"Clube Zero" | © Alambique Filmes

Clube Zero, a Crítica | Mia Wasikowska faz o culto da dieta

Em “Clube Zero,” a preocupação com a saúde torna-se em loucura. A comédia absurdista de Jessica Hausner conta com Mia Wasikowska no papel principal.

Ao longo da sua carreira, a cineasta austríaca Jessica Hausner tem vindo a questionar as ordens criadas pela crença e pela procura da salvação. O seu filme de maior renome foi “Lourdes,” onde satirizou a peregrinação às termas onde Santa Bernadette terá visto a Virgem, eviscerando o rito católico e expondo-o enquanto negócio e loucura coletiva. As suas personagens mentem a si mesmas na esperança de se convencerem e assim darem propósito à vida. Mentem a si próprias porque querem acreditar em algo maior que si, maior que a pequenez humana. Mentem a si próprias porque precisam de um caminho a seguir.

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Amour Fou” explorou essas mesmas ideias no contexto poético, com o Romantismo na Alemanha do século XIX a servir de substituto para o que a religião havia sido em “Lourdes.” Na transição para o cinema Anglófono, Hausner aumentou a estilização e veio a desligar-se do mundo comum dos mortais sem, no entanto, perder os interesses que lhe haviam definido a obra. “Little Joe” segue pela via da ficção científica na direção do mesmo destino, usando uma invenção botânica para parodiar a dependência da sociedade para com antidepressivos em jeito semelhante ao culto. A equivalência é dúbia, diga-se de passagem.

Jessica Hausner tem-se provado perita em cinema satírico

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Essa não terá sido o argumento mais feliz da cineasta, mas nada se compara às objeções morais de “Clube Zero.” Acontece que, nesta segunda façanha falada em inglês, a realizadora decidiu aglutinar e justapor duas influências sobre o pensamento coletivo. Em primeiro lugar, temos um olhar crítico lançado a todo o furor das dietas e a cultura capitalista criada em torno da saúde. Não se trata do apelo à medicina moderna, convém dizer, mas a crescente popularização de gurus e influencers, gente como Gwyneth Paltrow e sua companhia – Goop. ‘Wellness’ é negócio, mas também é um sistema de crenças com específica cerimónia e louvor, doutrina rígida e tanto mais.

Para explorar essas ideias, Hausner troca a figura das redes sociais pela pedagoga, retratando um instituto de ensino onde se privilegia uma preocupação ensandecida sobre o estado do corpo de cada um. Mas até num estabelecimento assim há limites e aqueles que tudo fazem para os ultrapassar. Neste caso, ela é a Sra. Novak, uma professora que impõe a ideia da dieta extrema enquanto estilo de vida que se deve seguir na procura de uma pureza superior à do comum mortal. Fala-se do controlo sobre o vício, sobre o espírito, sobre a vontade, sobre tudo aquilo que somos, em carne, osso e alma também.

Só que o que começa por ser uma dieta restritiva vai crescendo em intensidade. Segundo a Sra. Novak, qualquer tipo de alimento é desnecessário, sendo cada pessoa autossuficiente e capaz de subsistir sem nenhum sustento. O mais estranho de tudo é que, além do transtorno causado naqueles que os observam, não parece que a messias e seus acólitos sofram as consequências biológicas desse jejum sem fim. Tal como em “Little Joe,” nota-se um elemento do sobrenatural a facilitar os exageros satíricos da autora. Talvez por isso, “Clube Zero” deixe tão mau gosto na boca de quem o vê e nele tenta esmiuçar uma inteligente análise de fenómenos sociais.


Porque Hausner não parece ter muita coisa a dizer sobre a cultura dieta e muito menos tem a sensibilidade para explorar as suas vicissitudes num elenco adolescente. A certa altura, até parece que ela está a listar clichés de psicologia pop, desde famílias disfuncionais até traumas bulímicos, pressão da rapariga superficial e o desejo de um filho agradar à mãe ao mesmo tempo que a quer contrariar. Os atores mais novos são bastante bons, há que dizer, mas nenhum deles consegue redimir o texto ou a direção clínica com que são tratados. A câmara tudo observa em jeito alienado, mas a construção narrativa nada tem dessa frieza e precisão.

Pelo contrário, está cheia de generalismos e falácias, de sensacionalismo e choque barato sem nada a dizer além daquilo que se pode já intuir de uma sinopse. Mas nem é esse o aspeto mais duvidoso deste “Clube Zero.” É que, além dessa sátira à mania das dietas e dos hábitos ditos saudáveis, há também uma agressão contra a figura do professor enquanto elemento essencial na vida do jovem. Quase que numa referência inapropriada à “Jean Brodie” que agraciou os cinemas em 1969, Hausner faz da Sra. Novak uma versão vil da pedagoga inspiradora. Longe de melhorar a vida dos alunos, ela devora-os, sujeitando-os à submissão do devoto perante um líder da fé.

Facilmente se deteta um discurso político nesta loucura de Novak que, tal como a Brodie que valeu um Óscar a Maggie Smith, tem os seus quês de fascista. Só que a crítica de Hausner parece-nos despropositada e mais ligada a tradições literárias que à realidade vivida pela juventude atual. Não são os professores que seduzem os seus pupilos para os extremismos destrutivos que assolam as nações. Esse é mais o papel das redes sociais e outros aparatos da era moderna, os media e todo um aparato construído para radicalizar os mais vulneráveis contra os seus próprios interesses. O fanatismo de Novak é bem esboçado, mas o seu papel simbólico é um tiro ao lado.

Mia Wasikowska é estupenda como uma professora fanática

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Mas nem tudo merece crítica afiada. Não obstante os problemas na conceção da personagem, Mia Wasikowska está perfeita como a Sra. Novak, sintonizando-se às estilizações características de Hausner com invulgar facilidade. A maior parte dos atores com quem a cineasta trabalha parecem esforçar-se para incorporar o registo da cineasta na sua abordagem interpretativa. Wasikowska jamais mostra se sente extenuada. Ou, pelo menos, essa ideia jamais se evidencia em cena e contamina a experiência do espetador. Iríamos ao ponto de afirmar que, no panteão de Hausner, ela seria mais merecedora do Prémio de Melhor Atriz em Cannes do que Emily Beecham por “Little Joe.”

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Além de Mia Wasikowska, “Clube Zero” também brilha no que se refere à sua linguagem audiovisual. A rigidez da dieta manifesta-se num minimalismo cénico cheio de enquadramentos geométricos e imóveis, como se o modo como observamos as personagens fosse um reflexo do jeito com que elas encaram o corpo. É sempre algo a domar e controlar, algo agrilhoado a ordens normativas que não precisam de ser verbalizadas para ser entendidas. O design colorido é um contraposto interessante, enquanto a banda sonora de Markus Binder propõe uma qualidade mais opulente, quase agressiva, bem à medida da violência que a Sra. Novak perpetra sob um véu de boas intenções.

Clube Zero, a Crítica

Movie title: Club Zero

Date published: 8 de August de 2024

Duration: 110 min.

Director(s): Jessica Hausner

Actor(s): Mia Wasikowska, Sidse Babett Knudsen, Florence Baker, Samuel D. Anderson, Amir El-Masry, Amanda Lawrence, Sam Hoarse, Elsa Zylberstein, Matthieu Demy, Camille Rutherford, Szandra Asztalos, Ksenia Devriendt, Luke Barker, Gwen Currant, Andrei Hozoc, Sade McNichols-Thomas, Lukas Turtur, Keeley Forsyth

Genre: Comédia, Drama, Thriller, 2023

  • Cláudio Alves - 60
60

CONCLUSÃO:

Em provocação amoral, Jessia Hausner propõe um retrato da juventude a ser guiada para sua autodestruição. O cenário é uma escola de elite e a metáfora envolve professores manipuladores e cultos onde a comida é o inimigo supremo. Infelizmente, “Clube Zero” não consegue sustentar a sua sátira e cai em ciclos repetitivos, deslizando para um poço de redundância. Pelo menos, há primor audiovisual para dar e vender, assim como um elenco convicto, destemido a fazer com que a loucura da realizadora funcione – custe o que custar.

O MELHOR: A cenografia de Beck Rainford, a música de Markus Binder e a prestação ilusoriamente simples com que Mia Wasikowska dá vida ao expressionismo acético que a autora de “Clube Zero” tem vindo a desenvolver.

O PIOR: Os alvos da sátira e a articulação das críticas que Hausner supostamente faz à cultura da dieta, à instituição da escola, ao poder do professor perante o aluno.

CA

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