Entrevista Carla Símon Scope 100 Verão 1993

Scope 100 | Entrevista a Carla Simón

Verão 1993” foi o filme escolhido pela iniciativa Scope 100 para estrear em cinemas portugueses. Aqui temos uma entrevista exclusiva com Carla Simón, a realizadora catalã deste comovente estudo de personagem.

Scope 100 é uma iniciativa europeia que também já chega a Portugal. Através dela, foi dada oportunidade a 100 cinéfilos portugueses para verem cinco filmes europeus e depois votar naquele que deveria vir a ter distribuição comercial no nosso país por parte da Alambique. “Verão 1993” da cineasta catalã Carla Simón foi a obra selecionada e estreará dia 18 de outubro, após ter já sido exibida na Cine Fiesta deste ano.

Trata-se da primeira longa-metragem da realizadora e de um gesto autobiográfico por parte da mesma. No verão de 1993, a pequena Frida, com seis anos, vai viver com os seus tios, e a filha deles Anna, após a morte da mãe por complicações relacionadas com a SIDA. Entre os preconceitos de uma sociedade aterrorizada com o flagelo do vírus, as dinâmicas de uma família abalada pelo luto e a fragilidade de uma criança confrontada com tamanha perda, este não é um verão particularmente pacífico.

Sacrificando estruturas dramáticas, Simón conjura uma narrativa mais próxima de uma tapeçaria de impressões e memórias sempre experienciadas através da perspetiva limitada da protagonista infantil. Entre o naturalismo e um impressionismo emocional, “Verão 1993” é um estudo de personagem de invulgar delicadeza e nuance, que nunca chama atenção para o virtuosismo da sua construção ou a dificuldade da sua premissa.

Como parte da sua colaboração com a Scope 100, a Alambique Filmes veio ainda a possibilitar a realização de uma invulgar entrevista entre os cinéfilos que votaram no filme e a realizadora do mesmo. Foram selecionadas cinco perguntas do corpo votante da iniciativa e agora são aqui publicadas, em exclusivo, as respostas de Carla Simón. Note-se que as respostas foram editadas para maior claridade.

carla simon entrevista scope 100 verao 1993
“Isto não é a minha vida, é um filme.”

CÁTIA SANTOS: De que forma se distanciou da história, se se distanciou ou não, se houve algum processo específico, tendo em conta que se trata da sua história?

CARLA SIMÓN: Eu diria que essa foi a parte mais difícil de fazer o filme.

Quando comecei a escrever o argumento, estava a pensar sobretudo na minha própria experiência. Não é que eu me lembre de muita coisa, porque era muito pequena quando tudo aconteceu. Quando somos crianças e acontece alguma coisa triste tendemos a esquecer. Eu não tinha muitas memórias, mas lembro-me daquilo que senti.

Depois, falei muito com os meus novos pais, os meus pais adotivos, e eles explicaram-me várias coisas. A minha mãe tem uma memória muito boa, por isso lembrava-se de coisas específicas que vivemos juntas quando eu me mudei para casa deles. O meu pai sempre tirou muitas fotografias de mim e dos meus irmãos quando éramos crianças. Estas fotografias ajudaram a colmatar as falhas nas minhas próprias memórias. As fotografias mantêm as memórias vivas e contam uma história. Ao mesmo tempo, são imagens, o que permitiu utilizá-las como inspiração para o filme.

Diria que o primeiro rascunho do argumento era basicamente tudo o que eu me lembrava e aquilo que a minha família se lembrava. Era sobre momentos reais, mas eu percebi que o que tinha não era um filme, mas uma coleção de memórias. Foi aqui que tive de me distanciar.

Comecei a ler sobre psicologia infantil e sobre como uma criança lida com a perda de alguém e o processo do luto. Também li muito sobre o processo de adoção, o que me ajudou a perceber como é que a personagem da Frida se sentiria nesta situação. Também me ajudou a compreender os meus próprios sentimentos e aquilo que eu senti quando era criança. (…)

No filme, quatro ou cinco cenas terão acontecido realmente, mas o resto é ficção, apesar de aquilo que ele transmite ser completamente verdadeiro. (…) Por exemplo, eu costumo dizer que nunca bati na minha irmã quando brincávamos no bosque. Isso só acontece no filme. Eu também tornei Frida mais maldosa do que eu (…).

(…) [Criar distância] foi uma das partes mais difíceis durante a rodagem. Eu estava a ver o que acontecia à frente da câmara e a pensar que não tinha vivido aquilo exatamente assim. Tive de aprender a olhar e a pensar naquilo que era melhor para o filme, e não tanto na minha memória dos acontecimentos. Senão, perderia o tom naturalista e tudo se tornaria mais rígido e acabaria a dirigir os atores de forma muito mais específica.

Tudo isto me ajudou a perceber que ‘ok, isto não é a minha vida, é um filme’. Foi assim que consegui estabelecer essa distância, mas não foi fácil.

Para leres as outras quatro perguntas, assim como as detalhadas respostas da realizadora, segue para a próxima página. Continua aqui:




DIOGO VIEIRA: Dada a excelente caracterização e sendo uma história pessoal, até que ponto foi difícil e pessoal recriar esse passado? Para si e para o espectador.

CARLA SIMÓN: Na verdade, o meu verão de 1993 foi bastante diferente daquele retratado no filme, porque os momentos que estão no filme e que serviram de inspiração para certas cenas não aconteceram apenas durante um verão, mas sim durante um longo período de tempo.

A primeira decisão que tive de tomar, quando estava a escrever o argumento, foi decidir que o filme se iria passar apenas durante o primeiro verão que Frida passa na casa da sua nova família. Quando eu me mudei para casa da minha nova família, também no início do verão de 93, mudei-me com a minha tia (…) e com os meus avós. Nós passámos o verão todos juntos e havia sempre muita gente à minha volta, por isso foi como se ainda não tivesse deixado inteiramente o meu mundo para trás. Só senti que iria começar uma nova vida quando eles foram embora e chegou a altura de começar a escola.

(…) Foi bom para mim focar-me neste momento temporal. Também foi muito bonito ter o filme a passar-se nos anos 90, pois é o período do meu crescimento. A maior parte da equipa do filme cresceu nos anos 90 e por isso sentimos todos uma certa nostalgia quando surgiam alguns jogos e brinquedos ou outras coisas que os departamentos de arte e guarda-roupa foram encontrando. Essa foi a parte divertida.

Por outro lado, era muito importante ter o filme a passar-se em 93 devido à causa de morte dos meus pais.  Ambos morreram de complicações relacionadas com o vírus da SIDA e, nesta época, as pessoas que contraíram HIV e SIDA não tinham opções de tratamento. Os medicamentos que permitiram que as pessoas pudessem viver com o vírus do HIV surgiram em 1996, o que foi tarde demais para os meus pais. Eu queria ter este contexto.

(…) Em Espanha, a SIDA teve um enorme impacto. Penso que fomos o país europeu onde mais pessoas morreram devido a complicações relacionadas com o vírus. Apesar de hoje já não ser um assunto tabu, como era há não muito tempo atrás, ainda é complicado falar sobre isso.

(…) Achei que era importante falar sobre essa geração que viveu os primeiros momentos de liberdade a seguir à ditadura franquista. Foram tempos de grande intensidade, muitas festas e muitas drogas. Tempos que tiveram um impacto na geração seguinte. Era muito importante ter esse contexto sem o tornar o tema principal do filme.

PEDRO PÃO: Eu gostava de saber até que ponto foi planeada e como surgiu a ideia de trabalhar uma história biográfica na sua primeira longa metragem.

CARLA SIMÓN: Não foi uma coisa que tivesse sempre pensado na minha cabeça. Acho que pouco a pouco, me apercebi que qualquer história que conte enquanto cineasta vai sempre ter um elo de ligação com a minha vida.

Eu estava a estudar na London Film School e os professores diziam sempre que era bom começar com coisas que nós conhecíamos. Foi neste momento, quando estava na escola, tinha vários amigos e estava rodeada de pessoas de todo o mundo, que comecei a pensar naquilo que me tornava diferente. (…) Então percebi que era a minha história pessoal e o lugar de onde vim, as pessoas com quem cresci e a minha família.

(…) Na escola, fiz algumas curtas-metragens. Uma era um documentário sobre pessoas que nasceram com HIV. A minha mãe não me transmitiu o vírus quando nasci e eu precisava de saber qual o impacto desse acontecimento na vida de alguém. Depois deste documentário, fiz uma curta sobre dois irmãos que encontram a sua avó morta. Eu fiz esse filme logo depois da morte do meu avô.

Queria falar sobre a morte porque foi algo que me tocou muito e também decidi trabalhar com crianças porque percebi que era algo que gostava de fazer. Sempre trabalhei com crianças enquanto monitora de campos de férias e agora até dou aulas sobre cinemas a crianças. Depois desta curta, percebi que o tema de crianças a enfrentar a morte era algo que queria explorar. (…)

Antes de ter ido para Londres, tentei mesmo escrever a história da minha mãe, mas percebi que seria impossível porque eu não a cheguei a conhecer realmente. Eu não sei como era a sua vida. O filme seria o contar da história a partir do meu próprio ponto de vista. (…) A ideia surgiu em 2013, mas só em 2014, após terminar o curso, comecei a escrever o filme.

carla simon entrevista scope 100 verao 1993
“Todas as curtas que fiz levaram ao VERÃO 1993.”

A entrevista continua aqui:




LUÍS FERREIRA: Que planos tem para o futuro enquanto realizadora? Que temáticas pretende abordar em futuras longas metragens?

CARLA SIMÓN: Acabei de filmar uma campanha para o Dia Mundial da Luta Contra a SIDA. É uma espécie de ficção educacional, mas pareceu-me muito interessante até para explorar e perceber de que forma lidamos com o vírus hoje em dia. Estamos neste momento a editar e o filme deverá ir para o ar a 1 de dezembro.

Também estou a escrever a minha próxima longa-metragem. Ainda há muito trabalho pela frente e ainda não tenho a certeza de qual será o título, mas posso dizer que é sobre uma grande família de agricultores que têm um pessegal. Passa-se durante o seu último verão naquela terra que cultivaram durante gerações. São muitas personagens e a história é contada maioritariamente do ponto de vista dos mais novos. Decorre numa zona da Catalunha que tem uma beleza particular. Não é sobre mim, mas é inspirada, em parte, na minha família que também tinha um pessegal.

Sobre os temas que gosto de explorar, digo sempre que quero continuar a retratar a infância porque quero trabalhar com crianças e não me canso de o fazer. Também quero continuar a explorar a família. Tanto a minha mãe como o meu pai tinham uma grande família, e o mesmo acontece com os meus pais adotivos. Eu cresci neste ‘caos’ familiar e as relações familiares sempre me interessaram muito (…).

SÍLVIA CARDOSO: Como foi o processo de casting e encontrar uma atriz para fazer de si? E quando a escolheu o que a levou a decidir-se por esta menina?

CARLA SIMÓN: O casting foi um processo bastante longo. Andámos cinco ou seis meses à procura das meninas que seriam as protagonistas, Frida e Anna. (…)

Para a personagem de Frida, eu queria alguém que viesse da cidade. Era muito importante que fosse alguém que não estivesse habituada a viver no campo. Nós tentámos encontrar raparigas que se assemelhavam o máximo possível a cada personagem, porque, na verdade, é possível pedir a um adulto que crie uma personagem, mas com uma criança é sempre um processo mais complicado.

Há muito da personagem de Frida na Laia Artigas e muito de Anna na Paula Robles. Nós falámos e tentámos perceber como é que elas eram, e fizemos alguns exercícios de improvisação com o resto do elenco. Fiquei impressionada com a capacidade de concentração da Lai, e com a Paula também, afinal ela só tinha três anos e meio quando a encontramos.

Depois de escolhidas as atrizes, elas passaram muito tempo com os restantes atores adultos a fim de criar uma relação com eles. Isto passou por fazer coisas bastante banais como passear, fazer um bolo ou ir às compras. Ajudaram a estabelecer essa intimidade entre as personagens (…).  Também improvisamos muitos momentos e situações que decorrem antes da ação do filme (…). Foi como construir uma memória coletiva (…). Eu não tinha a certeza de que seria útil, mas acabou por ser uma ferramenta chave, porque, quando começámos a filmar, todos sabiam imenso sobre as suas personagens.

Já durante a rodagem, elas não memorizaram nenhum texto. Antes de cada cena eu dizia-lhes exatamente aquilo que tinham de dizer e a partir daí começámos a improvisar um pouco. Quando havia situações em que eu queria que elas dissessem coisas mais específicas, eu falava durante os takes e elas ouviam e repetiam. (…)

As duas meninas nunca leram o argumento, por isso o que fizemos foi passar duas semanas nos locais a ensaiar algumas cenas para elas saberem o que iria acontecer. Tivemos apenas seis semanas de rodagem e era importante que elas soubessem de antemão. Isso ajudou-nos a perceber certos aspetos das meninas como, por exemplo, o facto de Laia não gostar nada de água. Muitas cenas pediam que ela estivesse dentro de água e, assim, foi algo que trabalhámos com ela desde o início.

Com a Laia, nunca falámos muito sobre o assunto da morte da mãe. Conseguimos encontrar um caminho para fazer essas cenas, mas sem ter de insistir muito no assunto. (…) O que fizemos foi construir relações entre as personagens e a melhor forma de representar cenas específicas. Não quis ir muito a fundo na questão da psicologia da personagem com a Laia, porque ela era muito pequena. Diria que encontrámos a forma ideal para trabalhar e resultou tudo muito bem.

carla simon entrevista scope 100 verao 1993
“Nós tentámos encontrar raparigas que se assemelhavam o máximo possível a cada personagem.”

“Verão 1993” estreia já dia 18 de outubro nos cinemas portugueses. Não percas esta oportunidade de veres um dos melhores filmes espanhóis dos últimos anos.

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