"O Fantasma" | © Rosa Filmes

Cinema com Orgulho | O Fantasma (2000)

Explícito, rebelde e arrojado, a obra de João Pedro Rodrigues representa um pícaro de expressão queer nos anais do cinema português. Sua estreia no panorama da longa-metragem narrativa, “O Fantasma,” foi logo reconhecida além-fronteiras, competindo pelo Leão de Ouro no Festival de Veneza e ganhando prémios internacionais como a honra de Melhor Filme do NewFest nova-iorquino. Trata-se de um sonho no limiar do pesadelo, história de desejo e solidão sem fácil comparação. Por outras palavras, não há nenhum outro filme como “O Fantasma” – sem vergonha e sui generis, a perfeita forma fetichista para celebrar este Mês do Orgulho.

Seria difícil imaginar o percurso cinematográfico de João Pedro Rodrigues se o único ponto de referência fosse a sua primeira curta. “O Pastor” em 1988, trabalho final de curso para o então estudante da ESTC, denuncia influências realistas no modelo de Reis e Cordeiro, um cinema feito à imagem de outro e em diálogo com uma herança nacional virada para as ruralidades, para a História. O bucólico pervertido apareceria novamente em fitas como “O Ornitólogo” e não podemos dizer que o interesse histórico alguma vez tenha desaparecido, mesmo que numa veia brincalhona – veja-se “O Corpo de Afonso.”

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Contudo, a essa meditação sobre temas campestres, seguiu-se uma obra chocante cuja provocação está bem longe da ironia pastoral. Saltando para a curta seguinte, estreada já na década de 90, é muito mais revelador sobre a assinatura autoral de João Pedro Rodrigues. Em “Parabéns!,” a sensibilidade queer aparece sem vergonha, mesmo que uma das personagens no dueto viva no armário e se faça amparar pela ilusão de heterossexualidade. Há brincadeira e erotismo, uma apreciação do corpo masculino e também uma pesquisa sobre a moralidade retorcida de uma premissa mentirosa, cheia de falsidades e eufemismos.

Há também um primeiro contacto com João Rui Guerra da Mata, com quem Rodrigues viria a desenvolver a maior parte do seu trabalho documental em anos vindouros. De facto, até serviria de ator para o outro cineasta, destacando-se no belíssimo “O Que Arde Cura.” É evidente, no entanto, que a quebra de tabus em “Parabéns!” era só um aquecimento para o exercício pleno deste realizador. No século XXI, ele viria a fazer batismos de urina e cruising com Cristo no já referido “Ornitólogo,” faria a tragédia da drag queen em “Morrer como um Homem” e o desejo enlutado em “Odete.” O recente “Fogo-Fátuo” é fantasia musical e sexual, com esperma na cara e tanto mais.

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© Rosa Filmes

Fazendo-se a análise geral deste percurso, ficamos na procura do ponto de transição. Poder-se-ia dizer que foi a curta do aniversariante, mas é mais correto apontar para a estreia de João Pedro Rodrigues na realização de longas-metragens narrativas. Temos, portanto, que redirecionar o olhar para Veneza no raiar do novo milénio, quando o trabalho mais gráfico do autor teve logo direito a lugar de destaque na Competição Oficial. Ou, talvez, seja mais correto pensarmos na origem do projeto primeiro. Afinal, como começou a viagem deste “Fantasma” com sexo oral não simulado, a abnegação do eu e cães a ladrar fora de cena a toda a hora?

Segundo o cineasta, tudo terá começado com o interesse na figura do profissional da recolha de lixo, esse sujeito espectral do qual a cidade depende, mas por quem ninguém dá grande conta. Com autorização da Câmara Municipal, Rodrigues acompanhou a rota noturna dos cantoneiros lisboetas. Nessa pesquisa, fez entrevistas, algumas delas focadas na fantasia desses limpadores da estrada e da metrópole. Esta investigação sobre as invisibilidades no sistema urbano é algo que se veio a verificar em obras futuras do autor, desde a vida dos imigrantes chineses em “China China” e “Mahjong” até à poesia sangrenta do mercado em “Alvorada Vermelha.”




Também a paixão pela paisagem citadina da capital tem feito sua marca na filmografia de João Pedro Rodrigues. Quase nos atrevemos a delinear uma trilogia de interesse com “O Fantasma,” “Odete” e a curta “Manhã de Santo António.” Como os jovens feitos zombies pela folia e pela ressaca nesse terceiro título, também o cantoneiro desta história fantasmagórica parece existir num limbo entre mundos. Não será tanto o limbo entre a vida e o além, mas o espaço indefinido entre o trabalhador e as vidas alheias que toca no seu percurso. O protagonista de “O Fantasma” torna-se intruso, um parasita na realidade alheia, um elemento passivo em transcendência desse papel.

Para a personagem, tentou-se seguir uma procura em jeitos de Neorrealismo, vampirizando a inexperiência do ator não-profissional para daí surgir uma autenticidade suprema. Ricardo Meneses ficou com o papel, o texto redefinido à sua forma e a produção adiada até que o adolescente atingisse a maioridade. Afinal, a natureza híper-sexual do conto assim demanda, especialmente quando consideramos os momentos onde se abandona a simulação cénica em prol da realidade pura e dura, crua e desnuda. Em certa medida, poder-se-ia ler algo de abusador nesta perspetiva autoral, como se a câmara fosse um predador sobre a figura, talvez um reflexo dela.

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Enfim, trazer questões morais a esta fita é uma violação da sua proposta, existindo “O Fantasma” numa esfera onde tais conceitos não só não existem, como são rejeitados com uma cuspidela na cara. Se é para quebrar tabu, que se quebrem todos eles, um estilhaçar violento dos bons costumes, uma rebeldia personificada por Sérgio, o nosso herói. Vemo-lo, quase sempre, na penumbra da noite, fazendo a odisseia rotineira que o seu trabalho estabelece. A câmara pouco reconhece na sua expressão em passagens iniciais, mas a personalidade rasurada depressa se impõe pelo desejo. Sérgio vive em constante excitação, sua fome por gratificação carnal algo insaciável.

Até no contexto do movimento New Queer Cinema, há um tenor de confrontação no modo como Rodrigues nos mostra as desventuras noturnas de Sérgio, sempre na senda de mais um orgasmo. Há uma comparação implícita entre o seu comportamento e o do cão que abre a fita, uma espécie de redução da humanidade até que se depura tudo a impulsos primordiais. Não é um julgamento pejorativo, mas sim a experiência de entender a pessoa enquanto um corpo, suas necessidades na revelia da ordem social. Sérgio é fome voraz dada forma cinematográfica, ele é a liberação por meio do risco erógeno, o néctar do desejo engolido, até ao ponto de inebriar.

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© Rosa Filmes

A rotina do cantoneiro rima com a rotina dos encontros secretos, a noite escondendo na mesma medida que revela. Ambos os gestos são rituais, só que um impera enquanto perpetuador de normas diurnas. O outro é sempre sussurrado, a não ser quando é exposto no grande ecrã, pois claro. Assim sendo, a paisagem urbana torna-se num festim de possibilidades e Sérgio está sempre pronto a aproveita-las à socapa. Mas haverá algo de estranhamente imaterial na materialidade deste rapaz. Com a cidade vazia, também ele parece um fantasma deambulando num mundo mortiço, a fotografia de Rui Poças sempre pronto a encontrar dimensões líricas no cenário lisboeta.

O rito interrompe-se pela obsessão, um Adónis de moto reluzente que captura o interesse do espírito errante e não o deixa ir. Remexendo no lixo, vemos como Sérgio se torna num animal ainda mais devasso, sua vida resvalando para os confins do desejo supremo, tão intenso que torna o dia-a-dia num sonho entesado. Já não é suficiente o engate do costume e a masturbação também se mostra obsoleta. Quere-se mais e somos, por isso, embalados numa hipnose orquestrada em celuloide, levados a partilhar o transe de Sérgio e a saborear como a especificidade do seu universo esvanece. Rasura-se a humanidade dele, mas também se apaga o detalhe da cidade, o espaço tornando-se transiente e liminar, rumo a um clímax inesquecível numa lixeira a céu aberto.

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Ainda hoje, a qualidade transgressiva de “O Fantasma” se sente na pele, sua metáfora sobre desejos desenterrados tão chocante em 2023 como foi em 2000. Talvez até seja mais provocadora, considerando quão casto o cinema atual se tem tornado. Escatologias sem pudor, arqueologias de erotismos proibidos, tanto tem este filme, para dar e vender, para oferecer em modo de tentação. Deixemo-nos levar por essa proposta viciosa, caídos na espiral obscena de um devaneio orgástico, onírico e tão material como um documentário jornalístico. O cinema de João Pedro Rodrigues assombra e arrepia, deleita os sentidos e, com “O Fantasma,” dá-nos uma visão quase apocalíptica da desinibição total.

Trata-se de um filme com fim podre e doce, mascarado em latex preto e com um apetite tal que a realidade de uma Lisboa sonolenta se torna alienígena. Porque a sexualidade queer se encontra numa bifurcação extremada entre a aceitação mainstream e novos esforços conservadores para a eliminar, o modo como “O Fantasma” leva o seu jogo ao limite ganha valor. Ganha força política e vigor artístico, sem medo de mostrar o lado negro do sexo e de o celebrar sem censura. Abençoada seja esta missa porca, onde se prova o falo no lugar da hóstia e se bebe um trago de sémen ao invés do vinho. Estamos perante um milagre depravado – ámen.

“O Fantasma” está disponível na MUBI. Para explorares a restante filmografia do realizador, tenta ver o catálogo da FILMIN Portugal e da DocAlliance Films.

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