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A Mulher que eu Abandonei, em análise

“A Mulher que eu Abandonei”, de Kirio Urayama, é a terceira obra a marcar presença no Ciclo de Mestres Japoneses Desconhecidos da The Stone and the Plot!

HISTÓRIA DE UMA MULHER E DA MÁ CONSCIÊNCIA DE UM HOMEM…!

Para a crítica de WATASHI GA SUTETA ONNA (A MULHER QUE EU ABANDONEI), 1969, realizado por Kirio Urayama, podia  aplicar a mesma introdução que usei para os dois filmes anteriormente analisados, ou seja, GARASU NO JONI: YAJU NO YO NI MIETE (JOHNNY CORAÇÃO DE VIDRO), de Koreyoshi Kurahara, e ONNA NO ISSHO (A VIDA DE UMA MULHER), de Yasuzo Masumura, ambos de 1962. Não obstante a diferença de sete anos entre esta e as outras duas produções, as condições sociais, políticas e económicas do Japão, numa época de reconfiguração do capitalismo nipónico, não só eram praticamente as mesmas como em certos aspectos foram agravadas, verificando-se no final da década de sessenta um recrudescer das lutas laborais em conjugação com lutas estudantis lideradas por grupos radicais de esquerda inspirados por movimentos similares espoletados a nível global e que deram origem, por exemplo, ao Maio de 1968, mas igualmente a diferentes patamares de subversão do status quo dominante que em diversas geografias, incluindo Portugal, mesmo debaixo de uma ditadura, não ficaram de fora deste contexto de contestação e reivindicação de um mundo novo, mais justo e solidário. Recordemos o que sucedeu nos Estados Unidos com a continuação e ampliação da luta pelos direitos cívicos, que moveu muitas consciências a nível internacional, o que seguramente explica o poster de Malcolm X, activista negro americano, que vemos afixado na parede do quarto de um dos protagonistas do filme a que agora passo a dedicar a minha melhor atenção.

A Mulher que eu Abandonei
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Nesta ficção sobre a ascensão social de um empregado de uma empresa do ramo automóvel, veremos como esse caminho se concretiza porque a sobrinha do patrão se apaixona por Tsutomu Yoshioka (Chôichirô Kawarasaki), o dito funcionário que não podia estar mais satisfeito com a vida e a perspectiva de um futuro promissor. Só que a sua aparente alegria parece ser um artifício para singrar na carreira, assim como os seus cínicos compromissos de burocrata acomodado ao sistema não são motivos para sorrir, a não ser quando funcionam como mola propulsora que o leva ao rápido sucesso financeiro. Na verdade, anda sistematicamente com uma cara de pau, que não parece muito diferente da que outros ostentam: aqueles que, abocanhando um determinado lugar de poder, em vez de governar procuram governar-se aprendendo as regras do jogo para se manterem a flutuar num rio escuro e de correntes perigosas, as águas geladas do cálculo egoísta onde os rivais espreitam na margem, o mesmo será dizer, na esquina mais próxima e na rua que em certos casos não vai dar a lado nenhum a não ser a um beco sem saída. Precisamente numa dessas ruas escondidas dos olhares mundanos o nosso homem irá encontrar um antigo amor, Mitsu Morita (Toshie Kobayashi), uma rapariga singela que outrora fora a sua namorada e que acabou por abandonar de forma algo canalha, por ser de condição social não compatível com as aspirações de um estudante privilegiado e mimado pela “boa” sociedade, mesmo a que muitas vezes ele contestava. Mulher que, saberemos, ficou grávida e desamparada perante uma sociedade hipócrita, com poucos escrúpulos, e nada cooperante com quem não fosse bafejado com a sorte de nascer com o rabo voltado para a lua. Mas Tsutomu Yoshioka, ao recordar o passado vivido com Mitsu Morita, será contaminado por um misto de ansiedade e má-consciência que desperta nele sentimentos de compaixão que não o impedem de permanecer encerrado nas suas contradições de burguês instalado numa família com meios para lhe dar aquilo a que porventura sempre aspirara, fosse qual fosse o preço a pagar. Daqui para a frente, a estrutura ficcional de A MULHER QUE EU ABANDONEI será erguida entre a exposição a sépia do passado, um preto e branco mais colorido, e o preto e branco muito contrastado do presente, sendo algumas das sequências concebidas de acordo com esses parâmetros cromáticos algumas das melhores que veremos ao longo do filme. Há mesmo momentos em que o rapaz e a rapariga, corpos mergulhados em óbvios e fugazes jogos de amor, vivem momentos que parecem ser de felicidade juvenil, prevalecendo no entanto a sensação amarga de serem o retrato de situações que manifestamente não se poderão repetir.

A Mulher que eu Abandonei
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No argumento, escrito por Hisashi Yamanouchi, encontramos a matriz da obra homónima de Shûsaku Endô, escritor cristão que melhor conhecemos por ser o autor do romance SILÊNCIO, sobre a presença de padres jesuítas portugueses numa altura, o século XVII, em que a perseguição aos cristãos era feroz, e que esteve na base do argumento e guião do filme SILENCE (O SILÊNCIO), 2016, de Martin Scorsese. Mas não só. Em anos anteriores já fora adaptado para CHINMOKU (SILÊNCIO), 1971, do japonês Masahiro Shinoda, e ainda para OS OLHOS DA ÁSIA, 1996, do português João Mário Grilo.

De algum modo, sem querer estabelecer qualquer associação abusiva entre a matéria dos dois romances, diria que o protagonista masculino de A MULHER QUE EU ABANDONEI vive um silêncio pessoal feito da repressão dos seus sentimentos, que vagueiam entre a recordação dos melhores anos da sua vida e o frustrante casamento de conveniência, onde as máscaras para uso social escondem a ausência de um verdadeiro desejo, de uma genuína relação de amor.

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Tsutomu Yoshioka acaba por sucumbir, atormentado pelas memórias de um pretérito que ele não consegue reatar por saber que esse seria o princípio e o fim das suas ambições e do seu estatuto artificialmente conquistado. Há quem leia aqui uma ferroada aos que se encostaram ao conformismo da normalização política e económica, que na verdade viria a ser consolidada nas décadas seguintes, aos que se venderam por um proletário prato de lentilhas ou por uma requintada e “estrangeira” refeição de champanhe e caviar; no fundo, aos que fragilizaram, com a sua falta de personalidade, o ambiente sociopolítico japonês, pelo menos se comparado com o dos anos das lutas sociais anteriores, em que a discussão sobre um futuro melhor estava na ordem do dia. No entanto, no contexto histórico japonês, essas lutas não acabaram, e a partir de certa altura adquiriram mesmo renovada intensidade. Porém, o realizador não quis avançar muito mais para além do que já mostrara, e não foi pouco, preferindo um final alegórico e a cores em que a máscara do Teatro Noh (que muitas vezes iremos ver inserida neste filme como um depoimento visual vincadamente dirigido ao espectador) permite a leitura mais vasta do seu significado subjectivo e ritual, o de ser a máscara do protagonista. Mas aqui podemos dizer de igual modo ser a máscara que o cobarde Tsutomu pode usar para ser ele próprio e o outro, ou seja, o homem do passado face ao homem do presente, para sempre assombrado pela mulher que abandonou.

A Mulher que eu Abandonei, em análise

Movie title: Watashi ga suteta onna

Director(s): Kirio Urayama

Actor(s): Chôichirô Kawarasaki, Toshie Kobayashi, Ruriko Asaoka, Chikako Natsumi, Haruko Katô, Takeshi Katô

Genre: Drama, 1969, 116min

  • João Garção Borges - 75
75

Conclusão:

PRÓS: Nunca será demais salientar a importância e, porque não dizer, o prazer de descobrir ou redescobrir uma cinematografia que pessoalmente conto entre as melhores do mundo e que, por mais generosa que seja a contabilidade dos visionamentos realizados, reserva numerosas surpresas e motivos para aprofundarmos os nossos conhecimentos. Assim possamos contar com iniciativas como a do Ciclo MESTRES JAPONESES DESCONHECIDOS, com uma primeira e excelente parte em 2021, e a segunda parte que agora vai estrear e pode ser vista, segundo informação enviada pelo distribuidor, em Lisboa, no Cinema City Alvalade, de 3 a 9 de Novembro, e no Cinema NIMAS, nos dias 21, 22 e 23. No Porto, no Teatro do Campo Alegre, de 10 a 23 de Novembro. Em Braga, no Auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, nos dias 8, 22 e 29 de Novembro (com a primeira parte do ciclo nos dias 1 e 15 do mesmo mês). Na Casa do Cinema de Coimbra, com os filmes disseminados por diversas sessões entre os dias 3 e 17 de Dezembro. Por fim, estão previstas exibições em Évora, no Auditório Soror Mariana, mas só em Março de 2023.

CONTRA: Nada.

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