Homem com H – análise
Em “Homem com H,” o realizador Esmir Filho conta a história de Ney Matogrosso, orquestrando uma cinebiografia arrojada, de ousadia incomum. O filme foi um fenómeno no Brasil e agora está disponível na Netflix.
O cinema mainstream atual tem um vício muito mau, capaz de levar o cinéfilo sério a um cenário de crise completa. Trata-se daquela mania das cinebiografias, especialmente as que retratam músicos. Exercícios em imitação corriqueira, estas produções parecem mais preocupadas em agradar aos fãs do que a funcionar enquanto cinema, mais semelhantes a dramatizações de páginas da Wikipedia do que explorações dignas de figuras da vida real. Há tantos exemplos, ainda mais tristes quando o artista é arrojado, quase revolucionário, mas depois a fita é um poço sem fundo de convenções. Parece quase traição dos seus supostos heróis.
Mas enquanto fizerem dinheiro – e costumam ter lucros bem elevados – ou ganharem prémios – e ganham muitos – Hollywood não vai deixar de investir em mediocridades assim. Por isso mesmo, há que celebrar quando nos aparece um projeto que, sem deixar de seguir este modelo, se consegue elevar acima do degredo vulgar. “Homem com H,” conhecido como “Latin Blood – The Ballad of Ney Matogrosso” no mercado anglófono, é uma dessas exceções que provam a regra. E que maravilhosa exceção, um verdadeiro milagre nos cânones do subgénero, chegado à Netflix mesmo a tempo do Dia do Cinema Brasileiro e em pleno Mês do Orgulho.
Realizado por Esmir Filho e com Jesuíta Barbosa no papel principal, o filme considera a vida de Ney Matogrosso, artista sem igual, consagrado pela imprensa internacional como uma das grandes vozes na História da música no Brasil. Sua história começa numa meninice sofrida, realidades familiares a muita gente queer nascida em contextos conservadores. Ainda mal o filme respirou e já o pai de Ney o recrimina pela sua feminilidade, pelo modo como foge à ideia paterna de masculinidade. O momento é horrível, culminando com gritos e o despir forçado do miúdo em jeito de humilhação. No entanto, ele nunca chora, nem mesmo quando o pai furioso lhe exige as lágrimas.
Essa resiliência vai segui-lo até à vida adulta, mas também há algo de desafiador nos olhos do rapaz. Mais à frente, em concerto para a TV, o olhar regressará, uma provocação para câmara. Há nos olhos, jovens e adultos, uma chama abrasadora, vontade de lutar pelo direito de existir como é. E essa luta faz-se com o mero ato de existir, sem pedir desculpas, em resistência contra aqueles que exigem a submissão perante os bons costumes. Obviamente, o pequeno Ney não articularia as coisas dessa forma. De facto, sem insistir demasiado no assunto, “Homem com H” salienta os primeiros passos no autodescobrimento em tempos meninos, inclusive o despertar de um certo gosto pela teatralidade e pela performance.
O filme faz jus à glória de Ney Matogrosso.
Acontece com o vislumbre de uma cantora vestida de fantasia pintada, o burlesco em padrões de leopardo e ares folclóricos. Daí vêm as vontades de imitar, mas também de capturar o objeto da obsessão em desenho, para grande transtorno do pai. Nenhum filho seu será artista dizia ele – como se alguém pudesse parar a ascensão de Ney Matogrosso. Enfim, estes confrontos traçam logo um dos temas principais da fita que, ao contrário de muito biopic por aí, quer explorar os conceitos sugeridos pelo seu sujeito e não só verbalizar a coisa em diálogos clichés. Neste caso, trata-se de reflexões sobre masculinidades em fluxo, espelhadas, elas mesmas, por um Brasil também ele em transformação histórica.
Nos primeiros anos da vida adulta, em tempos de ditadura, encontramos Ney num contexto militar e Esmir Filho cai num apelo imagético ao “Beau Travail” de Claire Denis. É uma escolha perversa que rima o poderio nacionalista com o desejo marginalizado do homem que ama outros homens. Tanto o opressor como o oprimido são fascinados pelo corpo masculino, sua forma e musculatura, sua força e capacidade para destruir. Tanto assim é que, em sonho insólito, testemunhamos como a imaginação do jovem invoca as mãos de outros homens, multiplicando-se do nada para lhe tocarem o corpo.
Ao precipício do pesadelo, as contradições coerem e o filme deixa-se inflamar pela paixão. Não é nem o primeiro nem o último momento do género. Pois, à medida que Ney se transforma no Ney Matogrosso que todos conhecemos, “Homem com H” mostra-se fiel à sua ousadia sexual em palco, recusando os pudores com que a indústria gosta de abafar temas eróticos que fujam aos valores heteronormativos. Ou seja, estamos perante um filme queer que não tem vergonha de o ser. Se tanto, atira-nos a carnalidade à cara, foge ao pudor do mainstream e deixa-se levar pelos epítetos de desejo. Jamais estamos perante um retrato que peça desculpas pela sexualidade das suas personagens ou desvie o olhar dos seus corpos.
Viva a luxúria e que se recuperem os melhores valores da pornochanchada! O melhor de tudo é como estes devaneios não são simples elementos de choque. Neles, registamos um brio cinematográfico imenso, desde a fisicalidade de Barbosa e seus companheiros de cena, até à direção de Esmir Filho. Até faz referência à fotografia de Alair Gomes e José Medeiros para acentuar o efeito. Nenhuma cena de sexo é igual à outra, com a variedade manifesta em aspetos tão distintos como os níveis de abstração e a própria tonalidade dramática. Por exemplo, há um sabor cómico numa primeira experiência de penetração sob o olhar atento de Maria Callas. Percebemos toda a relação de Ney com um homem mais velho, a insegurança, a revelia, e a euforia.
Não existe pecado ao sul do Equador.
Noutra ocasião, o espaço físico dissolve-se em trevas para que os dois amantes fiquem isolados num vácuo fantasista, pele suada e beijada por fumo e luz forte, o mecanismo teatral tão participante como os homens despidos. Sexo é dança quando a câmara está envolvida no orgasmo. E a dança transcendo essas vertentes mais hedonistas da história. A fotografia dinâmica de Azul Serra e a montagem assinada por Germano de Oliveira criam a ilusão de um movimento contínuo ao longo das duas horas e doze minutos de “Homem com H.” O efeito é inebriante, cinético in extremis, capaz de energizar algumas partes que podiam, doutra forma, vacilar sob o peso do modelo biográfico. Essa qualidade tem o seu preço, é claro.
Certas passagens manifestam-se apressadas, relações complicadas florescidas e murchas, pisadas e abandonadas, no espaço de uns cortes, dando a impressão de uma narrativa mais superficial do que ela realmente é. Enfim, não se pode culpar só o movimento feroz, sendo que o guião tem muita culpa. O texto deixa Ney demasiado como uma cifra também. Quem não tenha algum conhecimento sobre Matogrosso terá problemas em seguir todo o enredo, ou até no reconhecimento das figuras que aparecem pelo meio, como Cazuza ou João Ricardo dos Secos & Molhados. O que salva tudo isto é a direção e a prestação que dão cor e multidimensionalidade à figura, aprofundando o retrato muito mais do que aquilo presente no papel.
O que o filme não torna explícito com o contar da História, Barbosa fá-lo com a leitura da fala, o mexer da anca, o engolir a seco antes de falar, ou a raiva que por vezes surge em conflito com a censura e com os gostos tradicionais. Pensemos na cena em que percebemos toda uma relação de décadas entre o cantor e as autoridades estatais pelo modo como as recebe, despido, de pernas abertas, coluna arcada numa pose que seria sedutora noutro contexto. Pensemos no desabrochar do romance em passagens tardias, no flagelo da SIDA e o modo como Ney se manifesta contra noções do corpo gay como uma arma, algo sujo, um instrumento da doença, ou razão de culpa. Entre as palavras e o trabalho do ator, é suficiente para fazer chorar as pedras da calçada.
“Homem com H” até tem direito a cena de sexo seropositivo, a intimidade de um casal que se ama até ao fim, ardendo um pelo outro. É belíssimo e um verdadeiro tributo a um artista que não precisa de erguer a bandeira do Orgulho. Afinal, ele é a própria bandeira. E no final, aparece o verdadeiro Ney Matogrosso, a ficção fitando o fato e a perpetuação da sua fantasia. Vemos o verdadeiro artista em concerto em São Paulo no ano passado, coberto de brilhantes e figurino exuberante, pronto a mostrar o peito nu apesar de já estar na casa dos 80. Ele não mudou e sua arte continua tão audaz como sempre, um manifesto da ousadia de viver que aqui tem forma fílmica a condizer. Uma salva de palmas a Ney Matogrosso! Uma salva de palmas a “Homem com H”!! E mais uma salva de palmas a todo o cinema brasileiro!!!
Homem com H
Conclusão:
- Não se sentindo como mulher, mas também contra a regra de masculinidades tradicionais, Ney Matogrosso é um ícone queer e uma lenda viva da musicalidade brasileira. “Homem com H” faz jus ao seu génio, compondo um poema de desejo e provocação carnal que resume a vida do artista a um movimento contínuo, sempre em ascensão meteórica. Trata-se de uma cinebiografia sensualista que foge aos vícios mais constritos do subgénero e se eleva acima de muitos projetos do mesmo estilo. Hollywood jamais produziria algo tão brilhante quanto isto, tão desavergonhado e conta puritanismos.
- A perfeição fica além do projeto, contudo, sendo que a estrutura deixa um pouco a desejar ao mesmo tempo que possibilita uma fluidez admirável. A fita não tem que oferecer explicações, mas arrisca a confusão. Por vezes, quase queremos ver uma versão mais puramente abstrata do mesmo conceito. Talvez fosse ainda melhor.
- Dito isso, “Homem com H” é um trabalho apaixonante, capaz de conter e personificar a euforia de um artista iconoclasta e seu trabalho único, um legado revolucionário que ecoa na contemporaneidade e se mantém tão vital como sempre foi.