Um Encontro Mortal – Análise
“Um Encontro Mortal,” também conhecido como “Strange Darling,” é um dos títulos no ciclo Filmes Para Não Dormir dos cinemas NOS. Este terror realizado por JT Mollner, com Kyle Gallner e Willa Fitzgerald nos papéis principais, é uma caixinha cheia de surpresas.
Durante a década de 70, o género do terror sofreu uma série de transfigurações que, essencialmente, rescreveram os fundamentos deste cinema e o colocara no caminho que segue nos dias de hoje. Por um lado, tivemos o auge do giallo em Itália, fruto de imaginações como as de Argento e Fulci, com violências rebuscadas e alta estilização a puxarem por um entretenimento tão cruel quanto belo. Na América do Norte, entre o Canadá e os EUA, começou a emergir o slasher. Nascido do berço miasmático de “Halloween,” “Black Christmas” e o “Texas Chainsaw Massacre,” o subgénero viria a vingar na década seguinte, dando origem a uma série de franchises.
Em ambos os casos, surgia uma preocupação convergente do sexo e da brutalidade. O giallo muito se apoiou na grotesca mortificação de corpos femininos à mercê de mãos enluvadas por cabedal preto. No slasher, o sexo aparecia como uma espécie de pecado original, algo a ser punido pela narrativa. Assim vieram as noções de uma final girl virginal, tão típica de sagas como a “Sexta-Feira 13.” Mas estas dinâmicas produziram outras tendências, inclusive a moda do rape revenge thriller, onde uma protagonista era violada e depois a restante fita traçava a sua procura por violência sangrenta. “I Spit On Your Grave” será o exemplo mais célebre dessas fantasias.
A História do Terror tem muitos mais capítulos – pensemos na ironia pós “Scream” ou na loucura dos torture porn no início do século XXI – mas essas evoluções de há cinquenta anos atrás são a base para “Um Encontro Mortal.” Na verdade, todo o projeto existe em diálogo com as expetativas do espectador como definidas pelos padrões estabelecidos para o género e seus subgéneros. Da conversa vem a subversão, uma espécie de jogo travado entre os cineastas e sua audiência. As personagens existem mais enquanto signos e significantes do que como pessoas e suas ações são sobretudo motivadas por uma estrutura em que a surpresa suplanta a coerência.
Surpresas, choques e twists para dar e vender.
Dá logo para perceber isso quando uma pessoa é confrontada pela estrutura da coisa. O filme de JT Mollner reparte-se em seis capítulos e um epílogo, estando tudo desordenado para poder brincar com as ideias pré-concebidas de quem o vê. Tudo começa no terceiro capítulo, uma paisagem rural pela qual uma mulher corre desesperada, em fuga de alguém. Nem ela nem o perseguidor têm nome, sendo creditados como “the Lady” e “Demon” respetivamente. Ou seja, são arquétipos sobre os quais é fácil projetar toda uma história. Faz-se isso de forma automática, quase instintiva especialmente se vires dúzias de filmes de terror por ano.
Enfim, a força do hábito inspira uma certa arrogância no fã devoto destes filmes que nos tiram o sono e invadem os pesadelos. Ainda por cima, quando saltamos diretamente para o quinto capítulo, deparamo-nos com o Demónio no fim da perseguição. A casa onde a sua vítima se refugiava está de pantanas e só sobra uma arca frigorífica como esconderijo. Sem piedade, ele dispara, ferindo a vítima, possivelmente acabando com ela – será este um slasher sem final girl? A relação genérica dos sexos onde o homem é encarado como força agressora e a mulher é por ele agredida é sublinhada pela próxima parte. De facto, é o primeiro capítulo.
Nele, somos repentinamente situados num milieu mais específico e desapegado às abstrações do terror cinematográfico. “Um Encontro Mortal” passa-se em Oregon, onde dois estranhos se conhecem para encontros sexuais sem compromissos. Há uma certa tensão no ar, uma negociação que parece tipificar a precariedade das mulheres no campo de batalha sexual dos tempos modernos, especialmente quando vêm fetiches à mistura. É que a “Lady” quer fazer um pouco de teatro sadomasoquista, fingindo ser uma inocente vitimada pela fome de um serial killer. A brincar ela até lhe pergunta se ele é mesmo um assassino – coisa típica de encontro romântico.
Será que a perseguição do início era uma fantasia levada ao extremo? Ou será que, como Eva, esta mulher provou o Fruto Proibido e está a ser castigada pela curiosidade? Haverá uma terceira opção? Mollner tudo isto explora e vira do avesso. Chegado a meio do filme, o realizador-argumentista até inverte a ordem moral com que o espetador se orienta. Há muito divertimento no truque, mas fico na dúvida se a seriedade com que o cineasta encara o texto não faz o exercício tombar na misoginia. Porque, com tanto apelo ao arquétipo e a guerra dos sexos no diálogo, a revelação da monstruosidade feminina em contraste com uma masculinidade sob ameaça deixa um mau gosto na boca.
Será provocação ou misoginia?
As pontadas de humor não ajudam, sempre cruéis e na evidência de um ódio mesquinho por todas as mulheres que aparecem em cena, mesmo aquelas que a própria narrativa nos deixa encarar como danos colaterais inocentes neste jogo de gato e rato. O que ajuda “Um Encontro Mortal” a superar tais fragilidades será o primor da execução, a começar pelas prestações audazes de Willa Fitzgerald e Kyle Gallner nos papéis principais. Este último merece especial aplauso, estando a consolidar o seu estatuto como um dos grandes ícones do terror contemporâneo. Ed Begley Jr. e Barbara Hershey também se destacam, conseguindo vingar a única comédia bem-sucedida da fita.
Mas estes intérpretes não valeriam de nada sem os excessos audiovisuais que fazem deste “Encontro Mortal” um dos mais belos terrores em tempos recentes. A fotografia em película granulosa e cores garridas é especialmente sublime, assinada por Giovanni Ribisi, numa rara transformação de estrela de cinema em mestre da cinematografia. A estilização patente no seu trabalho é suficiente para me fazer reconsiderar as conclusões mais feias do argumento, cortando as ligações entre o conto no grande ecrã e a nossa realidade. O mesmo se pode dizer da música, com muito amor para as canções originais de sonoridade retro que Z Berg escreveu para o filme.
No meu caso, estes formalismos ajudam a elevar “Um Encontro Mortal” acima de projetos semelhantes. Não deixa, no entanto, de ser um daqueles filmes que se admiram sem realmente amar, ou talvez até gostar. Ainda para mais, a busca pelo choque do espectador consegue ser cansativo, não havendo qualquer justificação dramatúrgica além da surpresa imediata para os capítulos emaranhados. Assim que o jogo se entende, perde-se o prazer visceral que surge com os gestos inesperados e só ficamos com um pesadelo sem escrúpulos ou mercê ou humanidade. Gostos não se discutem e talvez seja isso que procuras em cinema de terror. Por aqui, quere-se algo mais.
Vai ao site dos Cinemas NOS para saberes mais sobre o ciclo Filmes Para Não Dormir. “Um Encontro Mortal” vem acompanhado de mais seis títulos a não perder.
Um Encontro Mortal
Conclusão:
- “Um Encontro Mortal” de JT Mollner, também conhecido como “Strange Darling” no original anglófono, representa um jogo de expectativas subvertidas e inversões morais sobre um modelo do terror clássico. Mantendo tudo ao nível do arquétipo, quase na caricatura, o cineasta alcança um tom peculiar onde, mais do que personagens, as figuras humanas representam uma coleção de atributos de que o espectador assíduo do terror já está à espera. O resultado é um turbilhão de surpresas cruéis, quiçá alguma misoginia temática.
- Kyle Gallner poucas vezes esteve tão bem como no papel principal sem nome. Podemos dizer o mesmo de Willa Fitzgerald, atriz com pouca experiência, mas uma presença feroz. Dito isso, as verdadeiras estrelas do filme são a fotografia e a música, explosões de cor e estilizações retro com cheirinhos dos anos 70.
- É pena que o gosto pelo “twist” se eleve acima da coerência textual ou mesmo da qualidade emocional da fita. Assim sendo, “Um Encontro Mortal” parece sempre mais uma espécie de exercício intelectual para fãs do género ao invés de um projeto que valha por si só, divorciado dos legados de filmes muito melhores.