa” (salvo seja) desta exibição no âmbito do Doclisboa 2023 é mesmo o poderoso “The Wave”, ou “Redes” (drama mexicano realizado por Emilio Gómez Muriel e Fred Zinnemann, este segundo um discípulo de Robert Flaherty (habitualmente visto como o pai do documentário, realizador de “Nanook of the North”).
De acordo com a folha da cinemateca, “Redes” foi em tempos um clássico das cinematecas e cineclubes. Tal classificação é meritória, sendo esta recriação uma percorrida por uma poética notável e por um crescendo no seu dramatismo.
“Pensada como documentário, esta ficção apresenta pescadores locais no Golfo do México a interpretar o drama da exploração do seu trabalho. Inspirada no cinema soviético e prefigurando o neo-realismo, foi uma inspiração para os cineastas da Esquerda nos EUA.”
Uma obra extremamente bela, “Redes” abunda em metáforas e símbolos. As dicotomias estão em toda a parte, entre os pescados e os pescadores, entre os exploradores e os explorados, entre aqueles que manuseiam a foice e aqueles que a controlam. Neste filme, iniciativa da Secretaria de Educação do México, vemos uma recriação de uma revolta de pescadores que aconteceu perto de Vera Cruz, como detalhado na respetiva Folha da Cinemateca.
Como nos reforça Antonio Rodrigues, este é um filme “ancorado numa realidade precisa”. É este carácter que o eleva, como docuficção preciosa que espelha um sentido de injustiça devastador, à medida que assistimos à rebelião em defesa de um preço justo a ser pago pelo peixe pescado (que mais tarde seria vendido na capital e noutros centros urbanos, bem longe da vila piscatória retratada).
Extremamente pujante, a montagem inspirada na Soviética, como aliás havíamos já identificado de forma clara em “The World Today: Sunnyside”, contribui ainda mais para a acentuada emotividade da narrativa. Quase epopeico em natureza, este filme tem por força catalisadora o pai Miro, um herói do quotidiano (e um mártir). Este é o único crédito de ator que encontramos em nome de Silvio Hernández. Assim se prova, uma vez mais, o poder do documentário, e da docuficção – capaz de extrair performances únicas e irrepetíveis, carregadas de emoção, de atores não profissionais.
De “Redes” ou “The Wave” recordaremos, com entusiasmo, o gesto audaz de conceder um carácter épico à atividade destes pescadores. Porque a alegada mundanidade pode ser extraordinária, basta saber apresentá-la.
Em 2023, O Doclisboa chega a várias salas da capital entre os dias 19 e 29 de outubro. Estás a acompanhar a programação?
