"Fome de Viver" | © Metro-Goldwyn-Mayer

Fome de Viver | Cinema com Orgulho

Catherine Deneuve, Susan Sarandon e David Bowie protagonizam uma história de vampiros bissexuais em “Fome de Viver.” Também conhecido como “The Hunger,” este foi o primeiro filme realizado por Tony Scott.

Há séculos que o vampirismo se manifesta na arte como um reflexo de sexualidades transgressivas, quebras e contradições da regra heteronormativa. Que fã do terror literário não conhece a “Carmilla” de Joseph Sheridan Le Fanu e seu lesbianismo assumido? E, ainda entre clássicos do século XIX, o “Drácula” de Bram Stoker está cheio de insinuações homoeróticas, uma leitura reforçada por perspetivas modernas sobre as predileções sexuais do autor. Dito isso, estas obras não abordam questões queer de braços abertos, com orgulho e aceitação no seu âmago. Muito pelo contrário. O vampirismo é o vício feito monstro, a sombra que seduz, a queda na tentação.

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Só que a questão não é assim tão simples. Mesmo quando as narrativas seguem as moralidades oitocentistas, há tensões subjacentes nesta equiparação do vampiro e do desejo. Porque, para condenar o mal, os autores rendiam-se primeiro aos seus prazeres e poderiam até usar o engenho da ficção como forma de se expressar a si mesmos, as vontades e verdades mais secretas, a paixão mais proibida. Das páginas para os palcos, para o pequeno e grande ecrã, estas dinâmicas continuam enraizadas no mito vampírico e suas muitas permutações.

Elas incluem “Fome de Viver,” a primeira longa-metragem de Tony Scott, estreada em 1983. Tal como Ridley Scott, seu irmão, o realizador deste conto sanguinário começou a carreira no mundo da publicidade, com especial ênfase em anúncios televisivos. Essa experiência fez dele um perito na criação de imagens impactantes com sublime apelo comercial, grandes feitos estilísticos com qualidades reminiscentes da pop art. Tudo isso está em evidência na sua estreia cinematográfica, a começar com uma primeira cena estrondosa que quase se poderia confundir com um videoclip pronto para passar na recém-nascida MTV.

Overdose estilística, hedonismo cinematográfico.

fome de viver the hunger critica
© Metro-Goldwyn-Mayer

A cena passa-se num clube noturno de clientela gótica, espaço definido por escuridão aveludada e feixes de luz afiada, grades por todo o lado. No meio desta abstração, a câmara encontra uma jaula onde Peter Murphy, o vocalista da banda Bauhaus, nos confronta. Vestido com sombras impenetráveis, face pintada pelos holofotes e maquilhagem burlesca, o cantor olha diretamente para a audiência e quase nos convida a mergulhar no seu imaginário obscuro. Parece saído diretamente do “Gabinete do Dr. Caligari,” um Cesare renascido, pronto a hipnotizar seus espectadores ao invés de ser hipnotizado ele mesmo.

Nisto tudo, entre referências ao Expressionismo Alemão e às modas alternativas, Scott demonstra um controlo absoluto sobre os elementos audiovisuais do cinema. Até a montagem, brusca e discordante com os ritmos da canção “Bela Lugosi’s Dead,” se manifesta como uma provocação visceral contra a audiência. E entre o caos, vamos descobrindo as personagens que a narrativa irá seguir. De momento, elas não são a prioridade dos cineastas, sendo a invocação de uma atmosfera e estética específicas muito mais importantes para a estratégia de Scott e companhia limitada. Contudo, para discutir os méritos desta “Fome de Viver”, convém descrever as figuras.

Trajados de negro, com óculos-de-sol no breu noturno, Miriam e John são vampiros esfomeados, tanto à procura de hedonismos humanos como de sangue neste clube. Ela é a mais forte e antiga dos dois, uma beldade que anda à caça desde o tempo dos faraós e oferece o dom da vida eterna a qualquer amante predisposto à existência vampírica. Assim aconteceu com John, um prodigioso violoncelista que ela encontrou algures em França, no século XVIII. Agora em Nova Iorque, os dois seduzem casais góticos, rasgam-lhes as gargantas e bebem até à fome sobrenatural saciar. Quem viu a quinta temporada de “American Horror Story” já viu os ecos da sequência de abertura.


Nem tudo é idílico para os dois predadores, pois a bênção da vida eterna é também uma maldição. Ultimamente, John tem sofrido de insónias e o seu corpo parece estar a sofrer um envelhecimento repentino, acelerado, fulminante. Ciente do definhar do seu consorte, Miriam já está de olhos numa estudante de música que pretende convidar para a sua cama, mas John mata-a numa tentativa desesperada de sustentar uma vida eterna sem juventude a condizer. Este dilema também leva o casal assassino a interessar-se nos estudos da Dra. Sarah Roberts acerca da degeneração celular em primatas. Quiçá ela tenha a cura para a velhice em humanos e vampiros.

Nada disto é óbvio para quem vê “Fome de Viver” pela primeira vez, pois o filme, adaptado de um romance de Whitley Strieber, desenrola-se numa lógica meio alucinatória. Testemunhar as suas maravilhas é sucumbir a um transe narcotizado, ora embalado pela beleza cénica ou chocado por píncaros de violência. O fado trágico de John, mais ou menos a meio da fita, é a prova máxima destes peculiares estilos. Acontece numa contração temporal, uma visita a Roberts que entrecorta o vampiro cada vez mais decrépito com as experiências cruéis que o laboratório perpetra com macacos. As imagens chegam ao ponto de enjoar, tão gráfico é o horror.

No fim, de regresso aos braços de Miriam, John é carregado pela companheira até uma prisão secreta do palacete urbano. Lá ficam os restos imortais dos amantes, em sofrimento para a eternidade. Scott tudo filma como uma ópera, os cenários em crescente exuberância, cada plano uma nova pintura em movimento. O melhor de tudo é o trabalho de Catherine Deneuve que, até então, tinha retratado Miriam com um estoicismo absoluto, sublimando o erotismo da proposta na persona de uma rainha do gelo. Mas neste momento de perda, ela desfaz-se em lágrimas, puxando pela angústia da personagem e sua monstruosidade em igual medida.

Catherine Deneuve nunca esteve tão bela.

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© Metro-Goldwyn-Mayer

Trata-se de um dos trabalhos mais notáveis de uma atriz já habituada a ser exaltada enquanto monumento iconográfico em filmes de autores tão variados como Demy, Polanski e Buñuel. Ao seu lado, David Bowie é uma revelação menor, mais forte pela sua presença andrógina, pelo caché cultural que traz consigo. A peça final deste elenco é Susan Sarandon no papel de Sarah, a única mortal do trio e novo alvo dos afetos de Miriam. Com John fora de cena, “Fome de Viver” torna-se num obsceno jogo de gato e rato, onde a caçada toma a forma de deslumbramento. Infelizmente para Miriam, inebriada pela sua própria solidão, tentar vampirizar uma gerontologista é perigoso.

Uma leitura conservadora do texto poderá posicionar Sarah como uma heroína em oposição ao monstro bissexual, sua vitória marcada pelo inevitável retorno à vida heterossexual. Quiçá essas tenham sido as intenções de Scott, mas um filme, como qualquer objeto artístico, só pertence ao seu autor até certo ponto. Na perspetiva do espectador, todo o engenho cinematográfico nos seduz e puxa para o pesadelo psicossexual e profundamente melancólico de Miriam. Para fãs do terror, este monstro é especialmente encantador e os devaneios mais explícitos com as duas atrizes são irresistíveis no jeito de sexploitation.

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“Fome de Viver” é assim um triunfo sensualista, seu estilo tão excessivo que avassala o argumento e lhe altera os propósitos. Por isso, pedimos uma salva de palmas para os vários artistas que contribuíram para o milagre, começando pelo diretor de fotografia Stephen Goldblatt, um mago das sombras e do anti-naturalismo. Os figurinos de Milena Canonero e todo o aparato da maquilhagem negoceiam entre as qualidades de um editorial de moda e os valores mais lúgubres do terror. Catherine Deneuve nunca esteve tão bela e o corpo de Sarandon jamais foi filmado com maior reverência. Depois temos os cenários de Brian Morris, cada espaço uma nova irrealidade, sempre a guiar os olhos para possibilidades carnais. Quem é que consegue resistir a esta sedução? Nós não!

Podes encontrar esta “Fome de Viver” na Apple TV, disponível para compra digital. Vale a pena beber a ambrósia vampírica deste filme de terror.



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