Armand, a Crítica | Renate Reinsve é uma estrela em ascensão
A atriz norueguesa Renate Reinsve continua a consolidar o seu estrelato com “Armand,” primeira longa-metragem com assinatura de Halfdan Ullmann Tøndel.
Não é fácil para ninguém viver na sombra dos seus pais, avós, outros antepassados. Para o artista que emerge de uma linhagem famosa, essas dificuldades redobram, com expetativas altas e comparações constantes, a noção de que jamais chegarão aos calcanhares daqueles que vieram antes e que todos os seus esforços serão derivativos. Ou seja, não invejamos o fado de Halfdan Ullmann Tøndel, neto de Ingmar Bergman e Liv Ullmann. De facto, quando a sua primeira longa-metragem, “Armand,” estreou no Festival de Cannes do ano passado, raro foi o texto que não mencionou estas associações familiares do realizador. São essas as desvantagens do nepotismo.
Tøndel pouco se ajuda com os temas, modelos e abordagem escolhidas. Afinal, este é um drama escandinavo que se poderia caracterizar como chamber piece, sobre relações interpessoais tensas, filmado em película com grande ênfase no grande plano como sua principal estratégia visual. O trabalho de ator é o alicerce do trabalho, impondo-se até sobre a dramaturgia e fazendo da face a mais magnífica paisagem de todas. Por outras palavras, o tipo de projeto que, noutros tempos, teria sido levado à cena por Bergman. Ou até por Ullmann que, em fases mais tardias da carreira, passou da frente para trás das câmaras.
As comparações são ingratas e fazem com que “Armand” pareça simultaneamente mais do que é e menos também. Na vertente positiva, temos o peso dos nomes e dos legados que Tøndel carrega consigo, capazes de fazer qualquer obra menor parecer mais grandiosa, mais completa e merecedora de atenção. Pelo lado mais negativo da questão, é difícil não deduzir que os avós do realizador teriam feito muito melhor trabalho, caindo em menos superficialismos e vícios do principiante com algo a provar. Até nas suas obras menos bem conseguidas, seus primeiros trabalhos esquecidos, Bergman tinha uma mestria notável do meio cinematográfico.
O cinema na sombra de Bergman.
Perante tal grandeza, o neto é uma nulidade. Por outro lado, estas ligações são uma projeção do espectador, do crítico, do erróneo e do ingrato. Na mesma medida em que Tøndel invoca a memória de Bergman e Ullmann, também foge delas. Temas aparte, a linguagem visual de “Armand” está mais próxima de um cinema à la Cassavetes ou até Dardenne. O retrato de faces tem lugar de primazia, mas a câmara é irrequieta e a luz naturalista, até em algumas passagens de gosto duvidoso que puxam o drama na direção de um cinema entre o real e o hiper-real, no limiar do sonho, talvez da loucura exteriorizada.
Será a loucura de Elisabeth, a mãe solteira e enviuvada de Armand que, com seis anos, é acusado por um colega de o ter agredido sexualmente. Os pais de Jon, esse outro rapaz, reuniram-se na escola para confrontar a senhora com o auxílio de uma série de funcionários e pedagogos, intermediários ineficazes que só conseguem mesmo atirar achas para a fogueira. Ao longo de uma tarde cinzenta, o caso torna-se num veículo para a litigação de ressentimentos e histórias antigas, com os elos entre as duas famílias muito mais próximos do que poderia ser imediatamente percetível. Apesar das boas maneiras e silêncios educados, sentimos uma explosão eminente.
Como em muito teatro de alto gabarito, a ação presente existe como reflexo de todo um drama fora de cena, toda uma fricção entre as figuras que há anos coalha e fermenta, somente à espera do momento certo para surgir na sua plenitude destrutiva. Logo aí, vemos um gosto pelo melodrama que contradiz alguma da sobriedade naturalista dos atores e seu enquadramento. O processo pelo qual se introduz uma vertente surreal é subtil na primeira metade de “Armand,” predicando-se principalmente na estranheza desta escola tão vazia, como uma casa assombrada cujos fantasmas, ora são invisíveis ou ainda têm um coração que lhes bate no peito.
Sentimos que Tøndel queria criar a ideia de uma panela de pressão, aumentando a força interior que se remexe nas psiques das personagens, até que a sua exteriorização cénica necessitasse de uma mudança de registos. Esse jogo funciona a nível intelectual, mas, efetivamente, tomba para a brusquidão na segunda metade da fita e jamais faz sentido emocionalmente. Em parte, porque, não obstante a boa direção dos atores, o realizador quase que sufoca o seu elenco e limita até onde podem ir na exploração dos papéis. Renate Reinsve, no papel de Elisabeth, é simultaneamente quem mais sai prejudicada e quem mais este processo beneficia.
Renate Reinsve é uma presença eletrizante.
Por um lado, há algo elétrico na sua raiva, no ultraje de uma mãe em defesa do filho que se apercebe, desde cedo, como todo o sistema está construído contra si. No momento em que o suicídio do marido vem à baila, essa dimensão furiosa ganha mais projeção e parece no limiar de transformar todo o filme em algo mais tenso, mais cruel também. Uma estrela em ascensão do cinema internacional – vejam “A Pior Pessoa do Mundo” e “Um Homem Diferente” – Reinsve seria mais do que capaz de sustentar essa metamorfose, mas Tøndel leva “Armand” e a atriz noutra direção, fazendo-os dançar em coreografias imaginárias que mostram a expressividade física de Reinsve sem, no entanto, coerirem com o seu trabalho até então.
Em certa medida, estamos perante uma grande ideia e premissa, um cineasta com muitas ideias e um elenco exemplar. Combinação de sonho que, mesmo assim, desmorona com pouca disciplina autoral e uma clara falta de controlo tonal. Ou seja, Tøndel não soube como ficar fiel à génese concetual de “Armand” e, lá no fim da primeira hora, começa a perder o fio à meada, sem uma conclusão adequada para o projeto. É uma pena, havendo tanto potencial em jogo e tantos elementos meritosos. Não é só Reinsve quem se destaca dos atores, como já se deve ter tornado aparente. Como a outra mãe, Ellen Dorrit Petersen é quase tão estrondosa, navegando uma severidade total que tanto aliena como revela.
Também se amam os vários atores que interpretam os funcionários da escola, especialmente Thea Lambrechsts Vaulen cujas pontadas de humor são uma boa forma de variar a monotonia sorumbática do exercício. A fotografia de Pål Ulvik Rokseth tem efeitos interessantes sobre as figuras humanas, puxando pela palidez e pele rubra, um contraste com a frieza do cenário, da luz, do sentimento. A compositora Ella van der Woude, por seu lado, tem que manejar os devaneios tardios de Tøndel e fá-lo com grande elegância, quase que justificando os paroxismos à chuva e aquelas danças inusitadas. Enfim, “Armand” é daquelas obras cujas partes são mais fortes que a totalidade do objeto. Talvez no trabalho seguinte Halfdan Ullmann Tøndel faça justiça ao legado dos avós.
Armand
Conclusão
- Na sombra de um legado intimidante, dos avós lendários e toda uma tradição dramática Europeia, Halfdan Ullmann Tøndel vacila, mas não se deixa deitar abaixo. A sua estreia na realização de longas-metragens é promissora, com um punhado de grandes prestações por parte de um elenco extraordinário. “Armand” deixa algo a desejar sem ser, de todo, catastrófico. Só queríamos mais desta angústia escandinava.
- O MELHOR: Reinsve, Petersen, Vaulen.
- O PIOR: Os momentos em que Elisabeth desassocia da realidade e faz o filme cair na mesma psicose, teatralidades extrâneas que ofuscam ao invés de revelar ou aprofundar tudo aquilo que já estava em jogo neste drama.