"O Colecionador de Almas" | © Cinemundo

O Colecionador de Almas, a Crítica | Oz Perkins traz-nos um dos filmes mais tenebrosos do ano

Também conhecido como “Longlegs,” o novo filme de Oz Perkins tem sido um autêntico fenómeno nos cinemas americanos. “O Colecionador de Almas” já é aclamado como um daqueles filmes que dão calafrios e suscitam o pesadelo.

O cinema tem o poder de cristalizar inúmeras ideias e sentimentos, conceitos abstratos e verdades concretas, a realidade comum dos nossos dias e a fantasia mais mirabolante que a pessoa pode imaginar. O cinema tem o poder de nos mostrar o sonho. Contudo, também pode fazer o inverso e projetar o pesadelo. Só que até no mais tenebroso trabalho, rara é a fita capaz de capturar o mal enquanto força cósmica. Em certa medida, essa máxima perfídia está além de um objeto tão comum como o filme, sempre limitado pelo interesse comercial e os limites da capacidade humana. São poucos os cineastas com a habilidade para tornar a tela em janela para o inferno.

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Por isso mesmo devemos aplaudir “O Colecionador de Almas,” mais conhecido pelo seu título original de “Longlegs.” Trata-se da mais recente longa-metragem de Oz Perkins, um cineasta cuja família tem o terror no sangue. Afinal, ele é filho do grande Anthony Perkins, o Norman Bates no “Psycho” de Hitchcock. Mas legados paternos aparte, a obra do realizador pouco tem do classicismo que definiu a carreira do primeiro Perkins. Pelo contrário, a filmografia deste autor tende a questionar os parâmetros comuns da narrativa, da personagem e da própria gramática visual que serve de pedra basilar a todo o cinema.

O filme tem poder maligno, uma energia satânica cristalizada em cinema

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Fazem-se muitas comparações entre os seus esforços e a onda de “elevated horror” tipificada pela distribuidora A24, mas essas ideias são muito redutivas. Acima de tudo, o autor prima pelo formalismo ferrenho e um gosto pela inevitabilidade trágica, originando contos em que tudo parece predestinado. A gente do seu cinema não é mais que roldanas num mecanismo que um ser superior criou. E tal como a roldana, as almas perdidas de Perkins não têm autonomia, deixando-se levar por forças maiores que si. Nessa extrema ineficácia, despojados de agência ou autonomia, quase nem se podem chamar personagens no sentido tradicional.

Dessa falta de poder devém a malignidade do seu cinema, com “O Colecionador de Almas” enquanto derradeira expressão da filosofia fílmica a que Perkins dedica a vida. Por muito que tentem, as suas vítimas não conseguem alterar os caminhos para si traçados, e somente algumas figuras se comportam em surpresa perante isso. As demais reagem como se a desvalorização da vida humana fosse corriqueira, como se o derrame de sangue fosse lugar comum e a loucura a verdade absoluta de cada dia. O cosmos está anestesiado, incapaz de sentir a dor pervasiva ao seu ser. Testemunhar “Longlegs” é como querer gritar sem voz.

A face molda-se em forma de berro e a garganta contrai-se, a face exulta a contração do brado, mas nenhum ruído se manifesta. Repete-se o clamor vezes sem conta pois essa é a única possível resposta. E, no entanto, a impavidez da cena permanece. Fazer-nos cientes da nossa inconsequência é um dos grandes truques de Perkins e seu vilão, o colecionador de almas do título. Só que a personagem a quem Nicolas Cage dá vida não aponta a fraqueza para chocar. Pelo contrário, é parte fulcral do seu jogo ao serviço de Satanás. Perkins não pretende usar a audiência como instrumento, preferindo esmagá-la, derrotá-la, deixá-la no chão ofegante – em pranto sem fôlego e sem som.


A história é simples e lunática, uma espécie de investigação criminal transformada pelo  fenómeno do oculto. Seguimos Lee Harker, uma jovem agente do FBI com poderes de clarividência na Oregon dos anos 90. Devido às suas habilidades, ela é colocada na equipa que investiga uma série de assassinatos cujo modus operandi desafia a razão e a credulidade. No seio de uma família religiosa com criança nascida no dia 14 do mês, a violência parece despontar sem explicação, terminando na aniquilação de todo o clã pela mão do pai. O suicídio do homem é sempre a peça final do horror, com uma carta de despedida em linguagem codificada.

Perante tal padrão, assume-se a autoria de algum assassino manipulador, alguém capaz de convencer os patriarcas a perpetrarem atos hediondos. O que começa como um mistério torna-se em obsessão para Lee, especialmente quando certos indícios sobrepõem a sua vida pessoal e o caso. Convém dizer que jamais esse apego da protagonista se revela enquanto paranoia injustificada. Muito pelo contrário, a cada momento que passa, Lee é puxada para as profundezas de uma história horripilante onde os laços de família são pervertidos e a inocência roubada, negada, envenenada por algum espírito do além.

Apesar das dúvidas prematuras, a crença no sobrenatural depressa domina a força policial e os detalhes revelados são cada vez mais grotescos. Não que os desenvolvimentos narrativos sejam especialmente surpreendentes. Enquanto argumentista, Oz Perkins tende a criar trabalhos meio anémicos, estranhamente previsíveis apesar de estruturas apuradas para o choque, cheios de personagens ocas. Um espetador caridoso verá aí uma qualidade ao invés do defeito, mas depende muito das prioridades de cada pessoa. Se procuram dramaturgia envolvente, “O Colecionador de Almas” não será a melhor opção.

Dito isso, há que reconhecer uma vertente fascinante da história contada. Basicamente, Perkins aborda o Pânico Satânico da segunda metade do século XX como Robert Eggers encarou a superstição puritana em “A Bruxa.” Longe de subverter os valores da gente passada, ele encara-os como realidade e orienta o cosmos da narrativa à sua imagem. Não que o realizador deste “Colecionador de Almas” se proponha a encenar um acesso de histeria. A sua visão é mais ponderada e menos familiar, estruturada em torno de arritmias na montagem e imagens inquietantes. A câmara está como que possuída, cada fotograma uma maldição com que o cineasta ataca o espetador.

Nicolas Cage está irreconhecível como o grotesco Longlegs

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Assim sendo, pode-se nomear “Longlegs” como um dos grandes trabalhos formalistas do ano, desde a fotografia de Andreas Arochi e suas simetrias ímpias à cenografia de Danny Vermette com a perversão da infância. Desde a paisagem sónica à maquilhagem monstruosa, a curadoria do figurino e a musicalidade insólita com assinatura de Zilgi. E por falar nesses últimos elementos, seria errado elogiar “Longlegs” sem mencionar os atores, especialmente Nicolas Cage no papel que dá nome à fita. Raramente a estrela foi tão perturbadora como aqui, fugindo de tal modo à regra e ao bom gosto que a sua mera presença se sente obscena. No papel de Lee, Maika Monroe é uma boa âncora humana para o espetáculo e Blair Underwood serve como elemento contrastante para com a bizarria circundante.

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Tal como eles, estamos presos na ordem cósmica em que o Mal tudo rege. Assim é no cinema de Oz Perkins e talvez também assim seja no nosso mundo. Só de pensar nisso, desperta o calafrio e vem o vómito ao cimo da garganta. E novamente nos perdemos naquele grito surdo, naquela vontade de bradar aos céus. Só que ninguém nos ouve e mesmo que ouvissem, ninguém nos conseguiria salvar. Sem a euforia da rebeldia punk ou qualquer gesto nessa direção, Oz Perkins faz de “Longlegs” um exemplo grandioso de niilismo na sétima arte. Não há esperança e não há futuro. Só há dor. Com isso em mente mais vale rendermo-nos ao inevitável – Ave Satani!

O Colecionador de Almas, a Crítica

Movie title: Longlegs

Date published: 8 de August de 2024

Duration: 101 min.

Director(s): Oz Perkins

Actor(s): Maika Monroe, Nicolas Cage, Blair UNderwood, Alicia Witt, Michelle Choi-Lee, Dakota Daulby, Kiernan Shipka, Lauren Acala

Genre: Terror, Crime, Thriller, 2024

  • Cláudio Alves - 72
  • Maggie Silva - 75
74

CONCLUSÃO:

“O Colecionador de Almas” ou “Longlegs” é um daqueles filmes que nunca irá agradar a todos. Trata-se de um exemplo de formalismo puro e duro com assinatura de Hollywood – essa última faceta é provavelmente o aspeto mais surpreendente do projeto. Com este trabalho, Oz Perkins confirma o seu talento enquanto criador de imagens, mesmo que a sua habilidade enquanto contador de histórias ainda esteja em causa.

O MELHOR: A concretização formal da obra, a ausência de esperança que Perkins invoca, a loucura de Cage como Longlegs.

O PIOR: O texto é o ponto fraco, tal como acontece na maioria dos filmes assinados por Oz Perkins. Também o uso do Pânico Satânico como inspiração suscita algumas questões éticas. Afinal, muitas das vítimas dessa histeria generalizada ainda estão entre nós.

CA

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