"Atlas" | © Festa do Cinema Italiano

15ª Festa do Cinema Italiano | Atlas, em análise

“Atlas” de Niccolò Castelli já passou por muitos festivais de cinema, desde Locarno a Santa Bárbara. Agora, esta obra chega a Portugal na Festa do Cinema Italiano, onde integra a secção competitiva.

Bem alto, onde a terra e o céu parecem esticar-se no precipício do toque, Allegra admira o cume da Europa. Na companhia do namorado e um casal seu amigo, essa jovem escalou os Alpes e, chegados ao seu destino, a trupe parece incerta sobre o que fazer. Regozijam-se os aventureiros, saciam a fome e tiram selfies, mas o que realmente lhes enche o coração é a companhia uns dos outros. Essa união será quebrada noutra viagem, essa feita além das fronteiras do Velho Continente. A desgraça acontece em Marraquexe, a morte sob um sol marroquino.

Inicialmente, pouco sabemos sobre o que ocorreu. Longe de atravessar o mundo com os seus amigos, a Allegra que vislumbramos vive em solidão. Os pais e a irmã dão-lhe guarida e tentam ultrapassar as barreiras de gelo que lhe muralham o coração, mas nada parece funcionar. Contradizendo o seu nome, Allegra é uma presença saturnina cujo corpo se decora em cicatrizes rasgadas. No torso, uma ferida ainda nem sarou por completo, a carne viva recordando-a do horror que mudou o rumo da vida. Oxalá que as feridas fossem só físicas.

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© Festa do Cinema Italiano

O realizador Niccolò Castelli inspirou-se nos acontecimentos de 28 de Abril, 2011, quando uma bomba custou a vida a 18 pessoas. O atentado terrorista ocorreu em Marraqueche, no Café Argana, e três das vítimas eram compatriotas do cineasta suíço. “Atlas” não é necessariamente sobre esse dia, sendo que pouco vemos do sucedido, a carnificina existindo sob a forma de memórias traumáticas que insistem em penetrar o presente. Mais do que um docudrama, o filme assim se afirma parte estudo de personagem, parte elegia a geração europeia marcada pela violência extremista.

Note-se a importância da identidade europeia que é vinculada desde cedo, quando o prólogo alpino se enche de grandes proclamações sobre qual será o centro, o píncaro do continente. Mais tarde, a mágoa de Allegra toma reverberações culturais, sendo que qualquer lembrança do Médio Oriente e Norte de África se torna numa fonte de transtorno. Algo tão inócuo como a sonoridade de música marroquina lhe manifesta um pesadelo, um flashback, uma tremida e tremenda queda na prisão de uma mente quebrada. Será xenofobia um sintoma do stress pós-traumático?

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Não queremos ser redutivos na análise, especialmente quando “Atlas” tanto se orienta pelo princípio da empatia. Trata-se de um filme que nos quer por no lugar de Allegra, ilustrando o seu suplício através dos códigos e linguagens do cinema. Além disso, procura uma qualidade imersiva, tanto ao nível da sensação como do sentimento. O texto e montagem são as facetas mais claramente sincronizadas com a psique da protagonista. Já falámos da intrusão da lembrança, mas veja-se também a natureza não-linear da história, quanto a narrativa procura o verismo psicológico.

A fotografia reforça esse propósito, focando-se na atriz principal com uma intensidade obsessiva. Em certas passagens, quando a câmara a persegue pelas costas e o mundo se dissolve em amorfia desfocada, “Atlas” quase faz lembrar as fitas com que os irmãos Dardenne redefiniram os paradigmas do realismo europeu. O som continua a estética imersiva, envolvendo o espetador numa subjetividade em pânico. Ouvimos o mundo do mesmo modo que Allegra, sentimos suas vibrações e o tumulto provocado pela cacofonia quotidiana.

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© Festa do Cinema Italiano

Com isso dito, o registo formal não está na raiz de todo este estudo psicológico. Acima de tudo, “Atlas” apoia-se na prestação de Matilda De Angelis enquanto Allegra, seus contrastes e contradições. Longe de consolidar a personagem numa só tonalidade, ela interpreta a mulher traumatizada como uma coleção de confrontos e irracionalidade, sobrepondo a visceralidade reacionária a quaisquer outras facetas. Em certa medida, o seu trabalho retrata uma personalidade em ruínas, obliterada pelo choque e para sempre desconstruída.

Tão estupenda é essa performance, tão boas são as intenções da fita e seu rigor formalista, que nos custa chegar a conclusão negativa. Apesar de tentar elevar a especificidade individual acima de questões políticas, essas mesmas vertentes são a perdição de “Atlas.” No fim, um jovem árabe torna-se na chave para que Allegra supere o seu trauma contra essa mesma cultura. Tal gesto justifica a xenofobia latente no guião, dando tanto valor à perspetiva eurocêntrica que essas figuras redentoras são clichés mais do que são seres humanos. A moralidade corrosiva, o apelo a estereótipos e acidental defesa de preconceitos sistémicos acabam por ser a desgraça de “Atlas.”

Atlas, em análise
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Movie title: Atlas

Date published: 6 de April de 2022

Director(s): Niccolò Castelli

Actor(s): Matilda De Angelis, Helmi Dridi, Angelo Bison, Nicola Perot, Kevin Blaser, Irene Casagrande, Anna Manuelli, Anna Ferruzzo, Neri Marcorè, Giacomo Bastianelli

Genre: Drama, 2021, 90 min

  • Cláudio Alves - 50
50

CONCLUSÃO:

Na busca pelo humanismo, “Atlas” acaba por ser desumano, seguindo o rumo do trauma europeu até ao ponto em que toda uma cultura e seu povo se tornam em fontes de terror. É impossível negar as boas intenções de Niccolò Castelli ou o seu talento atrás das câmaras. Questionamos, contudo, a sua virtude enquanto argumentista e contador de histórias.

O MELHOR: A montagem fragmentada e a prestação imaculada de Matilda De Angelis.

O PIOR: As várias cenas em que Allegra fica aterrorizada pelo mero vislumbre de um homem árabe ou o som de música marroquina colocam “Atlas” na posição complicada de justificar latente xenofobia. A personagem de um pai caricatamente racista parece ser escrita para dar perspetiva moral, mas, no fim, quase parece que o filme concorda com essa odiosa figura paterna.

CA

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