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26.ª Festa do Cinema Francês | Glamour, veneno e a Nouvelle Vague reinventada

Isabelle Huppert, Julia Ducournau, Jodie Foster, Richard Linklater e o eterno Godard: eis os melhores ou alguns dos filmes que já vi e que fazem desta 26ª Festa do Cinema Francês, um belo banquete ou melhor um verdadeiro menu de ‘nouvelle cinéfilie’ mais do que obrigatórios.

Chegou a altura do ano em que Portugal — e não só Campo de Ourique, Estrela Campolide e ao que parece agora também no Seixal — se veste de França sem pedir desculpa: Vive la France et le cinema français! Vem aí a 26.ª Festa do Cinema Francês, que começa no próximo dia 29 de setembro em Lisboa e depois atravessa o país, durante mais de um mês, como se fosse uma tournée rock’n’roll, mas de filmes franceses. São mais de 60 títulos, pré-estreias, clássicos, estrelas e surpresas: longas-metragens que trazem peso crítico, emoção, que correram os principais festivais internacionais de 2025 e que já vimos em primeira mão. Entre figuras milionárias paranoicas, adolescentes tatuadas, distopias policiais e registos musicais pop, este festival prova mais uma vez que o cinema francês continua vivo, mordaz e indispensável.

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FILMES – GUIA CRÍTICO

Nouvelle Vague de Richard Linklater

O realizador norte-americano Richard Linklater decidiu fazer o impossível: recriar a energia anárquica de Jean-Luc Godard em “O Acossado”. Não é um documentário, nem uma simples homenagem, é um filme que mergulha nas filmagens de 1959, com Zoey Deutch como Jean Seberg e Guillaume Marbeck como Godard, a copiar o corte de cabelo, a voz e a arrogância do mestre. Linklater mistura ficção, cinefilia e improviso como se também fosse um jovem francês a escrever nos Cahiers du Cinéma. O resultado é muito divertido, pulsante e cheio de amor ao cinema: vemos Belmondo reencarnado, Truffaut, Rivette e Varda a passearem pelo ecrã como fantasmas cúmplices. Não é um exercício vazio de estilo é uma reflexão sobre o que significa inventar cinema quando ninguém acredita em ti. E lembra-nos que a Nouvelle Vague não é apenas história: é uma forma de viver.

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📍 Lisboa – 2 out, 21h30, Cinema São Jorge
📍 Porto – 2 out, 21h30, Cinema Trindade
📍 Coimbra – 8 out, 21h30, TAGV
📍 Almada – 14 out, 21h00, Auditório Fernando Lopes-Graça

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Caso 137 de Dominik Moll

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Dominik Moll, depois do sucesso de “A Noite do Dia 12”, regressa com outro mergulho sombrio na realidade francesa. Desta vez, seguimos Stéphanie (Léa Drucker), investigadora da polícia da polícia, encarregue de um caso delicado: um jovem manifestante dos coletes amarelos ficou gravemente ferido por uma granada de dispersão. O inquérito, aparentemente banal, revela-se um labirinto de pressões hierárquicas, silêncios cúmplices e ética em colapso. Moll filma como se fosse um cirurgião: cada plano é seco, cada gesto pesa. Não há sensacionalismo nem discursos inflamados, apenas a realidade nua de uma instituição que se protege a si mesma. “Caso 137” é um retrato da França contemporânea: uma sociedade que já não sabe onde acaba a lei e começa a violência. É cinema político no melhor sentido, não por gritar, mas por nos obrigar a encarar o vazio.

📍 Lisboa – 3 out, 21h30, Cinema São Jorge
📍 Porto – 3 out, 21h30, Cinema Trindade
📍 Coimbra – 9 out, 21h30, TAGV
📍 Almada – 15 out, 21h00, Auditório Fernando Lopes-Graça

Enzo de Robin Campillo / Laurent Cantet

Um filme que já nasceu com aura de despedida: “Enzo” é o último projeto de Laurent Cantet (1961-2024), concluído por Robin Campillo após a morte prematura do primeiro. É a história de um rapaz de 16 anos (Eloy Pohu) que decide contrariar o futuro académico que a família burguesa lhe reservava para enveredar por um estágio em construção civil. Entre cimento e tijolos, descobre uma amizade intensa com Vlad (Maksym Slivinskyi), jovem ucraniano que carrega no corpo e na alma as cicatrizes da guerra. O filme é delicado, íntimo e político: fala de juventude, desejo e escolhas num mundo em crise. Campillo filma com empatia e contenção, deixando que os silêncios digam mais que os diálogos. A relação entre os dois rapazes é sugerida com subtileza, sem clichés, numa linha ténue entre afeto e desejo. É também uma homenagem à vida e ao cinema: o adeus de Cantet transformado em carta de amor à juventude pela mão de Campillo.

📍 Lisboa – 3 out, 21h45, Cinema São Jorge

O Acossado de Jean-Luc Godard (1959)

Clássico absoluto, marco fundador da Nouvelle Vague. Jean-Paul Belmondo, cigarro nos lábios e insolência no olhar, vagueia por Paris depois de matar um polícia. Jean Seberg, de cabelo curto e camisola listrada, vende jornais nos Campos Elísios. Entre eles, nasce uma história de amor e traição filmada com câmaras leves, montagem frenética e liberdade absoluta. “O Acossado” não é apenas um filme, é um manifesto: Godard partiu o cinema ao meio e mostrou que as regras eram para ser destruídas. Sessão imperdível, não só porque é património da história do cinema, mas porque continua a ser radical hoje. Quem nunca o viu em sala, não sabe o que é ver o cinema nascer de novo.

📍 Lisboa – 4 out, 17h00, Cinema São Jorge
📍 Porto – 4 out, 17h45, Cinema Trindade
📍 Coimbra – 9 out, 18h30, TAGV

La Petite Dernière de Hafsia Herzi

Adaptação do romance de Fatima Daas, esta é a história de Fatima (Nadia Melliti), uma jovem muçulmana francesa que, ao entrar na universidade, se confronta com a sua fé, a sua família e o seu desejo por outras mulheres. Hafsia Herzi filma com subtileza, acompanhando o quotidiano de Fatima sem recorrer a clichés ou dramatismos fáceis. Nadia Melliti, descoberta numa manifestação, é uma revelação absoluta: frágil, determinada e real. O filme fala de pertença, identidade e coragem num contexto social marcado por contradições e preconceitos. Ao contrário de muitos dramas sobre religião e sexualidade, aqui não há lições de moral nem melodrama: só uma rapariga a tentar existir. E é isso que o torna tão poderoso.

📍 Lisboa – 5 out, 21h30, Cinema São Jorge

Alpha de Julia Ducournau

Três anos depois de “Titane”, Julia Ducournau regressa com um filme mais íntimo mas igualmente perturbador. Alpha (Mélissa Boros), de 13 anos, regressa a casa com uma tatuagem aparentemente banal. Esse gesto abre um abismo: revelações familiares, tensões entre mãe e filha, e um tio (Tahar Rahim) doente que expõe fragilidades ocultas. O filme situa-se nos anos 80-90, em plena epidemia fictícia que evoca a crise da SIDA. Ducournau continua obcecada com o corpo como espaço de transformação e trauma, mas agora com mais melancolia que choque. É um retrato da adolescência como território de medo e silêncio herdado. Rahim emagreceu 20 quilos para o papel e a intensidade sente-se em cada plano. Não é um filme consensual — divide público e crítica — mas é impossível sair indiferente. Ducournau não procura agradar: procura ferir.

📍 Lisboa – 7 out, 21h30, Cinema São Jorge
📍 Porto – 7 out, 21h30, Cinema Trindade

Vida Privada de Rebecca Zlotowski

Rebecca Zlotowski realiza finalmente o seu sonho: dirigir Jodie Foster. Aqui, a atriz norte-americana interpreta uma psicanalista de renome que se vê em colapso após o desaparecimento de uma paciente. A narrativa mistura investigação policial, terapia em colapso e momentos de comédia inesperada. Foster fala francês, domina o ecrã e prova que ainda é uma das grandes. Zlotowski constrói um thriller psicológico com toques de screwball comedy, oscilando entre o riso e a melancolia. Não é apenas um filme sobre um caso misterioso: é sobre o limite entre escutar os outros e enfrentar os próprios demónios. Foster entrega uma das suas performances mais surpreendentes da última década.

📍 Lisboa – 8 out, 21h30, Cinema São Jorge

Chien 51 de Cédric Jimenez

Filme de encerramento da última edição do Festival de Veneza, “Chien 51” é um thriller distópico passado em Paris, onde a polícia é gerida por um sistema de inteligência artificial. Quando o criador do algoritmo é assassinado, dois polícias tentam resolver o caso e percebem que a justiça já não existe, só programação. Com Adèle Exarchopoulos, Gilles Lellouche, Louis Garrel e Romain Duris, o filme equilibra ação musculada com reflexão política. É o último capítulo de uma trilogia policial de Jimenez, agora virada para a ficção científica. Pergunta essencial: quem guarda os guardiões quando os guardiões são algoritmos? O filme não dá respostas, mas levanta o espelho a uma sociedade obcecada com segurança e controlo.

📍 Lisboa – 9 out, 21h30, Cinema São Jorge

A Mulher Mais Rica do Mundo de Thierry Klifa

Inspirado no escândalo Bettencourt, Klifa faz um retrato ficcional da mulher mais rica do mundo, interpretada com a habitual crueldade elegante por Isabelle Huppert. O filme mostra uma família burguesa em colapso: a mãe milionária, a filha (Marina Foïs), um fotógrafo oportunista (Laurent Lafitte) e um mordomo que parece saído de um thriller hitchcockiano. Klifa evita o tom de tabloide e aposta numa narrativa contida, onde o silêncio e o olhar de Huppert dizem mais do que gritos. É uma tragédia íntima sobre o poder como prisão e sobre a solidão disfarçada de luxo. Não é escândalo, é anatomia da clausura.

📍 Lisboa – 10 out, 21h30, Cinema São Jorge

As Cores do Tempo de Cédric Klapisch

Cédric Klapisch, mestre da crónica familiar, junta passado e presente numa história sobre quatro primos que descobrem uma casa herdada. Lá encontram vestígios de Adèle, uma antepassada que, em 1895, partiu para Paris em plena efervescência cultural. O filme alterna entre a Paris do século XIX e a contemporânea, explorando herança, identidade e memória. É leve, poético e coral, sem nunca perder humor. Klapisch mostra mais uma vez porque é um dos cineastas franceses mais populares: filma o quotidiano com doçura, mas também com consciência de que o passado nunca passa.

📍 Coimbra – 11 out, 18h30, TAGV
📍 Lisboa – 11 out, 21h30, Cinema São Jorge

VÊ TRAILER DE “PARTIR, UM DIA”

Partir, um Dia de Amélie Bonnin

Comédia musical agridoce que abriu o Festival de Cannes. Juliette Armanet, cantora pop, estreia-se no cinema como Cécile, chef premiada que regressa à aldeia natal após um ataque cardíaco do pai. Entre reencontros com a família e um antigo amor, Cécile redescobre memórias e dilemas sobre identidade, sucesso e pertença. Bonnin filma com ternura e leveza, entre melodias pop e dilemas íntimos. Não é apenas uma comédia romântica: é uma reflexão sobre o que significa regressar quando já se quis fugir. E sim, há música — mas nunca gratuita, sempre ao serviço da emoção.

📍 Porto – 8 out, 21h30, Cinema Trindade
📍 Lisboa – 12 out, 19h30, Cinema São Jorge
📍 Almada – 18 out, 21h00, Auditório Fernando Lopes-Graça
📍 Lagos – 25 out, 21h30, Biblioteca Municipal

Esta 26.ª Festa do Cinema Francês é mais do que um festival: é um espelho. Mostra-nos milionários paranoicos, jovens à procura de identidade, adolescentes em mutação, cidades em colapso e memórias que não nos largam. De Godard a Ducournau, de Huppert a Jodie Foster, o cinema francês continua a ser insolente, variado e absolutamente vital. Por isso, um conselho direto: vá à Festa. Porque se não for, depois não reclame que só há filmes de Hollywood reciclados e séries com argumentos feitos a algoritmo, produzidas pelas plataformas de streaming. O cinema francês em festival, passa cá uma vez por ano — embora aos poucos os filmes estreiem nas salas — mas não espera por ninguém.


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