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Polícia, em análise

“Polícia” é a mais recente obra a estar em destaque no ciclo da Leopardo Filmes, Um Verão com Maurice Pialat.

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Há quem considere POLICE (POLÍCIA), 1985, sétima longa-metragem de Maurice Pialat, um passo em falso na carreira do cineasta ou, pelo menos, um filme que se desvia da sua linha habitual de abordar a realidade circundante nas suas mais diversas matizes, sem rodriguinhos desnecessários e sempre na base sincera e realista do doa a quem doer. Não sei se os que sustentam essa ideia viram o mesmo filme que eu vi, mas na minha opinião estão completamente enganados ou, numa versão mais suave, ficaram pela superfície e passaram ao lado do essencial. Posso conceder que, numa primeira abordagem da matéria (o quotidiano de uma esquadra do bairro parisiense de Belleville e a correspondente prestação de um peculiar corpo policial apostado em combater o negócio clandestino da droga, sobretudo o de heroína), a narrativa oferece muitas vezes motivos de sobra para POLÍCIA resvalar para os lugares comuns dos chamados neo-noir, ou melhor, os neo-polar que mostram uma nova visão das velhas fórmulas usadas e, por vezes, mais do que estafadas que caracterizaram algumas das antigas e rotineiras ficções literárias e cinematográficas de natureza policial. Para além do mais, produzido numa altura em que os ecos da emigração magrebina já se faziam sentir nos meandros da sociedade gaulesa e quase sempre pelas piores razões. Neste contexto, o facto de os criminosos, confessos ou não, serem árabes oriundos da Tunísia, organizados numa espécie de Mafia com ramificações em Marselha, não ajudava nada a limpar essa visão redutora de uma realidade que já então albergava uma autêntica bomba-relógio que viria a explodir nas ruas das grandes cidades francesas, nem a afastar da história escrita a quatro mãos os clichés mais redutores, leia-se, meio reaccionários e racistas. Só que a essa primeira metade do filme segue-se uma outra com similar duração onde Maurice Pialat vai ao encontro do seu estilo e daquilo que ele mais gostava de encenar, ou seja, as relações atormentadas e no limite dos limites entre um homem e uma mulher.

DENTRO E FORA DA LEI, NA FRONTEIRA ENTRE A VERDADE E A MENTIRA…!

Policia
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Nessa relação que nenhum espectador atento acredita ser completamente falsa nem completamente verdadeira, dois seres de campos opostos vão encontrar-se numa plataforma giratória onde a cada minuto, a cada hora, a cada dia e sobretudo a cada noite, qualquer um pode sair disparado pela porta fora de um qualquer café manhoso, de um dancing, de um quarto escuro, de um carro ou de um beco ainda mais escuro onde até a polícia evita entrar. Ele chama-se Mangin (um fabuloso Gérard Depardieu). Ela chama-se Doria, aliás, nome de guerra que o amante árabe lhe deu (uma igualmente segura Sophie Marceau). Entretanto, Simon Slimane, o dito amante, fora preso. Pertence a uma rede criminosa que não deixa margem para dúvidas. Na prática, desempenha o papel de irmão mais novo do grupo conhecido por Irmãos Slimane. Traficantes de primeira água que receberam e esconderam muito dinheiro. Dois milhões de Francos que se encontram disponíveis a quem saiba dar-lhes a volta, numa altura em que as coisas se complicam e a polícia aperta o cerco. Será aqui que Doria vai conseguir o que suspeitávamos desde o início ser o seu objectivo.




Policia
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Depois de ser presa, quando prenderam Simon, será libertada e posteriormente consegue circular com alguma liberdade entre um lado e o outro da fronteira entre o crime e a lei, pelo menos na aparência, misturando-se com polícias, um advogado que possui contactos bem estranhos no submundo e os irmãos de Simon que não hesitam em pressioná-la e ameaçá-la caso decida mudar de rumo e cair nos braços do “inimigo”, seja um homem de uma relação ocasional e fugaz, seja o de uma relação estável e aparentemente duradoura. Nada disso podia acontecer, segundo os códigos da família Slimane, enquanto o seu mais novo estivesse na cadeia. Só que Doria, para desgraça sua e para o melhor que o filme apresenta, não escolhe um homem qualquer, mas sim um polícia, nem mais, Mangin. De certo modo, ambos quebraram as regras de ouro que os protegiam e ambos vão a partir daí viver na corda bamba, no sobressalto de serem considerados cúmplices nas reviravoltas da sua genuína ou falsa paixão. E esse filme, o filme que Maurice Pialat seguramente quis realizar, vale mesmo a pena ver.

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Disse Pialat a propósito da escrita do argumento: “Como éramos quatro argumentistas, depois de vários meses, finalmente, escolhemos uma história bem simples, metade original, metade inspirada em notícias e acontecimentos muito comuns (…). Eu não acho que as histórias espectaculares com personagens esquemáticas resultem necessariamente nos melhores argumentos”. Nesta espécie de confissão sentimos o dilema do realizador e co-argumentista (os outros foram Catherine Breillat, autora da ideia original, Sylvie Danton e Jacques Fieschi) em avançar para uma ficção que possuía uma forte possibilidade de cair no convencional e, ao contrário das expectativas iniciais, investiu a meio caminho num exercício sobre o jogo de sombras que acompanha a estreita margem de manobra entre a verdade e a mentira, as areias movediças onde uma e outra se confundem.

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Movie title: Police

Director(s): Maurice Pialat

Actor(s): Gérard Depardieu, Sophie Marceau, Richard Anconina, Pascale Rocard

Genre: Drama, 1985, 113min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão:

PRÓS: Tudo o que disse, e ainda o destaque maior para uma magnífica interpretação de Gérard Depardieu, que lhe valeu o Prémio para Melhor Actor no Festival de Veneza de 1985.

Prestações superlativas dos restantes actores, protagonistas ou secundários. Para além de Sophie Marceau, especial destaque para a prostituta interpretada por Sandrine Bonnaire. Recordo que nesse mesmo ano, 1985, esta sempre segura actriz, a garota de Clermont-Ferrand descoberta e lançada por Maurice Pialat, protagonizou um dos papéis da sua vida no filme SANS TOIT NI LOI (SEM EIRA NEM BEIRA), 1985, de Agnès Varda, que lhe valeu no ano seguinte o Prémio César para a Melhor Interpretação Feminina.

Uma cópia digital restaurada, impecável de imagem e som.

Parte integrante do ciclo UM VERÃO COM MAURICE PIALAT, oportunidade de ouro para conhecer a obra integral, dez longas-metragens dirigidas por um dos maiores realizadores franceses da moderna História do Cinema.

CONTRA: Nada.

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