"O Terceiro Assassinato" | © Fuji Television Network

Cannes em Casa | O Terceiro Assassinato (2017)

Kôji Yakusho sagrou-se campeão no Festival de Cannes, tendo ganho o prémio para Melhor Interpretação Masculina pelo seu trabalho em “Perfect Days” de Wim Wenders. O ator há muito se afirma como um dos grandes nomes do cinema nipónico, tendo colaborado com nomes tão fortes como Kiyoshi Kurosawa, Takashi Miike e Shohei Imamura. De facto, até já trabalhou com Hirokazu Kore-eda cujo último filme, “Monster,” ganhou o prémio para Melhor Argumento na mesma cerimónia em que Yakusho arrecadou a glória. Aconteceu em 2017, quando o maior retratista da família japonesa enveredou pelos caminhos do mistério criminal – “O Terceiro Assassinato” teve estreia em competição no Festival de Veneza e viria a ganhar muitos prémios no circuito asiático, especialmente para o seu elenco.

Tudo começa de forma muito inesperada para um filme com assinatura de Hirokazu Kore-eda. Não estamos entre uma família disfuncional ou no meio de um quotidiano traumatizado. Nada se vê de uma existência depois da morte em jeitos de meta-cinema ou de um óbvio comentário sociopolítico sobre o Japão dos nossos dias. Pelo contrário, é violência pura e dura que nos desperta os sentidos. Nas margens de um rio, na penumbra da noite, um homem espanca outro, batendo-lhe na cabeça até que espirros de sangue lhe pintam a cara escarlate. O homicídio feito, despeja-se gasolina sobre o corpo que depressa arde, iluminando a negrura.

Diálogo não existe neste prólogo solene, mas ficam as fortes imagens de uma desumanidade plena, perdendo-se em frenesim no ato de matar. Fica-nos a face de Kôji Yakusho, lambido pela luz do fogo, seu olhar vazio enquanto contempla o resultado da sua agressão. Ao longo de uma narrativa complicada, não haverá maior mistério que esta cara, este homem sobre o qual toda narrativa se irá revolver, mesmo quando se encontrar bem longe da cena. Ele é Misumi que, começada a história em si, está novamente atrás das grades. Acontece que este não é o seu primeiro homicídio, tendo já antes cumprido pena por esse crime.

o terceiro assassinato cannes em casa
© Fuji Television Network

Na altura, o juiz poupou-o à pena de morte, sendo as circunstâncias indicativas de algo não premeditado, com origem em angústias económicas e um roubo que correu mal. Agora, o filho desse mesmo juiz encontra-se na equipa de advogados encarregue de defender Misumi que, pelo que parece, não tem intenções de negar culpabilidade. Só há um problema, a confissão muda todos os dias, com motivos transformados e em continua alteração, como se o assassino brincasse com os outros ou quiçá esteja ele mesmo perdido num ciclo de confusão sem fim. Shigemori, o advogado e nosso protagonista livre, irá procurar a verdade, mas a tarefa não é fácil.

Também não é lá muito apoiada pelos colegas ou adversários em tribunal, nem mesmo pelo patriarca. Todo o sistema parece pronto a aceitar a culpa de Misumi sem qualquer problemática ou misericórdia, parecendo a pena de morte inevitável. Como se tornará óbvio, a verdade é ideia relativa e, à medida que se desenterram segredos, a resposta absoluta ao mistério parece cada vez mais distante. Será que Misumi matou em jeito de crime passional, querendo fazer as vontades à esposa do assassinado, sua potencial amante? Ou será que, sem dinheiro, tentou assaltar aquele que era seu ex-patrão e tudo deu para o torto? Será que o homicídio foi justiça por outros meios?

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A figura de Sakie, filha do morto, tornar-se-á chave do enigma, ou talvez só mais uma distração. Interpretada por Suzu Hirose, ela é uma lembrança da filha com que Misumi perdeu contacto no rescaldo da sua primeira condenação. Ela inspira noções de responsabilidade patriarcal, mas também pode ser vítima de forças malignas dentro do lar. A atriz permite que toda a possibilidade se manifeste dentro da figura, mas, pelo fim, temos ideia de qual será a verdade. Ou, pelo menos, sabemos a verdade relativa para Sakie que virá a tribunal suplicar pela vida do assassino. Seus apelos irão cair em ouvidos moucos.

Aí sim, Kore-eda revela as cartas que tem na mão. Afinal, “O Terceiro Assassinato” não está assim tão distante da restante obra do autor, construindo-se enquanto crítica social contra a pena de morte. É esse o crime terceiro pressagiado pelo título, um homicídio perpetuado pelo estado ao invés do indivíduo, pois presume valores sem relatividade e verdades simples, tudo preto no branco. O realizador renega essas moralidades redutivas, apelando à forma típica do drama judicial para propor sua visão de cinema político, meio entretenimento meio ativismo. Nem sempre resulta e, ocasionalmente, parece forçado. No fim, sentimos o propósito do exercício.

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Entendemos que o formato cheira a mudança e que até o widescreen é ponto de rutura na filmografia. Só que o âmago se mantém intacto, perfeitamente consistente com o que veio antes e depois. Também noutro aspeto, “O Terceiro Assassinato” se assume enquanto obra típica de Kore-eda. Referimo-nos, pois claro, ao seu foco no trabalho de ator. Já falámos de Suzu Kirose, mas todo o elenco está de parabéns, com especial aplauso para Masaharu Fukuyama no papel de Shigemori. Depois da sua tour de force em “Tal Pai, Tal Filho” presumiríamos que esse seria o seu píncaro no cinema deste autor. Contudo, é neste género mais tenebroso que as suas subtilezas melhor se mostram.

No entanto, não teríamos escolhido este filme para a rubrica Cannes em Casa se Fukuyama fosse o melhor ator em cena. “O Terceiro Assassinato” pertence a Kôji Yakusho, seu retrato multifacetado de uma figura que é difícil compreender, mas cujos pronúncios crípticos mexem com a alma e perturbam o coração. Quase sempre visto atrás de vidros em diálogo prisional, Misumi não é nenhum Hannibal Lecter de segunda categoria. Ao invés disso, precipita-se em questionamentos existenciais, suas verdades e mentiras um devaneio filosófico mais que uma manipulação cliché. Na sua última cena, o ator corta-nos a respiração, mantendo a ambiguidade até ao fim ao mesmo tempo que abre a porta para uma luz ao fundo do túnel. Quiçá haja a possibilidade de redenção. Quiçá não estejamos todos perdidos. Oxalá.

“O Terceiro Assassinato” está em streaming na FILMIN Portugal. Essa mesma plataforma tem outros títulos de Hirokazu Kore-eda no catálogo. Todos valem a pena ver.

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