MOTELx ’23 | A Semente do Mal, a Crítica
A competir pelo Prémio Méliès d’argent – Melhor Longa Europeia encontramos a longa de terror portuguesa “A Semente do Mal”, da autoria de Gabriel Abrantes. O galardoado autor de “Diamantino” aventura-se aqui, pela primeira vez, nos universos do horror.
“A Semente do Mal”, ou “Amelia’s Children”, como é conhecido no seu título internacional, é a mais recente obra do luso-americano Gabriel Abrantes, um dos mais consolidados talentos do cinema independente português. Sempre apaixonado por um casamento pouco usual entre uma febre tecnológica e localizações misteriosas, por duplos e por comédia que combina o mais alto humor com a mais comum da gargalhada, Abrantes é um realizador como poucos outros, com uma estética e temáticas sempre identificáveis e distintas.
“Amelia’s Children”, estreado em Portugal no MOTELx (com direito a estreia europeia aqui), a 16 de setembro, na nobre Sala Manoel de Oliveira, marca a entrada de Gabriel Abrantes num território que lhe era até então bastante estranho. A sátira futebolística “Diamantino”, premiada na Semana da Crítica de Cannes, tocava em temáticas ligadas à ficção científica, tal como tantos outros dos seus filmes, como por exemplo a hilariante curta “Freud Und Friends” (2015), o mais delicioso e pervertido postal de visita a Lisboa.
Todavia, nunca havia Gabriel entrado, de porta escancarada, no universo do terror. Fá-lo com “A Semente do Mal” (desta vez sem o seu habitual colaborador Daniel Schmidt), uma obra camp e onde o grotesco ganha raízes. Neste filme, apresentam-se todos os estereótipos da casa assombrada e do universo das bruxas, num enredo que não se faz nada original. As personagens são algo obtusas (como é habitual neste género), demoram a reagir aos estímulos óbvios de perigo e a sequência da ação, do início ao fim, não é propriamente surpreendente.
Para quem (eu) no passado se maravilhou com as construções inesperadas de curtas-metragens como “Palácios de Pena” ou “Ennui Ennui”, “Amelia’s Children” não é Gabriel Abrantes no seu apogeu de criatividade desmedida. Nem perto disso. Não obstante, esta sua incursão no terror não deixa de criar novos caminhos para o terror português através das sensibilidades muito próprias do seu criador.
Esta é a história de Edward (Carloto Cotta, “Diamantino”), um jovem nova-iorquino – a acção deste terror à portuguesa abre no aprazível Bryant Park, NYC – que nunca conheceu os seus pais, tendo sido criado por uma família adotiva. Eis que um teste de ADN oferecido pela sua namorada Riley (Brigette Lindy-Paine, a irmã em “Atypical” da Netflix) lhe permite descobrir um parente de sangue que vive nas distantes montanhas do norte de Portugal.
Edward e Riley voam assim para o outro lado do Atlântico para que Edward possa, finalmente, conhecer a sua mãe há muito perdida e o irmão gémeo que descobriu ter. Todavia, mal Edward e Riley chegam à enorme mansão da sua mãe Amélia (Alba Baptista na versão jovem e Anabela Moreira, quase irreconhecível na perturbadora versão idosa) são recebidos por dois anfitriões pouco recomendáveis.
Pouco a pouco, Edward descobre que partilha uma herança temível com a sua mãe Amélia e o seu irmão Manuel (também interpretado por Carloto Cotta, o mestre hábil da figura do duplo neste filme) e enquanto Riley quer sair da mansão o quanto antes, Edward começa a ficar enamorado pela sua família, pela casa e por uma herança familiar sobrenatural.
A SEMENTE DO MAL OU COMO ANABELA MOREIRA NOS ROUBA O CORAÇÃO
2023 é o ano de Anabela Moreira? Na imagem: Anabela Moreira noutra obra de 2023 onde brilhou (e bem) – “Mal Viver”.
E embora a progressão do enredo de “A Semente do Mal” se faça de lugares-comuns do terror, há muito a adorar nas pequenas peculiaridades que elevam a obra. Desde já, Anabela Moreira, praticamente irreconhecível por trás de uma montanha de maquilhagem, é uma visão de caricatural bizarria a não perder, num comentário hiperbólico e delicioso à busca por beleza e juventude eterna levada ao extremo.
A Anabela pertence o humor mais físico do filme, o camp mais genuinamente camp, e também algumas das falas mais intrigantes do filme. Quando a sua Amélia maldiz norte-americanos, chamando-lhes “puritanos com paixão por armas”, sentimos que Gabriel Abrantes está a reflectir sobre a sua própria herança. Ele também é, em certa parte, a personagem central norte-americana que observa um Portugal que é sua herança e que ao mesmo tempo estuda e representa parcialmente como elemento externo (o autor vive em Portugal, mas tem um olhar crítico que nos aponta para este encontro entre culturas e para a posição de observador).
De certa forma, sentimos que o realizador projeta parte da sua identidade na personagem central, o que resulta nalguma profundidade de enredo, ao apresentar-nos lendas e folklore, bem como a paisagem deslumbrante do norte de Portugal, como parte de um sub-enredo claro e pertinente acerca de identidade cultural e sentimento de pertença.
CAMP E MAIS CAMP
Quanto à figura do duplo, tão bem explorada em “Diamantino” com as irmãs Moreira, não se lhe fica nada atrás em “A Semente do Mal”. Carloto Cotta desdobra-se em dois, o afável e inocente Edward e o serranho, estranho e pouco comum Manuel, a sua metade portuguesa. Carloto é expressivo e excêntrico, distinto e imperdível entre os seus papéis. É tão eficaz e irreverente quanto havia sido em “Diamantino” e ficamos felizes que continue a ser a ” musa” de Abrantes. Que musa!
Como habitual, além do camp abundante, a história é também algo Freudiana (claro está, como não?) e queer coded ( com codificação queer – representação subtextual de territórios queer) . E se tal é um clássico de Gabriel Abrantes, não é de todo um clássico do cinema português. Por isso, agradecemos a este realizador português parcialmente “Made in USA” a criação de universos de terror distintos, que bebem tanto das influências norte-americanas (“Rosemary’s Baby” é uma clara influência) como das lendas e mitos do velho continente.
Singular como sempre, mesmo numa obra de terror feita de chavões, assim é “A Semente Do Mal”, um filme que se consegue elevar também através da visão peculiar e ímpar do seu criador, alguém que olha para a figura do “outro” com olhos bem abertos.
O MOTELX’23 tem lugar no Cinema São Jorge, em Lisboa, entre os dias 12 e 18 de setembro. Aqui, o terror é sempre bem-vindo. Acompanhem a nossa cobertura (e as sessões).
A Semente do Mal, em análise
Movie title: A Semente do Mal
Movie description: Quando a busca de Edward pela sua família biológica o leva e à sua namorada, Ryley, a uma magnífica vivenda no alto das montanhas no norte de Portugal, ele fica empolgado ao conhecer a sua mãe há muito perdida e o seu irmão gémeo. Finalmente, ele vai poder descobrir quem é e de onde vem. Mas nada é o que parece e Edward logo descobrirá que está ligado a eles por um segredo monstruoso.
Date published: 17 de September de 2023
Country: Portugal
Duration: 91'
Author: Gabriel Abrantes
Director(s): Gabriel Abrantes
Actor(s): Carloto Cotta, Anabela Moreira, Alba Baptista, Brigette Lindy-Paine,
Genre: Terror, Comédia, Sobrenatural
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Maggie Silva - 78
CONCLUSÃO
“A Semente do Mal”, seguindo um enredo algo comum dentro do mundo do terror, sabe brincar com os estereótipos e é, sem margem para dúvida, uma história com selo de qualidade Gabriel Abrantes.
Pros
- Hilariante e camp, “A Semente do Mal” sabe trabalhar o mais simples dos enredos, através de um argumento que enfatiza males societários e o grotesco.
- O design de produção, e aquela ilustre mansão, a anos luz daquilo a que o parco terror nacional nos tem oferecido.
- Anabela Moreira, a nossa estrela cintilante de 2023, que depois de nos maravilhar e destruir irremediavelmente com “Mal Viver”, voltou a conquistar-nos aqui.
- Carloto a duplicar.
- Cameo de Rita Blanco, claro está.
Cons
Ora, por muito bem explorada que seja a narrativa e por impressionantes que sejam os sets e toda a execução, a verdade é que os pontos centrais da história já foram vistos muitas vezes. A inovação está nos detalhes, não no ponto de partida ou de chegada…(embora o criador esteja claramente ciente e brinque com os conceitos).