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Azor – Nem Uma Palavra, em análise

Andreas Fontana traz-nos “Azor – Nem Uma Palavra”, uma nova obra com Fabrizio Rongione e Stéphanie Cléau, e que marcou presença no Festival de Berlim em 2021.

MÁSCARAS E SOMBRAS DA ECONOMIA POLÍTICA

Já que se mete um suíço ao barulho, na verdade mais do que um, permitam hoje ensinar-vos, salvo seja, como se faz não só uma bomba mas uma “bomba-relógio”. Dura mais ou menos 110 minutos até explodir este engenho capaz de gerar um grande impacto no modo como encaramos o quadro das relações financeiras defendido pelos interesses económicos de uma certa banca privada do hemisfério Norte, neste caso, situada na democrática Confederação Helvética, e os interesses instalados no hemisfério Sul, junto do poder e das classes dominantes, neste caso, na Argentina e numa Buenos Aires que vivia os dias de brasa da ditadura militar. Este regime foi imposto pelo golpe de estado de 24 de Março de 1976 e durou praticamente até ao final de 1983. A 6 de Dezembro desse ano, o então presidente eleito, Raul Ricardo Alfonsín, assinou a acta de dissolução da Junta Militar, após anos de repressão das liberdades e direitos cívicos mais básicos, repressão que incluiu sequestros de cidadãos enviados para centros clandestinos de detenção onde muitos acabaram por desaparecer – recordem o pranto ainda hoje ouvido das mães da Plaza de Mayo – e numerosos e sistemáticos assassinatos políticos, imperando sempre a pura brutalidade no modo como o regime afastou os seus opositores. Em boa verdade, uma das razões que fizeram soçobrar os pilares da ditadura e os militares que a sustentavam, com a cumplicidade activa de muitos sectores da sociedade civil habituados a navegar nas águas geladas do cálculo egoísta e que dele beneficiaram, foi a derrota numa guerra infame, seja qual for o lado pelo qual a possamos analisar, a chamada guerra das Malvinas. Esse foi um importante revés para o regime que, em 1978, fizera da muito controversa organização do campeonato do mundo de futebol um inegável sucesso. Para os anais da história da alienação dos povos e das mais diversas cartilhas do assobiar para o lado, recordemos que esse campeonato foi ganho pela Argentina, 3-1 na final contra a Holanda. E, como devem saber, a Argentina voltou a ser campeã em 1986, ano que ficou para sempre na memória como o da intervenção da mão de Deus no resultado final (2-1 a favor da Albiceleste), ou melhor, da mão do “divino” Diego Maradona, que assim vingou a quente, num jogo suado mas magnífico, a derrota infligida a frio pelos militares do Reino Unido no extremo sul da América do Sul, a que os britânicos chamaram a guerra das Falkland.

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Mas prometi a fórmula para a bomba e, sim, ela vai ser dada. Depois de levantar o véu sobre o contexto histórico em que decorre a acção de AZOR (AZOR – NEM UMA PALAVRA), 2021, produção suíça, francesa e argentina realizada por Andreas Fontana, a sua primeira longa-metragem de ficção, avancemos para a descrição dos ingredientes necessários. Primeiro um nome, Keys, que ao longo do visionamento do filme iremos vagamente associar ao pré-genérico e a uns breves planos médios de um homem sorridente, figura com ar meio playboy, meio executivo. Depois um espaço, Buenos Aires. Tempo, ano de 1980. Façamos entrar agora um casal, um banqueiro suíço, Yvan de Wiel (Fabrizio Rongione), e sua mulher, Inés (Stéphanie Cléau). Estão no interior do carro que os foi buscar ao aeroporto quando ambos dão conta de uma rusga liderada por militares armados contra civis que acabam encostados de braços abertos contra a parede. O motorista informa o estatuto dos viajantes e do carro invocando a consequente protecção diplomática da embaixada suíça, e o soldado que se aproximara deixa-os passar. Para aquele homem e aquela mulher que alegadamente estavam no início de uma viagem de férias, fica logo muito claro que o país a que tinham chegado não vive em paz. Nem o sossego do cidadão comum era salvaguardado pelas autoridades, antes pelo contrário. Na verdade, o casal organizara a viagem para aquelas paragens depois de saber do desaparecimento do sócio de Yvan, o citado e misterioso Keys. Principal objectivo, superar alguns rumores erguidos sobre a vida dissoluta de Keys e perceber a natureza de algumas contradições geradas pelo seu antecessor junto da “aristocrática” burguesia local. Seria igualmente importante procurar acalmar previsíveis comportamentos desregulados de empresários e políticos, mantendo, com diplomacia e charme (aqui e além assumido pela radiosa presença de Inés, que sabia pavonear-se airosamente no ambiente da alta roda financeira), os investimentos dos ricos e poderosos no banco que representavam, um valor patrimonial herdado da família. Missão impossível? De facto, numa surtida meio secreta ao apartamento de Keys, o sócio Yvan descobre uma lista com nomes, similar a uma outra que ele próprio possuía. Essas duas listas eram praticamente iguais e nelas figuravam os nomes de quem devia ser contactado para que se cumprissem os objectivos delineados em Genebra. Mas, com alguma surpresa, Yvan de Wiel descobre na lista de Keys um nome que não consta da sua, Lázaro. Mistério em cima de outro mistério. Seja como for, não recua e vai em frente naquilo que se pode designar por uma investida no campo minado dos programados encontros com os assinalados clientes. Nuns casos, por razões de estratégia plutocrática, as figuras contactadas não põem em causa a permanência no banco, apesar de um senhor das pampas propor uma solução que desviava para a filha desaparecida, por razões vincadamente políticas, o livre acesso ao capital em detrimento dos outros filhos que considerava uns inúteis e parasitas. Noutros casos, o banqueiro constata a arrogância dos novos ricos, ou dos que já o eram mas ainda mais enriqueceram com a proximidade cúmplice aos representantes corruptos do poder material, assim como do espiritual. Particularmente sinistro será o encontro com um certo Monsenhor Tatoski (Pablo Torre Nilson). Num frente a frente e numa sala convenientemente discreta em pleno Círculo de Armas, clube muito privado onde circulavam personagens pouco recomendáveis, sem o mínimo pudor iremos ouvir falar da circulação de elevadas quantias em dinheiro de uma forma particularmente obscena, sendo os riscos das propostas de investimento no mercado cambial internacional, referidos com a devida prudência por Yvan, encarados como obstáculos aos negócios que se perfilavam no horizonte dos amigos do poder. Por isso os avisos serão ignorados pelo religioso, que por seu lado dava a entender nas entrelinhas das suas declarações e através do seu acutilante e venenoso olhar, não recear perder dinheiro no que provavelmente seriam negócios financiados pelos mais canalhas esquemas de corrupção. Pelo meio, nem se coibiu de dar ao suíço lições de “realismo político”, numa espécie de ameaça sob a forma de conselho para que ele não reproduzisse o modo de ser e estar de Keys, descrito como um homem incómodo e problemático. Para que esse desígnio fosse cumprido, como iremos ver posteriormente, a palavra de ordem dos que eram capazes de vender a alma ao diabo para manter os seus privilégios não era muito diferente do significado de uma palavra oriunda dos códigos de uma certa gíria bancária, “AZOR”, ou seja, uma outra maneira de dizer “Cale a boca. Cuidado com o que diz”. Não restam dúvidas de que quando estão em causa os interesses políticos e financeiros de parcelas muito consideráveis do capitalismo internacional, a linguagem usada por democratas e ditadores, mesmo quando cifrada, possui correspondências inusitadas que mereciam uma séria e profunda reflexão, como se costuma dizer, por parte dos 99% que não fazem parte dos detentores da riqueza e dos cordelinhos que a gerem e dificilmente encontram abrigo ou solidariedade nos restantes 1%.

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Do ponto de vista do processo narrativo, o filme apresenta um argumento estruturado em sequências que se abrem e fecham sobre si próprias, apesar de manterem uma certa continuidade para outras onde um leque de novas personagens surge com maior ou menor influência no desenvolvimento da acção, nomeadamente a que será influenciada pelas vicissitudes encontradas no cumprimento da agenda do casal Yvan e Inés. Entretanto, como seria de prever num país dominado por uma ideologia viril de carácter machista, a presença de Inés será gradualmente preterida, sendo por vezes mesmo empurrada para fora do círculo íntimo das reuniões que o marido continua a promover e frequentar, chegando ao extremo de desaparecer de cena, sobretudo quando o nome Lázaro se revela no seu mais pesado e criminoso significado. E a bomba está assim completa. Daqui para a frente, quem for ver o filme saberá decifrar o que eu quis dizer no início desta crítica como sendo a explosão de grande impacto sobre a maneira como devemos olhar para as máscaras usadas em certas ligações perigosas da economia e da política quando os protagonistas que as usam, por mais civilizados que se mostrem, aceitam negociar com regimes onde o poder se exerce para benefício de uma elite, muitas vezes assegurando a continuidade de certos negócios privados que assim perduram, mas recorrendo a métodos subdesenvolvidos e modelos nada democráticos.

Destaque ainda para a reconstituição de uma época marcada pela ostentação dos que mantinham os fluxos financeiros longe das perturbações da economia local, enviando para o estrangeiro as suas pequenas e grandes fortunas, dos que nunca se privaram de usufruir uma existência luxuosa, independentemente das crises políticas e financeiras. Muitos até se queixavam em privado das arbitrariedades da ditadura, mas hipocritamente não mostravam em público vontade ou coragem para as denunciar. Na definição dos ambientes da alta burguesia, quer urbana quer rural, a Direcção Artística não deixou de salientar o conforto material que facilmente contrastava com o da maioria da população argentina. De qualquer modo, procurou, e bem, dar os sinais de ostentação com subtileza e realismo, sem nunca os polarizar de forma exuberante, para não se correr o risco de assistirmos a uma mera caricatura das classes abastadas, que acabaria por conter um fraco ou nulo efeito crítico.

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Na banda sonora, onde até o muito português “Coimbra” se ouve, as sonoridades escolhidas pontuam com alguma eficácia os momentos mais salientes, conferindo uma alma suplementar ao retrato da época, o início dos anos 80.

Um filme muito interessante, poderoso, complexo, que nos obriga a pensar no que vemos e não vemos, que seria uma pena deixar cair na voragem das estreias que se anunciam em catadupa para as próximas semanas e que vão afastar algumas pérolas para o streaming onde o cinema pode ser visto, claro que sim, mas nunca como no grande ecrã de uma sala.

Azor - Nem Uma Palavra, em análise
Azor

Movie title: Azor

Date published: 21 de April de 2022

Director(s): Andreas Fontana

Actor(s): Fabrizio Rongione, Stéphanie Cléau, Carmen Iriondo

Genre: Drama, 2021, 100min

  • João Garção Borges - 70
  • José Vieira Mendes - 75
73

CONCLUSÃO:

PRÓS: Bela e segura primeira obra de ficção que nos mostra as relações perigosas de um representante da alta finança com as esferas sombrias da sociedade civil e militar, com os silêncios intencionais ou forçados de homens e mulheres, e os muitos caminhos mantidos em segredo pela ditadura militar argentina no início dos anos 80.

CONTRA: Nada que impeça a visão deste corajoso filme, onde uma coerente linguagem cinematográfica se conjuga com um argumento e matéria escaldante para obter um resultado “explosivo” de grande eficácia narrativa.

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