Sundown | © 78ª Festival de Veneza

78º Festival de Veneza: Uma Caixa de Surpresas

Esta competição de Veneza 78 tem sido uma caixa de surpresas numa alusão a ‘La Caja’, de Lorenzo Vigas, a ‘Sundown’, de Michel Franco, mas também a ‘Mona Lisa and the Blood Moon’, o novo e divertido filme de Ana Lily Amirpour, que está extra-concurso mas pode beneficiar da sua notável modernidade e protagonistas femininas.

O mexicano Michel Franco, depois do Leão de Prata, que venceu no ano passado com ‘Nuevo Orden’, um filme cru e mas de alguma forma também profético em relação à repressão e às crises da democracia em vários continentes, regressou a Veneza 78, novamente na competição, com ‘Sundown’: Não é por acaso que ‘Sundown’ se passa em Acapulco, comentou Franco sobre o filme. A exploração das diversas perspectivas  do filme, localizado em Acapulco, torna-se num estudo sobre os personagens e a sua  dinâmica familiar. O sol, a praia e a cerveja ocupam um lugar de primordial que ataca de forma agressiva e direta, essas personagens que vamos descobrindo aos poucos.

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VÊ TRAILER DE ‘SUNDOWN’

Porém, o ponto de partida do filme é a do choque cultural, e de um claro confronto entre duas culturas muito diferentes, a britânica e a mexicana, mas também da luta entre ricos e pobres, que resulta numa violência expressa, que está disseminada, na generalidade dos países da América Latina. A história gira à volta de uma rica família inglesa está de férias em Acapulco: Alice (Charlotte Gainsburgh) e Neil Bennett (Tim Roth), na companhia dos jovens Colin e Alexa. A família desfruta do mar e do sol mexicano, até que um acontecimento desagradável obriga-os a interromper as férias. Mas esta não será a única reviravolta que esta família vai sofrer, ao ponto do equilíbrio e relação entre eles começar a serem postos em causa. ‘Sundown’ parece à partida diferente dos filmes anteriores de Michel Franco, mas na verdade estão lá os seus temas já vistos, curiosamente quase todos pensados à volta de estudos da dinâmica familiar. Esta muitas vezes hipócrita e baseada em relações que são mantidas milagrosamente, por causa do dinheiro, onde uma violência contida pode explodir a qualquer momento ou então relações assentes nos contrastes e diferenças sociais. É verdade que ao longo dos seus filmes, todos muito diferentes e originais, mas que sempre apontam para um mesmo sentimento de desespero e de crítica à sociedade contemporânea. Foi assim no seu duríssimo Después de Lucía, o seu segundo filme, que trata do fenómeno do bullying e de uma dinâmica familiar marcada por uma tragédia. E sempre à volta das questões de família, muito disfuncionais e com muitos segredos sórdidos, como ‘Las Hijas de April’. Michel Franco adora também explorar as psicologias de pessoas, colocadas em condições extremas, num processo que culminou por exemplo em Nuevo Orden. Os Bennett de ‘Sundown’, são interpretados por dois grandes atores: Tim Roth que está na sua segunda colaboração com Michel Franco, depois do interessante Chronic’, que ganhou um Prémio de Argumento, em Cannes 2015. Ao seu lado encontramos Charlotte Gainsbourg, que está presente aqui com um segundo filme, (fora de competição), ‘Les Choses Humaines’, do marido Yvan Attal.

VÊ TRAILER DE ‘LA CAJA’

O venezuelano Lorenzo Vigas venceu o Festival de Veneza em 2015, com o seu extraordinário filme de estreia ‘Desde allà’. E volta agora ao Lido, e a Veneza 78 com seu terceiro filme, intitulado ‘La caja’, um tocante drama familiar, onde se sobrepõem novamente a violência e o abandono. Formado em biologia — era o seu curso, antes de voar da Venezuela a Nova York levado pela paixão pelo cinema — consegui rapidamente entrar no clube restrito dos realizadores consagrados da América Latina ao ganhar um Leão de Ouro precedido por dois dos ‘três amigos mexicanos’: Guillermo Del Toro e Alfonso Cuarón que venceram respectivamente com ‘A Forma de Água’ (em 2017, mesmo que o filme tenha a bandeira dos EUA) e com ‘Roma’ em 2018, uma produção da Netflix. ‘La Caja’, o seu novo filme na com petição de Veneza 78, conta a história de Hatzin (também de seu verdadeiro nome), um menino da Cidade do México, que embarca numa jornada para recuperar os restos mortais do seu pai, encontrados numa vala comum no norte industrial do México. Hatzin perde-se nos céus imensos e nas paisagens vazias, até que num encontro casual, com um homem com impressionantes semelhanças com seu pai, leva-o a questionar-se e numa busca de paternidade biológica e autêntica. No México como no resto da América Latina há um número incalculável de famílias desmembradas, para as quais a ausência da figura paterna é considerada uma realidade normal. E depois a questão das falsas identidades, dos pais e pessoas desaparecidas, está também ligada a outras realidades, como a pobreza, as fugas por dívidas, delinquência, a exploração laboral, a violência de milícias e o tráfico de droga. A questão das ditaduras na América Latina está obviamente muito associada a fenómenos como o peronismo ou o chavismo — e agora o bolsonarismo —que deixaram e deixam uma marca social, política e humana muito profunda, ligada à figura do líder-pai-salvador. Esta figura, acabou por preencher, do ponto de vista psicológico, o vazio do pai ou melhor a de um pai salvador que tudo faz pelos seus filhos, mesmo que isso vá até aos limites da violência e da repressão. Curiosamente ‘La Caja’ é produzido pelo próprio Vigas, em conjunto com Michel Franco, que está na competição com o já referido ‘Sundown’ e, que também já tinha produzido ‘Desde allá’, Leão de Ouro 2015. Este filme conclui também uma verdadeira trilogia sobre o tema da paternidade, iniciada com a curta-metragem ‘Los elefantes nunca olvidan’ e que teve seguimento precisamente com ‘Desde Allá’.

VÊ ‘MONA LISA AND THE BLOOD MOON’ EM BIENNALECHANNEL

Em Veneza 78 os (super) poderes de algumas personagens dos filmes que por aqui têm passado, estão imbuídos da cultura pop, dos excluídos, discriminados ou diferentes: orientais, negros ou brancos ou mesmo através do expressionismos, como em Freaks Out, o filme do italiano Gabriele Mainetti, que tem a sua sessão oficial amanhã e que conto também falar. Está presente por exemplo nas protagonistas de ‘Mona Lisa and the Blood Moon’, o novo filme da cineasta Ana Lily Amirpour. No centro deste filme estreado aqui fora de competição, está Kate Hudson (Globo de Ouro por ‘Quase Famosos’), uma exuberante bailarina de stripteaser, que recolhe em sua casa uma jovem rapariga oriental, com habilidades paranormais, que escapou de um asilo psiquiátrico. A sua fuga, leva-a a Nova Orleans, onde terá que sobreviver usando as suas extraordinárias habilidades e dando uma mãozinha à amiga e ao seu jovem filho. O pano de fundo, é uma cidade degradada, alienante e com tendência para o pecado. A realizadora (nascida no Reino Unido e de origem iraniana e naturalizada americana, que ganhou o Prémio Especial do Júri com The Bad Batch no Lido em 2016, pode e apesar de estar fora de competição ter algumas aspirações na sua carreira e no seu futuro. E até beneficiar do efeito ‘Titane’, a ‘estranha’ Palma de Ouro de Cannes 2021. Tal como no filme de Julia Ducournau, as características que mais sobressaem no cinema de Amirpour assentam igualmente na contaminação pós-moderna de géneros cinematográficos, várias referências de outros realizadores e sobretudo pela sua preferência por personagens anómalos e marginais, especialmente mulheres, como em ‘A Girl Walks Home Alone at Night’ (2013). ‘Mona Lisa and Blood Moon’, tem um elenco inclui Jeon Jong-seo (Burning/Em Chamas) e Craig Robinson (The Office, Ghosted, Songbird) e trata-se de uma história surpreendente, colorida e cheia de música electrónica e heavy metal, de uma cineasta independente claramente em ascensão,  com uma atenção especial e renovada para as histórias e talentos femininos.

JVM

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