'Noite Incerta', de Payal Kapadia/©Medeia Filmes

‘Noite Incerta’, em análise

‘Noite Incerta’, a primeira longa-metragem da jovem indiana Payal Kapadia é uma obra singular que combina vários formatos de cinema, ao mesmo tempo que aborda uma história pessoal e as lutas nas ruas dos movimentos estudantis anti-castas, na India da actualidade. 

Apresentado na Quinzena dos Realizadores 2021 e vencedor do Prémio de Melhor Documentário ou Não Ficção de todas as secções (incluindo as paralelas) do Festival de Cannes 2021, uma ‘Noite Incerta’ (ou ‘A Night of Knowing Nothing’), da realizadora de Bombaim, Payal Kapadia — em 2017, o sua curta-metragem Afternoon Clouds foi seleccionado para 70º Cannes Film Festival — mostra-nos em primeiro lugar, quantas vezes o cinema, pode ser muito mais eficaz como protesto, do que uma manifestação de rua, que na maioria das vezes acaba em violência e repressão. Foi também premiado como o Melhor Filme do LEFFEST – Lisbon & Sintra Film Festival 2021. Uma noite sem saber nada ou uma ‘Noite Incerta’, como filme vira completamente de pernas para o ar todo e qualquer conceito tradicional do filme found footage, mas também todas as convenções de géneros cinematográficos ou melhor da combinação destes, como o documentário, o relato de memórias, a ficção ou mesmo da reportagem, neste caso sobre os protestos juvenis dos universitários indianos, contra a descriminação social e injustiças no seu país. O filme pode ser tudo isto ao mesmo tempo e nada disto! Será que uma boa parte das imagens foram realmente encontradas, num armário do Film & Television Institute of India? Tal como as cartas confessionais antigas, escritas por uma aluna, para o seu namorado H. e que as assina com a inicial L.? Há ainda, segundo a narradora, nessas descobertas, recortes de imprensa, cartões de memória, desenhos, flores secas, como é revelado no início do filme, que apesar do tom íntimo e pessoal da narrativa, ganha também contornos de uma investigação política e social. Se há algo de autobiográfico no assunto — Kapadia é formada por essa universidade pública — é algo que nunca será também esclarecido no filme.

Lê Também:   13º Dias do Cinema Israelita | O Cinema Popular de Israel

VÊ TRAILER DE ‘NOITE INCERTA’

No entanto, ‘Noite Incerta’ não é um filme que concentre apenas na informação disponível e nessa documentação pessoal saída do armário — aqui literalmente —, junta-lhe igualmente novas imagens, ao mesmo tempo que evoca sentimentos muito concretos entre essas duas pessoas. Através de uma voz off trémula e de certo modo amedrontada, uma mulher através dessas cartas, vai contando uma história de amor impossível, devido as diferenças sociais dos amantes, ex-colegas da Escola de Cinema e que depois de terminado o curso, cada um vai à sua vida, até porque as distâncias na India são grandes. Como diz a voz de L. trata-se de uma história sobre um amor que não poderá jamais desabrochar, porque o seu amante H. é incapaz de se rebelar contra a família, como o fez na vida pública, enquanto estudante e activista do movimento anti-castas. Sabe-se que o sistema social de castas, impede a relação e ainda mais o casamento entre os dois jovens. Além disso, encontros furtivos podem ser punidos com a morte e, de fato, os chamados ‘crimes de honra’ e estupros de raparigas muçulmanas farão parte também desta história. Uma vez que a família do rapaz, tem sempre uma palavra a dizer sobre essa relação, H. parece ter praticamente desistido da luta, enquanto por sua vez a L. divaga ao longo de 5 anos, pelas páginas das cartas, partilhando os seus pensamentos com que estiver disposto a ouvi-la. A narrativa ou a questão das cartas, sendo realidade ou ficção está efectivamente bem construída. 

Noite Incerta
©Medeia Filmes

Porém, esta sub-trama das cartas é apenas relativamente convincente: serve como pano de fundo para contar os momentos de turbulência com estudantes protestando contra a discriminação social e para realçar os seus gritos de revolta, pelo fim da exploração, crime e pobreza no país. E sobretudo com as imagens da greve dos estudantes daquela escola contra a nomeação de um novo realizador, actor de televisão e de cinema comercial, militante do partido no governo; ou então das lutas em muitas outras universidades por estudantes ‘revolucionários’ contra o governo ‘fascista” e a reação oficial contra os ‘terroristas’ — as citações têm a ver com o nome de cada momento do filme. Os discursos, os confrontos, a repressão policial, a prisão dos líderes estudantis. ‘Noite Incerta’ é também um verdadeiro turbilhão fílmico de acontecimentos e situações.

Lê Também:   O Ritmo de ‘Coda’ até ao Óscares
'Noite Incerta'
©Medeia Filmes

A lista de figuras e testemunhos nas imagens é interminável e os rostos das vítimas dos crimes de repressão, aparecem pois de uma forma fugaz e sem identidade ao contrário de uma mulher-polícia, a quem é lhe criada uma personalidade. Kapadia, não se preocupa muito com os espectadores internacionais do filme e por isso não perde muito tempo a explicar os múltiplos paradoxos e traumas do seu país, que parte do princípio que os conhecemos. Isso explica também em parte a razão de ‘Noite Incerta’, um meio-documentário, um meio-pesadelo, quase sempre a preto e branco granulado — embora existam algumas passagens a cores e sépia de arquivos familiares — e uma dura experiência de luta, que testemunhamos, uma certa distância, com uma certa sensação de segurança. A violência e a repressão mostradas a preto e branco, por mais amargas que sejam, parece acontecer lá longe na Índia e noutro contexto. Embora às vezes façam lembrar, até pelas roupas fora-de-moda, as manifestações do Maio de 68, em França; e a câmera de Kapadia, filmando aos ritmos e preceitos dos cineastas da nouvelle vague francesa. Enquanto os estudantes continuam numa luta desesperada nas ruas de Bombaim, infelizmente L. chega à conclusão que H. o seu amante, está mudo, não reage ou pode mesmo não ter forças para lutar pelo menos por um futuro comum dos dois: ‘Talvez nunca tenhas sido corajoso’, diz L., a dada altura no seu discurso, o que nos leva a pensar que estamos diante de um filme sobre esperança, mas também sobre decepção, a todos os níveis: tanto no amor com no das lutas estudantis, contra as desigualdades sociais e o sistema de castas na Índia da actualidade. Sem dúvida Noite Incerta é um dos filmes-revelação desta temporada de estreias, que tem de ser visto pelo menos por todos os estudantes de cinema.

JVM

Noite Incerta, em análise
'Noite Incerta'

Movie title: A Night of Knowing Nothing

Movie description: Filme epistolar (L., estudante do Instituto de Cinema e Televisão da Índia, troca cartas com K., o seu namorado, que a irá abandonar por exigência da família, porque ela pertence a uma casta inferior), manifesto político (as imagens da greve dos estudantes daquela escola contra a nomeação de um novo director, actor de televisão e cinema comercial, militante do partido no governo), A Night of Knowing Nothing é  também uma obra em defesa do cinema, de um cinema livre, que vibra de mágoa e de cólera, dando-nos conta do que está a acontecer hoje na Índia, cruzando realidade com ficção, sonhos, memórias, fantasias e ansiedades.

Date published: 10 de March de 2022

Country: Índia/França, 2021

Duration: 97'

Director(s): Payal Kapadya

Actor(s): Bhumisuta Das (voz)

Genre: Documentário

[ More ]

  • José Vieira Mendes - 90
90

CONCLUSÃO

’Noite Incerta’, de Payal Kapadya, é um ensaio epistolar, uma espécie de diário privado, filme de arquivo, filme experimental ou compromisso político que faz lembrar o cinema agit-prop dos anos 60. Tudo isso coexiste nesta fascinante obra da jovem realizadora indiana Payal Kapadia. O ponto de partida é uma caixa com cartas de amor, recortes de jornais, flores secas e desenhos que foram encontrados num armário de um dormitório do Instituto de Cinema e Televisão da Índia (FTII) e pertencente a uma certa L. Tudo começa com a história de um amor impossível porque L. e H. ​​são de castas diferentes e essa relação nunca será consensual. Porém o eixo deste ‘documentário’ acabará por se concentrar mais no político e social, mostrando os protestos massivos dos estudantes do FTII e de outras universidades na Índia, contra o governo e a repressão exercida sobre estes. Um filme indispensável para qualquer cinéfilo, sobretudo fundamental, para todos estudantes de cinema.

Pros

A forma como encaixa na perfeição o trabalho documental, ficção e pós-produção para criar um dos filmes mais fascinantes desta temporada de estreias.

Cons

A realizadora parte do principio que conhecemos bem os movimentos sociais e a repressão na Índia, algo que curiosamente passa muito pouco nos media nacionais e internacionais.

Sending
User Review
2 (1 vote)
Comments Rating 0 (0 reviews)

Leave a Reply

Sending