“A Providência e a Guitarra”, de João Nicolau, abre o Festival Internacional de Cinema de Roterdão. ©O Som e a Fúria

Cinema Português 2026 | Os Filmes Portugueses Que Não Vamos Perder No Próximo Ano

O cinema português em 2026 vai largar o pudor de ser apenas um cinema autoral e decide incomodar. Sobretudo, quer voltar a falar com o grande público e trazer mais espectadores às salas.

Tudo indica que 2026 será um dos momentos mais claros, politicamente assumidos e artisticamente confiantes do cinema português recente. Um ano menos neutro, menos refém do consenso e do status quo, mais interessado em dizer alguma coisa, mesmo que isso implique ruído, desconforto ou divisão entre crítica e público. Há um traço comum que atravessa muitos dos filmes portugueses que vão circular em 2026, nas salas e nos festivais: a recusa da neutralidade. Seja na relação com a memória política recente, com o passado colonial, com a precariedade económica e emocional do presente ou com a própria ideia de identidade nacional. O cinema português que aí vem em 2026 não se esconde atrás do confortável nem da ideia de “cinema feito apenas para festivais”. Há cineastas que querem, claramente, arriscar estrear nas salas e chegar ao grande público.

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A Previdência e a Guitarra
“A Previdência e a Guitarra”, ©O Som e a Fúria

 

Começar o ano lá fora não é acaso

Esse sinal surge logo no início do ano: “A Providência e a Guitarra”, de João Nicolau, abre o Festival Internacional de Cinema de Roterdão (29 de Janeiro a 8 de Fevereiro), num gesto simultaneamente simbólico e político. Nicolau regressa ao seu território natural — fantasia, música, humor seco e melancolia luminosa — para construir um Portugal distante do miserabilismo e da autocomiseração. Com Salvador Sobral no papel principal, num elenco que cruza músicos, actores e presenças inesperadas, o filme aposta na imaginação como forma de resistência cultural. Há precariedade artística, personagens à margem, memória colectiva e uma Lisboa que não é postal turístico nem laboratório sociológico.

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Projecto Global
“Projecto Global”, de Ivo M. Ferreira. © O Som e a Fúria

Também em Roterdão estreia “Projecto Global”, de Ivo M. Ferreira, um dos filmes portugueses mais frontalmente políticos dos últimos anos. Centrado nas FP-25, o filme recusa a simples reconstrução histórica para interrogar os silêncios do pós-25 de Abril, a violência revolucionária e os fantasmas nunca resolvidos da democracia portuguesa. Com Jani Zhao, Gonçalo Waddington, Rodrigo Tomás, Vera Moura, José Pimentão e Ivo Canelas, assume um tom tenso, seco e deliberadamente incómodo. A estreia comercial está prevista para Abril.

VÊ TRAILER DE “PAI NOSSO: OS ÚLTIMOS DIAS DE SALAZAR”

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O cinema que finalmente chega às salas

Para lá dos títulos pensados para o circuito internacional, 2026 será também o ano em que vários filmes portugueses, há muito em gestação, deverão finalmente chegar às salas. Muitos foram apresentados nos 10ºos Encontros do Cinema Português, desenhando as linhas dominantes do cinema nacional contemporâneo. “Primeira Pessoa do Plural”, de Sandro Aguilar (estreia a 19 de Fevereiro), acompanha um casal (Isabel Abreu e Albano Jerónimo) que celebra 20 anos de casamento num resort tropical enquanto o filho adolescente fica sozinho em casa. Aguilar aprofunda o seu cinema elíptico e sensorial, acrescentando humor e sensualidade, numa espécie de Marienbad portuguesa. “Pai Nosso: Os Últimos Dias de Salazar”, estreia na ficção do documentarista José Filipe Costa, retrata a decadência do ditador após o AVC de 1968, com Jorge Mota no papel principal. “O Barqueiro”, de Simão Cayatte, produzido por Paulo Branco, estreia em Abril e acompanha um ex-recluso que aceita trabalho ilegal no Tejo para cumprir uma promessa feita à filha. Um drama seco sobre reinserção, sacrifício e sobrevivência. “Maria Vitória”, de Mário Patrocínio, segue uma adolescente que joga futebol numa equipa masculina numa aldeia remota, questionando autoridade, disciplina e destino.

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Diversidade sem concessões

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No drama psicológico e social destaca-se 18 Buracos para o Paraíso, de João Nuno Pinto, com Beatriz Batarda e Margarida Marinho sobre uma família confrontada com heranças patriarcais, seca extrema e especulação imobiliária. No cinema de identidade e género, “Baía dos Tigres”, de Carlos Conceição, constrói uma parábola distópica sobre memória e apagamento, protagonizado por João Arrais. “Solos”, de Sebastião Salgado — uma primeira obra de um jovem cineasta com o mesmo nome do grande fotógrafo — aposta num retrato intimista sobre solidão e família.

VÊ TRAILER DE “ALÉM DO HORIZONTE — A TRAVESSIA”

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Ficção, risco e inquietação

Na ficção narrativa, a diversidade mantém-se ampla. “Entroncamento”, de Pedro Cabeleira, regressa à juventude periférica, num retrato duro de precariedade, crime e desejo de fuga, com Ana Vilaça e Cleo Diára. Juntam-se outros títulos de risco e de jovens cineastas como “Óculos de Sol Pretos”, de Pedro Ramalhete, “Cativos”, de Luís Alves, “Amanhã Já Não Chove”, de Bernardo Lopes, “Caronte”, de Tânia Gomes Teixeira e “O Poeta Rei”, de Carlos Gomes. Outros filmes reforçam a pluralidade formal e temática: “Senhora da Serra”, de João Dias, “Terra Vil”, de Luís Campos, “Match”, de Duarte Neves, “C’est Pas La Vie en Rose”, de Leonor Bettencourt Loureiro, “Guided by the Stars”, de D.B. King e “Além do Horizonte — A Travessia”, de Fernando Vendrell. Na animação, “Ana en Passant”, de Fernanda Salgado, confirma a maturidade da longa-metragem animada portuguesa como linguagem adulta e ensaística.

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O real também se filma

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No documentário, 2026 será particularmente fértil. “La Vie de Maria Manuela”, de João Marques, acompanha durante quatro anos a entrada na idade adulta de uma jovem artista e influencer. Seguem-se “Querido Mário”, de Graça Castanheira, “Vive Escondido Guido Guidi”, do também fotógrafo Paulo Catrica, “Os Figos do Meu Avô”, de Fernando Bastos, “De Lugar Nenhum — Um Retrato de Valter Hugo Mãe” de Miguel Gonçalves Mendes, “A Cabeça Não é Um Sítio Seguro”, de Joana Caiano e “Chão Verde de Pássaros Escritos”, de Sandra Inês Cruz.

VÊ TRAILER DE “HONEYJOON”

Co-produções, continuidade e futuro

Nas co-produções internacionais destacam-se “Asas”, de Ana Rocha de Sousa (“Listen”), “Honeyjoon”, da norte-americana de Lilian T. Mehrel, com José Condessa, “Os Enforcados”, do brasileiro Fernando Coimbra que estreia no primeiro dia do ano de 2026, “Ritas”, de Oswaldo Santana e Karen Harley, sobre Rita Lee e “A Teacher’s Gift”, uma incursão inglesa do realizador português Artur Ribeiro (“Terra Nova”). Filmes de 2025 como “On Falling”, “O Riso e a Faca” e “Banzo” vão continuar a circular, enquanto a curta-metragem portuguesa mantém forte presença internacional: “Computadora”, de Alice dos Reis, a “O”, de Francisca Alarcão, ou “Rui Carlos”, de Margarida Paias vão estar também em secções do Festival de Roterdão, daqui a poucas semanas. Em suma, 2026 não será apenas o ano de alguns “títulos fortes”, mas de uma massa crítica consistente de cinema português aberta ao grande público e apostas de risco em novos realizadores com estreia nas salas. Um cinema politicamente atento, formalmente diverso e menos resignado ao silêncio confortável. Talvez não traga recordes de bilheteira, mas traz uma coisa essencial: vontade clara de existir e de ser visto.

JVM


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