Pormenor da capa de Blue (Joni Mitchell), foto de Tim Considine

Joni Mitchell, Blue | em análise

Joni Mitchell assegurou um lugar entre os grandes da música há 50 anos, com Blue. Aliando a voz ao poético, a sua obra prima é um eterno clássico.

Diz-se que a felicidade está nas coisas pequenas da vida. Ou que o sucesso está nos detalhes. E é certo que uma obra de arte vive dos pormenores. Se é que há uma fórmula para tal, uma especial atenção por parte do artista às emoções encapsuladas nas mundanas particularidades parece conquistar a maior parte dos críticos. A capacidade de imortalizar nas letras de canções pequenos acontecimentos quotidianos sob um olhar poético é, não só um dos superpoderes que mais gozo dá a qualquer compositor, mas também um passe quase certo para superlativos como “the next big thing” ou, no mínimo, um seguimento aproximado por parte de múltiplas publicações de música.

Com esta introdução, podia-me referir a Lana del Rey ou Weyes Blood. Ou até ao fenómeno Taylor Swift e a sua mais recente aprendiz Olivia Rodrigo. Mas certamente não é o caso e arrisco-me a dizer que, mais do que dela tirar inspiração, a música e carreira destas artistas não existiria hoje não fosse Joni Mitchell. É particularmente relevante a sensibilidade poética e o foco minucioso nos pormenores, que de outra forma seriam insignificantes, e que atingiram um expoente em Blue. Para além de ter impactado contemporâneos como Cohen e Dylan, a música e o estilo próprio de Mitchell continua a ressoar atualmente, de forma notável em artistas como Laura Marling e Joan Shelley, os seus equivalentes modernos, mas estendendo-se também a Jessica Pratt, Sun Kill Moon, Bedouine, e até Lorde, St. Vincent e HAIM.

Blue, Joni Mitchell
Capa de Blue (Joni Mitchell), foto de Tim Considine

Como se pode ver pelos artistas mencionados, a maior parte mulheres, Mitchell têm uma ligação especial com o feminino. A narrativa à volta de Blue por vezes tende a ser abafada por discussões que se prendem com o retrato que o álbum faz de uma mulher. É preciso apontar que, apesar de ser considerado por muitos como um dos melhores álbuns de sempre, Blue continua a ser associado aos homens que servem de objeto às suas canções. Não há canção como “A Case of You”, mas isso não é o suficiente para a distanciar de Leonard Cohen. O nome de Graham Nash também é frequentemente referenciado a propósito de “My Old Man”. E, se por um lado, muitos vêm nas canções uma mulher independente que toma controlo do rumo da sua vida, outros tantos são rápidos a classificar o álbum como demasiado emocional e lamechas, contribuindo para a aceitação de estereótipos femininos.

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Toda esta discussão parece ter evoluído como uma bola de neve e confrontando o objeto de arte em si (porque só isso interessa na discussão) fica esclarecido que, apesar de Mitchell ter sido sempre uma mulher com garra e que dava a cara pelos seus ideais, Blue não pretende fazer comentários sobre o que é ou devia ser uma mulher. O ruído criado ofusca o que é realmente precioso no registo: a forma sincera e pessoal como Joni conta a sua história particular, desde relações amorosas a saudades de casa e, acima de tudo, a tristeza e solidão profundas que a conduzem à procura de algo verdadeiro, que não passe rapidamente como um rio, mas que fique tatuado como uma canção.

“BLUE” | Joni Mitchell, Blue

Blue continua relevante hoje em dia por ser universal. Mitchell abre o registo com a frase “I am on a lonely road and I am travelling/ Looking for something, what can it be?”. No fundo, é esta a linha orientadora do álbum. Há um constante questionar de tudo e uma procura de algo, mesmo quando ainda não é certo o quê. Parte do desgosto amoroso retratado nas canções prende-se com esta inquietação. Por momentos, a narradora acredita que o seu parceiro poderá responder por completo à sua busca e, quando se apercebe que tal não acontece, vem a angústia.

É em “Blue” que o questionar, a procura e a dor confluem para formar um dos marcos do álbum. Mitchell interpela diretamente a tristeza, dedicando-lhe a canção e comparando-a a uma tatuagem (“Ink on a pin / Underneath the skin / An empty space to fill in”). Logo após a segundo estrofe, Joni demarca-se do movimento hippie num conjunto de versos hoje icónico, e afirma não estar convencida de que as noites do “free love” sejam a resposta que busca: “Acid, booze and ass/ Needles, guns and grass/ Lots of laughs/ Lots of laughs”. Na estrofe seguinte, o objetivo é reiterado, na frase “Well, I don’t think so/ But I’m gonna take a look around, though”. A “lonely road” de “All I Want” reaparece em “Blue” e torna-se claro que a solidão desta personagem não é simplesmente um coração partido. É o sentimento de não pertencer e não se identificar com nada a que possa chamar de verdadeiro ou seu.

“CALIFORNIA” | The Johnny Cash Show – 7 de outubro, 1970

“California” é talvez o momento em que Mitchell mais se aproxima de algo semelhante a um repouso. A alegria com que a cantora entoa versos como “California, I’m coming home” ou “Oh, you make me feel good rock ‘n roll band/ I’m your biggest fan” é quase contagiante e pode ser o suficiente para a ironia nos passar ao lado, em expressões como “I’ll even kiss a Sunset pig” ou “He gave me back my smile/ But he kept my camera to sell”. Na canção que muitos considerariam a mais espevitada do alinhamento, com a guitarra sincopada de James Taylor e o pedal steel, a narradora mostra-se transtornada pelo mesmo sítio que, versos atrás, chamava de casa (“All the news of home you read/ More about the war”). Em “California”, a ironia não é meramente cómica. Mostra a dualidade exemplificada na frase “But my heart cried out for you, California”. Mitchell chora de saudades pelo mesmo sítio que, devido às agitações políticas, “just gives you the blues”.

Apesar de Blue ser exímio na exploração da dor que vem das saudades e do fim das relações amorosas, o seu momento mais desolador é “Little Green”. Tal como em “Blue”, “Little Green” recolhe aspetos comuns a outras canções do álbum, mas sempre de forma significativamente mais matura e subtil. Trata-se de uma carta à filha que a artista deu para adoção, por não ter condições para a manter. Se em “River” a narradora admite as suas falhas com alguma pena própria, em “Little Green” a irresponsabilidade é abordada delicadamente, nas expressões “Call her green for the children who have made her” ou “child with a child pretending”, justificando a difícil decisão que tomou (“Little Green, have a happy ending”). O poema termina deixando uma nota a Little Green: “There’ll be icicles and birthday clothes/ And sometimes there’ll be sorrow”. “Little Green” é um dos melhores trabalhos de Mitchell no que toca ao lirismo, merecendo ser lida como um verdadeiro poema, no qual o sujeito espelha todas as tensões, angústias e também esperança que experienciou numa situação tão extrema.

“LITTLE GREEN” | Joni Mitchell, Blue

Sendo Blue um album com uma importância histórica tão grande e uma sensibilidade poética excecional, é comum não se dar tanto destaque à música em si. Mas, na verdade, a performance vocal de Joni é única e a instrumentalização ainda mais irrepreensível que o conteúdo lírico, sendo admirável que todas as canções tenham sido escritas e produzidas por Mitchell e Mitchell apenas. Contam-se pelos dedos de uma mão os instrumentos usados no projeto. Contam-se também pelos dedos das mãos os momentos menos bons desta simples e íntima instrumentalização. Sempre com critério, dificilmente é sentida a falta ou excesso de algo, mesmo com a forte presença do som cheio do piano. Melodicamente, as influências jazz de Joni sempre a levaram a experimentar com intricados arranjos de piano e também intervalos pouco comuns na linha vocal. Em “My Old Man” é notável o uso competente do cromatismo (tanto melódico como harmónico) e das modulações ao longo da canção.

Relativo à composição musical, talvez não haja canção tão perfeita como “A Case of You”. O controlo vocal da cantora é total, trepando rapidamente por arpejos e oscilando entre oitavas como se fosse tarefa fácil. As linhas melódicas são exemplos de que a beleza pode, por vezes, ser bastante objetiva e universal. Há algo na voz de Mitchell que, aliado à letra e à instrumentalização sóbria da faixa, dá uma qualidade ambígua à canção, podendo ser uma canção de amor mas também um suspiro de amargura profunda. Tudo em “A Case of You” contribui para que seja atualmente uma das canções mais reconhecíveis da artista.

“A CASE OF YOU” | New Victoria Theatre, Londres – 22 de abril, 1974

São vários os elementos que fazem Blue ressoar universalmente. Destacam-se as suas temáticas (tristeza e solidão nunca estão realmente fora de moda), a relativa acessibilidade das suas letras, a simplicidade da instrumentalização, algumas das linhas melódicas mais encantadoras da música pop e a voz emotiva de Mitchell, que colou de forma bastante subtil os restantes elementos, numa altura em que o LP se estabelecia como a verdadeira tela de um músico, por oposição aos singles.

Aos 27 anos, Joni Mitchell já conhecia a fama e os aplausos mas certamente não imaginava o que se seguiria ao lançamento de Blue. Tanto Ladies of the Canyon como Clouds Song to a Seagull são registos exemplares, mas, para muitos, foi Blue que escreveu o nome da artista nos cânones e imortalizou o seu trabalho. “Blue, songs are like tattoos”, canta na faixa-título. E de que maneira.

Joni Mitchell, Blue
Blue, Joni Mitchell, Reprise Records

Movie title: Blue

Movie description: O nome de Joni Mitchell ficou tatuado na cultura popular com a sua obra-prima Blue, de 1971. Em apenas 10 canções que são também verdadeiros poemas, a artista manobra as melodias como quem controla um yoyo, subindo e descendo livremente pela escala, por vezes quase a deslaçar, mas a sua perícia surpreende-nos sempre. Mesmo angustiada, Mitchell parte à procura de respostas, num constante questionar e o profundo desejo de encontrar um poiso verdadeiro e seu. Juntando o confessional poético a melodias e arranjos irrepreensíveis, há 50 anos que Blue é um essencial para qualquer pessoa disposta a escutar o eu por trás do azul saturado da capa.

Date published: 22 de June de 1971

Author: Joni Mitchell

Genre: folk, singer-songwriter, folk-pop

Joni Mitchell - Website

  • Pedro Picoito - 94
94

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