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The King’s Man: O Início, em análise

Matthew Vaughn volta a levar-nos ao mundo da espionagem de Mark Millar, desta vez com “The King’s Man: O Início” uma prequela protagonizada por Ralph Fiennes e Harris Dickinson!

QUANTO MAIS SECRETO, MELHOR…!

Devo confessar que recebi o primeiro KINGSMAN: THE SECRET SERVICE (KINGSMAN: SERVIÇOS SECRETOS), 2015, com algumas cautelas. Mas, ao longo dos seus 129 minutos, fui descobrindo que nesta produção conjunta entre o Reino Unido e os Estados Unidos existia matéria mais do que suficiente para superar as reticentes expectativas iniciais. Naturalmente, quando se parte de um patamar inferior e se alcança, com o andar e o fruir das circunvoluções narrativas, uma posição mais confortável, sentado numa sala frente a um grande ecrã, não necessariamente no alto da pirâmide mas a meio caminho e com uma boa vista em redor, as coisas parecem melhores do que na verdade são. Seja como for, a impressão geral que ficou e, de algum modo, permanece, foi o de estar diante de uma proposta fílmica capaz de conjugar o modelo dominante na maioria das superproduções com a recuperação da memória clássica da linguagem cinematográfica. No fundo, um filme sem concessões demasiado pesadas ao quadro rotineiro e por vezes confrangedor de alguns franchises destinados ao consumo pelo consumo, não só de cinema, mas de comidas e bebidas que, apesar do cheiro e do lixo que geram, são desde há muito uma bela fonte de receita para distribuidores e exibidores. Finalmente, uma ficção que desejava revitalizar o filme de espionagem, dando-lhe um glamour muito britânico, introduzindo um humor subtil e inteligente nas bem produzidas sequências que o diferenciava de outras propostas do género que andam por aí a levar-se, nem sempre com grandes resultados práticos, muito a sério.

The King's Man O Início
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Depois veio o segundo capítulo, KINGSMAN: THE GOLDEN CIRCLE (KINGSMAN: O CÍRCULO DOURADO), 2017, onde se esperava mais do mesmo. Foi o que aconteceu, mas infelizmente sem nada acrescentar de novo, antes pelo contrário. O que vimos foi mais situações desbragadas do que no anterior, menos fleuma, menos humor e mais acção destinada a vender junk-food em vez de salmão fumado. Para além do mais, o núcleo central da agência secreta, a KINGSMAN, parecia estar ainda em boa forma e preparado para dar umas curvas, mas havia qualquer coisa no ar que deixava prever uma debandada das personagens, ou melhor, dos actores que até ali tinham representado a linha da frente do combate aos malvados do mundo, protegidos nos bastidores daquela aristocrática e elitista alfaiataria.

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Por isso, como qualquer boa equipa de argumentistas deduziria, o melhor era voltar atrás e ir, porque não, até aos primeiros anos do Século XX para começar o novo filme. E assim foi, ou seja, ainda no pré-genérico estamos agora em plena Guerra dos Boers, conflito sangrento que colocou frente a frente a Grã-Bretanha e os colonizadores europeus, grande parte descendentes de calvinistas holandeses. Boers que viriam a ser os futuros donos e senhores de uma África do Sul cuja política de apartheid ficou como uma das mais infames e racistas nos anais da História da Humanidade.

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Na verdade, THE KING’S MAN (THE KING’S MAN: O INÍCIO), 2021, mais uma vez dirigido pelo inglês Matthew Vaughn, irá usar e abusar da História com H grande, assim como das personalidades com mais ou menos relevância histórica, quase sempre sem grande cuidado com a verosimilhança do que elas realmente foram nos seus países e qual o autêntico papel desempenhado nas suas mais diversas funções. Entre as personalidades que vão a pouco e pouco sendo introduzidas, merece especial destaque o infame Rasputine, monge russo que dominou de forma sinistra a corte dos Romanov, figura pouco recomendável que os agentes secretos vão defrontar numa vibrante série de coreografias de “arte e porrada”, com palavreado a condizer. Numa dessas lutas, a realização inventou movimentos marciais concebidos como danças ao sabor do folclore musical da Rússia e das partituras dos seus grandes compositores clássicos. Uma ideia de puro deleite visual, e uma das cenas de pancadaria que funciona na perfeição.

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Outra personagem, com menos poder mediático mas igualmente importante, será a do autor do assassinato do Arquiduque Ferdinando, o chamado atentado de Sarajevo que, segundo muitos, desencadeou as condições para o início da Primeira Guerra Mundial. Mais uma vez os agentes secretos estão muito perto dos acontecimentos da História quando o atentado ocorre, obviamente numa figuração mais do que ficcional. E que dizer do papel de embrulho reservado a Mata-Hari que, imaginem, será enviada para seduzir o Presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, acabando por dar origem a um filmezinho picante da dita a despir-se para o dito, facto que leva o estadista sob chantagem a protelar a entrada do seu país na guerra. Bom, isto se os agentes da futura KINGSMAN não fizessem o que lhes competia para salvar o dia, quer aos aliados, quer aos Estados Unidos, ou seja, aos vencedores daquela que antes era apontada como a guerra que iria acabar com as guerras. Viu-se…! E o delírio atinge o seu ponto máximo quando Lenine é convocado para desempenhar um papel decisivo no derrube do regime czarista, numa improvável aliança que faz lembrar o contrato de Fausto, o que vendeu a alma ao diabo: fazer vingar uma revolução para retirar a Rússia da guerra. Enfim, não restam dúvidas de que aqueles que há uns anos apontavam Mário Soares como o primeiro Rei de Portugal não vão dar pela diferença. Os outros, os que se deram ao prazer de conhecer o passado com o devido rigor para melhor construir o presente e o futuro, vão dar saltos na cadeira e perguntar quantas garrafas de puro malte emborcaram os autores deste argumento.

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Mas o realizador e o seu coargumentista, Karl Gajdusek, não querem fazer juízos de valor para além daqueles que atribuem nas entrelinhas ao desenvolvimento de situações com algum impacto emocional, precisamente porque obriga o comum dos mortais a procurar correspondências entre a verdade dos factos e a revisão do percurso histórico em que as citadas figuras se inseriram na realidade, incluindo as da verdadeira aristocracia, como o Rei Jorge V, o Czar Nicolau II e o Kaiser Wilhelm II, qualquer delas interpretada pelo mesmo actor, Tom Hollander. Enfim, não podemos procurar um sentido naquilo que não faz sentido a não ser no plano do puro e duro entretenimento. Mas, mesmo assim, mais acutilante e controverso parece ser a personagem misteriosa que está por detrás das sucessivas conspirações que os maus e os menos maus da fita levam a cabo. No seu reduto, no alto de uma escarpada montanha, vive o negativo do KING’S MAN, um escocês que de forma clara e contundente bate forte e feio nos aristocratas ingleses, que acusa de ladrões do seu património. Se pensarmos nas contradições políticas do actual Reino Unido, com uma Escócia a querer a independência e o sistema republicano, não sei se o filme não revela um sectarismo político-ideológico que será mais acentuado ainda na sequência inserida durante o genérico final e que promete uma quarta aventura com uma proposta muito, mas mesmo muito bizarra. Desde já, fica aqui o aviso aos espectadores Molaflex para não se levantarem logo que entra o genérico final, porque se o fizerem vão perder este segmento revelador do que aí vem.

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Por último, falta referir quem se bate pelo KING AND COUNTRY, pelo Rei e pela Pátria, e que mais lá para o final serão os fundadores da KINGSMAN. Lugar de destaque para Orlando, interpretado por Ralph Fiennes, um actor capaz de dizer as maiores barbaridades como se estivesse a saborear um vibrante champanhe e um saboroso e caríssimo caviar. O nobre por excelência, o Duque de Oxford. Um alegado pacifista que vê a sua mulher ser abatida por um combatente Boer, na citada sequência inicial na África do Sul. Desde então, promete proteger o filho de ambos, o jovem Conrad, papel confiado a Harris Dickinson. Desde essa altura, acompanhando as aventuras e desventuras de pai e filho, veremos um negro, de seu nome Shola, que pode ser considerado o mestre do combate corpo a corpo, sobretudo quando as armas com lâmina entram em acção. Um feiticeiro da arte de bem manejar e sobreviver aos mais diferentes adversários, figura defendida por Djimon Hounsou. E para o politicamente correcto ser ainda mais plausível e consistente, não podia faltar um agente de saias, bonitinha q.b., a governanta da mansão dos Oxford, Polly, personagem interpretada pela actriz Gemma Arterton. Escusado será dizer que não há nada que ela não faça, qual chama viva onde quer que viva, para contrariar a ideia feita de ser neste filme a representante do chamado sexo “fraco”. Porque, como diz o provérbio, dos fracos não reza a História.

Em suma, THE KING’S MAN apresenta valores de produção que fazem inveja aos produtores de filmes periféricos, dependentes dos subsídios dos ICAs deste mundo. Nada a dizer contra, quando esses valores são visíveis. Os investimentos estão lá, e com razão de ser. Sim, estamos num filme onde os efeitos especiais e visuais são muito bem doseados e coordenados para dar corpo e alma a um conjunto de sequências espectaculares, como aquela que se passa num avião, com Orlando a cair dos céus sobre a montanha do misterioso “bad guy” com a ajuda daquilo que parece ser uma primeira versão dos actuais paraquedas.

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Deste modo, se estes pressupostos se mantiverem, considerando que o argumento acaba no fim da Primeira Guerra Mundial, há pano para mangas para o próximo capítulo já anunciado continuar a ser, pelo menos, um renovado e garantido divertimento, assim como um autêntico desafio para os detectores de mentiras, nomeadamente das que se inventam para dar um falso colorido aos verdadeiros lugares e aos mais célebres protagonistas da verdadeira História. Na sombra, iremos certamente encontrar, na sua infindável missão redentora, os modernos cavaleiros da Távola Redonda.

The King's Man: O Início , em análise
The KingsMan

Movie title: The King's Man: O Início

Date published: 18 de December de 2021

Director(s): Matthew Vaughn

Actor(s): Ralph Fiennes, Harris Dickinson, Djimon Hounsou, Gemma Arterton, Rhys Ifans

Genre: Acção/Aventura, 2021, 132 min

  • João Garção Borges - 55
55

Conclusão:

PRÓS: Puro e duro divertimento. Humor inteligente e de alguma subtileza. Mil e uma aventuras com improváveis agentes secretos, polvilhadas por combates coreografados com saber e arte, nomeadamente no manejo de armas compatíveis com o momento em que decorre a acção. E já não é mau, numa produção cinematográfica desta dimensão, habitualmente dominada por narrativas maniqueístas, quase sempre repetitivas e sem graça nenhuma.

CONTRA: Sobretudo, a manipulação grosseira de factos históricos. Sim, caros professores e demais interessados nas matérias da História, por favor, nunca, mas mesmo nunca discutam os factos aqui aflorados sem o necessário e demolidor espírito crítico, a não ser que queiram que as pessoas andem para aí convencidas que o Rei Artur existiu mesmo e que James Bond era um agente secreto de carne e osso ao serviço de Sua Majestade, a Rainha do Sabá.

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