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Um Amor na Escócia, a Crítica

Michelle Fairley e Bouli Lanners juntam-se para dar vida a “Um Amor na Escócia”, um drama coescrito e realizado por Lanners.

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Nada como um banho de mar nas águas frias – que digo eu – nas águas gélidas do Atlântico Norte para demonstrar que se está vivo antes de morrer, quase seguramente, com o sangue congelado no corpo. Pois bem, numa sequência de arrepiar o mais espartano dos espectadores, o protagonista de NOBODY HAS TO KNOW (UM AMOR NA ESCÓCIA), 2020, realizado e interpretado por Bouli Lanners, fará isso mesmo. Já ia adiantada esta ficção, situada na ilha escocesa de Lewis, quando o habitualmente circunspecto Phil Haubin, dito Phil (interpretado e bem pelo próprio realizador) decide mergulhar nas ondas que rebentam no imenso areal de uma magnífica e ampla praia, num repente de verdadeira coragem ou então num acesso de pura loucura.

DO AMOR CONTRA A LUZ FRIA DO NORTE…!

Um Amor na Escócia
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E, por incrível que pareça, sobrevive para contar a experiência a Millie MacPherson (Michelle Fairley), a mulher por quem se apaixonou. Mas para aqui chegarmos a realização dera-nos antes, com precisão de relojoaria, a noção básica do posicionamento e da personalidade de cada uma das personagens que no posterior contexto narrativo irão ocupar o seu lugar específico. Exercício de planificação sem o qual a engenharia ficcional não apresentaria metade da eficácia que acaba por revelar.




Phil Haubin dá sinais de ser um homem maduro e livre com um passado vivido noutros ambientes e paisagens, na verdade num outro país, a Bélgica. Trabalha numa quinta onde faz o que precisa de ser feito juntamente com o neto do proprietário, o ainda jovem Brian (Andrew Still). Ao fim do dia os dois costumam passar umas horas no pub local onde falam com um à-vontade que deixa no ar uma relativa cumplicidade, não se fixando apenas na relação laboral ou em qualquer preconceito ou diferença de classe. Numa dessas noites, Brian será acossado verbalmente por outros ilhéus, que a certa altura lhe pedem para dar os cumprimentos a uma figura ausente a quem chamam “ice queen”, a “rainha do gelo”. Phil acha estranha aquela provocação e interroga-se sobre a alcunha atribuída a uma mulher de quem Brian é sobrinho, nem mais nem menos aquela que um pouco mais para a frente irá ao seu encontro, inicialmente cumprindo um mero dever cívico. Na verdade, um belo mas fatídico dia, Phil sofre um AVC (Acidente Vascular Cerebral) e será internado num hospital.

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Depois de receber alta será Millie, filha do proprietário da citada quinta, quem finalmente o acompanha no período previsto para a recuperação. Entretanto, Phil perdera a memória, e as perguntas sobre o que fora a sua vida antes do stroke sucediam-se em catadupa. Nessa altura, nada fazia prever que uma secreta história de amor desse os primeiros passos, sobretudo após o momento em que Phil recebe de Millie a notícia de que ambos se haviam envolvido numa relação amorosa num passado mais ou menos recente. Naturalmente discreta, pressupomos nós, mas pelo que se insinua nada platónica.




Uma relação que se havia mantido no domínio das sombras, numa atmosfera em que as silhuetas de um homem e de uma mulher pudessem passar despercebidas num meio relativamente fechado onde a existência de cada um era fatalmente escrutinada com muito maior exposição ao colectivo do que no rebuliço anónimo de uma grande cidade. Por ali, naquelas paisagens banhadas pela radiante, fria e filtrada luz do Noroeste da Escócia, polvilhadas por casas que se encaixam, quase perfeitas, no conjunto, o destino dos homens e mulheres parece escrito com a mesma solenidade com que o pastor na igreja cita as passagens da Bíblia aos Domingos, numa cerimónia ritualizada a que os habitantes da ilha se sentem socialmente compelidos a comparecer, mesmo os que provavelmente possuem fracas convicções religiosas.

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Um Amor na Escócia
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Trata-se da pressão do grupo, o “parece mal se não aparecermos, o que irão dizer os outros”, que ali impera. Por isso mesmo, a “rainha do gelo”, que parecia resignada a estas rotinas, vai a certa altura protagonizar um mergulho, mais surpreendente do que inesperado, numa variante física e espiritual daquele outro que Phil daria nas águas geladas da costa escocesa. Neste caso quebrando as regras do conformismo, Millie avança para algo mais do que uma simples ajuda familiar e solidária ao muito prosaico mas reservado Phil, todavia mantendo sempre esse lado espectral, a reserva de intimidade que não querem desvendar e que ninguém precisa saber. Tudo isto faz sentido na igualmente fria e algo secreta designação inglesa do filme, NOBODY HAS TO KNOW. Muito mais forte do que a designação portuguesa, o melodramático UM AMOR NA ESCÓCIA. Neste campo, a realização assume com pinças o contacto físico entre os corpos dos que já não são propriamente dois jovens no pleno vigor da sua pujança sexual.




De qualquer modo, nas sequências em que partilham a mesma cama, a discrição com que o realizador filma o círculo íntimo dos amantes resulta em pleno para melhor sentirmos o pulsar erótico de um gesto, o peso das palavras partilhadas, o alcance das interrogações sobre o significado de alguns sinais marcados na pele de Phil. Tatuagens com um passado que, saberemos adiante, não podiam ser descodificadas por Millie. No fundo, aqueles dois seres que aprenderam o que era amar aproveitando a singularidade dos seus percursos, no presente estão em pé de igualdade. Ele por falta de memória do passado. Ela porque o inventou e sabe usá-lo em seu proveito como uma mais-valia, o valor acrescentado que lhe permite renascer. No fundo são duas pessoas sem um passado concreto, e deste modo só conta a subjectividade dos caminhos que os dois possam viver no futuro. Mas esse espaço passível de consolidar o fulgor do amor é um lugar mais frio do que a morte.

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Um Amor na Escócia
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O filme chega com um ligeiro atraso aos ecrãs nacionais. O ano de produção é 2020, com carreira comercial iniciada em 2021. Seja como for, vem em boa hora para nos dar conta de que as coproduções europeias, quando apostam na especificidade nacional de uma ficção e quando são apoiadas por um bem estruturado argumento, podem dar cartas no domínio do cinema de autor, e não só. Sobretudo quando a evocação das nacionalidades acaba assumida de forma mais ou menos saliente sem esmagar a componente principal, no caso, sobretudo a especificidade local da cultura insular escocesa e os ecos de vidas anteriores numa Bélgica distante.

Um Amor na Escócia, a Crítica
Um Amor na Escócia

Movie title: Nobody Has to Know

Director(s): Bouli Lanners

Actor(s): Michelle Fairley, Bouli Lanners, Andrew Still, Julian Glover

Genre: Drama, 2022, 99min

  • João Garção Borges - 70
70

Conclusão:

PRÓS: Bouli Lanners demonstra na sua dupla função de realizador e actor (muita boa prestação na composição de uma personagem com uma personalidade subtilmente complexa) uma inegável capacidade para construir um filme que se concentra nos pequenos grandes detalhes do amor presente, erguido no interior de uma relação perspectivada para o futuro e assumida nos seus limites como a redenção de um passado cujos contornos pessoais nunca ficarão claros e, neste caso, ainda bem. Pequenas doses de mistério nunca fizeram mal a ninguém, ainda que o filme revele em breves apontamentos alguns sinais que nos ajudam a encaixar uma ou outra peça do puzzle ficcional.

Para além da Direcção de Fotografia de Frank van den Eeden, destaco o excelente cuidado nas localizações, a escolha dos locais de rodagem, que podia descambar facilmente para o bilhete-postal mas que nesta obra nunca se fica pela mera ilustração da acção. Personagens e Natureza são parte integrante de uma atmosfera muito precisa.

Nos Magritte du Cinema, atribuídos na Bélgica pela Academia André Delvaux, recebeu o Prémio de Melhor Filme e de Melhor Realizador.

No Film Festival Oostende, mais uma vez na Bélgica, recebeu o Prémio para a Melhor Fotografia.

CONTRA: Nada, a não ser um reparo. Preferia que no nosso circuito comercial se intitulasse, por exemplo, NINGUÉM PRECISA SABER.

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