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Alto e Bom Som – A Batida de Casablanca, em análise

Anas Basbousi e Ismail Adouab protagonizam “Alto e Bom Som – A Batida de Casablanca”, uma obra de Nabil Ayouch.

CASABLANCA BEATS ou O RAP É UMA ARMA…!

Em 2012, o realizador franco-marroquino Nabil Ayouch assinou um filme intitulado LES CHEVAUX DE DIEU (OS CAVALOS DE DEUS) que mostrava, sem grandes cerimónias ou rodriguinhos inúteis, como as condições socioeconómicas no contexto dos bairros mais desfavorecidos do seu país natal – neste caso o bairro de Sidi Moumen, situado nos arredores da mais cosmopolita cidade de Marrocos, Casablanca – podiam gerar fenómenos associados ao radicalismo de inspiração islâmica que de algum modo surgia ali como uma alternativa para ultrapassar as dificuldades e desigualdades de uma sociedade agressiva e sem alma. Um espaço urbano onde outros problemas possuíam inegável peso, como a instabilidade gerada pelo consumo e negócio de drogas, e algumas questões adjacentes como o incómodo ruído surdo das barreiras impostas a uma sociedade em que a repressão sexual associada a conceitos prevalecentes no dia a dia gera mentalidades e práticas machistas, condicionando as relações entre homens e mulheres, mesmo no seio dos que julgam saber ultrapassar ou subverter certas idiossincrasias seculares. Na verdade, o filme não justificava a violência dos atentados suicidas liderados por militantes islâmicos, que realmente aconteceram em Casablanca, mas não reduzia o martírio dos seus autores a uma dicotomia canalha e a uma abstracção do género “vejam como actuam e se comportam os homens maus”. Como se lê no cartaz (onde o realizador Jonathan Demme não hesitou em colocar o seu nome num significativo “Jonathan Demme Presents”), NO ONE IS BORN A MARTYR, ou seja, NINGUÉM NASCE UM MÁRTIR.

Alto e Bom Som
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Passados dez anos sobre o filme citado, Nabyl Ayouch regressou ao mesmo bairro popular (onde ainda persiste uma espécie de estigma com origem na memória dos acontecimentos violentos de Maio de 2003 e Março e Abril de 2007) com HAUT ET FORT (ALTO E BOM SOM – A BATIDA DE CASABLANCA), 2021, mas desta vez concentrou desde logo a atenção num jovem adulto que, dentro do seu carro, fotografado de perfil e em grande plano, procura uma determinada morada que aparentemente ninguém conhece. Trata-se de um centro de actividades artísticas, a Positive School, um espaço polivalente mas, pelo que nos será dado ver, maioritariamente dedicado ao ensino da música, canto e dança. Muito intrigado e até com vontade de dar meia-volta e sair dali usando a autoestrada que o faria regressar ao centro de Casablanca, algo receoso por nem sequer saber onde realmente se encontrava, Anas (interpretado com contida segurança por Anas Basbousi) lá irá dar com a dita escola onde o esperam como mentor de uma espécie de curso e seminário de expressão musical no domínio do movimento Hip Hop e do género Rap. Na verdade, aulas livres em que o seu papel é mais de monitor do que de professor no sentido clássico da palavra. Diante dele veremos um conjunto de jovens muito diversos, adolescentes de ambos os sexos, com sangue na guelra, com mais ou menos energia positiva, mais ou menos coragem para assumir as suas diferenças e os seus desejos, miúdos com juízos precisos sobre as condições em que vivem, consciência aguda na análise das relações familiares, particularmente activos na crítica do que sentem estar mal, habitualmente sem papas na língua, rebeldes com causas que ali identificam com maior ou menor precisão, sempre dispostos a colaborar, com acutilante sentido democrático, na organização das actividades propostas e a discutir o que lhes vai na alma e, sempre, sempre com o Rap e o Hip Hop na cabeça.

Alto e Bom Som
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Ao chegarmos a este ponto da narrativa fílmica, aos primórdios do confronto, saudável mas não obstante confronto, entre Anas e o seu grupo de pupilos, surge a pergunta número um, quase imperativa: porque é que eles escolhem o Rap, o Hip Hop, e não outras formas musicais? Será o próprio Anas a fazer a possível contextualização ao afirmar que o movimento Hip Hop nasceu no Bronx, bairro deserdado de Nova Iorque, onde o racismo, as desigualdades sociais, a humilhação, a pressão das dificuldades económicas na vida quotidiana levaram muitos a encarar o Rap e o Hip Hop como uma arma de arremesso contra esse estado de coisas. No fundo, Anas sublinha o óbvio, ou seja: “O Hip Hop não surgiu do nada”. Faz uma “comparação”, provavelmente exagerada, com as condições de vida em Sidi Moumen, mas o que ele diz faz sentido, e o que não diz faz falta mas podemos nós acrescentar se nos dermos ao cuidado de estudar a História recente do Magreb e o papel daquelas formas de expressão musical, sobretudo o Rap, nas lutas desencadeadas durante a chamada Primavera Árabe. Entre outros, citemos os exemplos de grandes intérpretes como o rapper tunisino El Général (nome verdadeiro Hamada Ben Aoun) e o seu hino anti-corrupção “Rayes Lebled”: “A miséria está por todo o lado e o povo não encontra um lugar para descansar. Falo em nome do povo que está a sofrer esmagado pela opressão”. Na Argélia, Raja Meziane (cantora, compositora, advogada e activista) cantou alto e bom som o seu Rap “Allo le Système!”, e são muitos os que juntaram e multiplicaram estas vozes a outras mais localizadas, porventura menos mediáticas, mas com igual importância e influência na denúncia do que se passava e passa nos seus países e no mundo, numa afirmação culturalmente relevante no quadro dos que querem lutar por um futuro melhor e sem grilhetas políticas ou ideológicas. Mais, a escola que vemos no filme existe realmente (chama-se LES ÉTOILES e foi fundada em 2014), sendo o realizador e argumentista um dos seus fundadores. Naturalmente foi ali que Nabil Ayouch foi buscar muitas das “estrelas” de HAUT ET FORT. O actor protagonista, Anas Basbousi, actor e rapper conhecido no meio artístico por Bawss, foi lá professor e por isso de certa maneira o papel que desempenha é a ficcionalização de uma parte real da sua vida. Disse ele sobre o passado recente: “Iniciei a carreira em 2003 e na altura não havia estúdios de gravação ou salas de concertos que aceitassem ou acolhessem os intérpretes de Hip Hop. Por isso, a solução passava por actuar nas ruas”. Passado uma década, as condições mudaram em grande medida devido aos movimentos reivindicativos que abriram as portas a inúmeros rappers de protesto. Foi então que decidiu criar uma escola de Hip Hop onde os alunos pudessem sentir a música e a dança como algo deles, como a amplificação ritmada dos seus sentimentos, das suas angústias e desejos, das suas propostas, o “beat” positivo da sua própria voz. Um conjunto de vozes que assim contra-atacava e vencia, resta saber até quando, a repressão sentida no quotidiano. De facto, no filme conjugam-se aspectos semidocumentais com ficção pura, e nos segmentos em que a família dos alunos surge para nos dar a conhecer as condições existenciais de Sidi Moumen, as suas ruas apertadas, as suas casas sobrelotadas, algumas das personagens secundárias adquirem protagonismo igual ou mesmo superior ao do professor. Há, aliás, uma visão do colectivo que impera na construção da narrativa, sendo a acção erguida sobre o modelo de cada um escolher o seu lugar, sem ocupar ou perturbar o lugar igualmente legítimo do outro. Nesse aspecto, as aulas de Hip Hop e as letras escritas ou improvisadas do Rap são, pela sua sistematização, uma lição de vida para aqueles que assumem a sua militância cultural, que pode albergar uma componente política sem ser no entanto a dominante, contra as adversidades e preconceitos, nomeadamente, sociais e religiosos. Em suma, um filme que se vê e ouve com interesse, fotografado e sonorizado com grande profissionalismo, interpretado por amadores e profissionais que dão boa conta do recado (muitos dos jovens são absolutamente notáveis). Uma obra que nos faz despertar para uma matéria de expressão pessoal e colectiva que em Marrocos se mantem genuína e não passou necessariamente pelo rolo compressor da indústria musical que, por exemplo, nos EUA reduziu o Hip Hop a um vibe para consumo de certos mercados e a uma coisa de moda para dar lucro a multinacionais. Pelo menos no Magreb, mas acredito também que noutras bandas, sucede o mesmo: o Rap foi e continua a ser uma arma…!

Alto e Bom Som - A Batida de Casablanca, em análise
Alto e Bom Som

Movie title: Haut et fort

Date published: 12 de July de 2022

Director(s): Nabil Ayouch

Actor(s): Anas Basbousi, Ismail Adouab, Meryem Nekkach, Nouhaila Arif

Genre: Drama, 2021, 101min

  • João Garção Borges - 65
65

Conclusão:

PRÓS: O apoio ao próprio projecto cultural e pedagógico que está na origem do projecto filme, o centro LES ÉTOILES, que existe e está situado num espaço periférico e desfavorecido de Casablanca, o bairro de Sidi Moumen.

O actor protagonista, o rapper Anas Basbousi (nome artístico, Bawss) e os rapazes e raparigas a quem ele vai ensinar o ABC da sua condição presente e as ferramentas existenciais para se imporem, sem medo, face a uma futura vida adulta, através dos meandros de um genuíno movimento norte-africano de Hip Hop, cuja força de intervenção se materializa na urgência das matérias cantadas e recitadas, alto e bom som, na contundente vibração do género Rap.

CONTRA: Se após o visionamento pensarmos nas breves mas significativas sequências que ao longo do filme nos dão conta da vida familiar dos jovens estudantes, pessoalmente veria como útil que outros segmentos exteriores ao POSITIVE SCHOOL fossem incorporados na narrativa. Porque há Rap que chegue, e faz aqui e além falta compreender as motivações profundas e históricas que levam aqueles jovens a abraçar o género. Não entrando em contradição com o projecto do realizador e argumentista, a batida em redor do Hip Hop e do Rap, mais uma ou outra sequência na área da dança contemporânea, fazem com que o meio em que aquelas personagens vivem passe de algum modo para segundo plano. Não constitui um erro, mas sim uma opção de produção. Na minha opinião, desequilibra um pouco o possível impacto que este filme podia assumir do ponto de vista da intervenção activa e moderna numa sociedade onde ainda observamos alguma resistência e conservadorismo cultural.

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