‘Um Outro Mundo’, em análise

’Um Outro Mundo’, do realizador francês Stéphane Brizé (‘A Lei do Mercado’) é mais um bom filme sobre o mundo do trabalho, visto agora do ponto de vista de liderança ou melhor da perspectiva criada pelas sucessivas crises económicas, mudanças nos processos de trabalho e decisões ao nível das elites empresariais. E claro com o sempre impecável Vincent Lindon…..Estreia a 16 de junho.

Stéphane Brizé continua a fazer no seu cinema as suas duras radiografias ao mundo do trabalho. Em Um Outro Mundo’, estreado na Competição do Festival de Veneza de 2021, tal como os filmes anteriores Em GuerraeA Lei do Mercado este é mais uma crónica das actuais incertezas no mundo laboral, das suas consequências sociais e sobretudo do peso que estas podem ter na vida dos indivíduos, independentemente do seu estatuto ou classe social. ‘Um Outro Mundo’ conta precisamente a história de um executivo de empresa, da sua esposa, e da sua família, num tempo em que as decisões de poucos ou melhor da elite empresarial-financeira, perturbam e complicam em grande medida a vida de muitos ou melhor de todos e não apenas dos trabalhadores menos qualificados, porque afinal vivemos numa comunidade de troca de valores e mercado.

Um Outro Mundo
A vida também não está fácil para os executivos de empresa. ©2020-Nord-Ouest Films-France 3-Michael Crotto

Philippe Lemesle  (Vincent Lindon, talvez o actor francês mais requisitado do momento — presidente do júri do último Festival de Cannes — e cúmplice de Brizé continua ser a figura neste seu último filme sobre a trilogia sobre o trabalho — e sua esposa (Sandrine Kimberlain) estão prestes a separarem-se. O seu amor está irremediavelmente desgastado pelas pressões de um trabalho stressante de Philippe. Gestor de um grande grupo industrial, já não sabe como resistir às insistentes decisões dos seus superiores, que representam os accionistas, para reduzir os custos operacionais, obviamente com consequências para os trabalhadores do grupo. Se antes o queriam como um gerente eficaz, capaz de atingir resultados positivos e mais valias para os accionistas, agora querem-no como um executor de downsizing: um processo que do ponto de vista da gestão, significa uma redução da força de trabalho de uma empresa e logo despedimentos. 

Um Outro Mundo
O executivo de empresa trás os problemas para casa. ©2020-Nord-Ouest Films-France 3 Cinéma-Michael Crotto

Porém, para Philippe, chegou também talvez seja o momento de repensar a sua vida e livrar-se de tanta pressão. Até então, Philippe Lemesle — Lindon, mais uma vez exemplar nesta sua interpretação, desta vez, do outro lado da barricada ou seja dos patrões — moveu-se num ambiente de liderança empresarial, assente na boa gestão dos recursos humanos, com várias ‘histórias de sucesso’ de gestores da empresas, que com habilidade, conseguiam conciliar uma cultura de objectivos cumpridos, lucros e ao mesmo tempo responsabilidade social interna e externa. Contudo, os tempos mudaram: as sucessivas crises económicas das duas últimas décadas, a introdução algumas profundas alterações nos processos de trabalho, aliadas à robotização; e sobretudo devido às cada vez maiores exigências e funcionamento dos mercados financeiros, tornou-se cada vez difícil para os bons gestores de carreira, resistirem a tanta pressão e às tendências neo-liberais, que chegaram ao mundo empresarial. Depois, reclamar da situação pode parecer um paradoxo aos olhos dos trabalhadores. E por outro lado trata-se de uma humilhação ou de um gesto de fraqueza imperdoável perante os colegas, a concorrência e a direcção da fábrica. Qualquer atitude neste sentido, torna-se proibitiva, com ‘trabalhadores’ como Philipe, a correrem também o risco de serem substituídos, por outros mais jovens e dinâmicos, dispostos a fazerem o ‘trabalho sujo’ ou a ‘limpeza’, que não questionam o que lhe é pedido, pelos accionistas, que não têm em conta o factor humano. 

VÊ TRAILER DE ‘UM OUTRO MUNDO’

É verdade que na gestão económica-financeira da actualidade, também ao mais alto nível, do mundo empresarial já não se pode desfrutar mais dos direitos de um trabalho estável e para o resto da vida, mesmo para alguém que é um gestor de topo: as directivas superiores dos accionistas ou dos seus representantes, têm de ser na maioria das vezes, rapidamente impostas aos trabalhadores operacionais, para obter resultados imediatos; já não são aceites, nem pontos de vista, nem modelos de gestão alternativos, justos e humanizados, assentes nas teorias sociológicas da liderança e motivação. É exactamente isso que retrata Um Outro Mundo sempre de um forma impiedosa, sempre no estilo observacional e realista que sempre tem caracterizado o cinema  de Stéphane BrizéO realizador mostra-nos que o mundo do trabalho continua irremediavelmente dividido em dois e a clássica ideia de luta de classes permanece inalterável apesar dos tempos. Porém, neste ‘Um Outro Mundo’, o realizador observa sem preconceitos, em vez das lutas do operariado, o percurso de muitos profissionais da gestão, que correm também o risco de naufragar e de ficar desempregados de um momento para outro, porque têm dificuldade em cumprir ordens que mexem com os seus subordinados, com quem estabeleceram ao longo do tempo, uma equilibrada e justa relação de trabalho. Trata-se enfim de um (outro) mundo, onde muitos homens e mulheres de ‘colarinho branco’, engravatados e de roupas elegantes, lutam também desesperadamente, pela sua sobrevivência e pelos seus direitos (e dos outros) ao trabalho.

Sandrine Kiberlaine
Sandrine Kimberlain é a mulher dos gestor da empresa. ©2020-Nord-Ouest Films-France 3 Cinéma-Michael Crotto

‘Um Outro Mundo’ conta uma história onde certas pessoas têm também cada vez mais dificuldade em encontrarem um sentido para as suas vidas, apesar dos elevados salários e regalias; ou mesmo o que vão fazer com as suas indemnizações, quando são também despedidos nesse processo de downsizing, exigidos pelos CEO. No personagem de Lindon vemos exactamente esse aspecto, de um homem incapaz de sentir dor ou emoção, perdido e dividido, entre um mundo da elite económica e os seus próprios sentimentos e da sua família. Mas o filme trás-nos também alguma esperança e essa sensação de que se está sempre a tempo de mudar de vida. É neste o sentido que vai felizmente a mensagem deste último filme de Stéphane Brizé, um realizador impecável, que está sempre atento às questões sociais, independentemente do estatuto dos seus protagonistas.

JVM

Um Outro Mundo, em análise
Um Outro Mundo

Movie title: Un Autre Monde

Movie description: Em 'Um Outro Mundo', o realizador Stéphane Brizé, continua a mostrar-nos o mundo do trabalho, mas agora da perspectiva de um gestor empresarial, em crise de consciência na fábrica e no seio da família.

Date published: 15 de June de 2022

Country: França, 2021

Duration: 97 minutos

Director(s): Stéphane Brizé

Actor(s): Vincent Lindon, Sandrine Kiberlain, Anthony Bajon

Genre: Drama

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  • José Vieira Mendes - 75
75

CONCLUSÃO

Depois de ‘A Lei do Mercado’ e ‘Em Guerra’, Stéphane Brizé continua a fazer as suas pormenorizadas radiografias sobre o mundo laboral. Desta vez, com este retrato de um executivo de empresa, submetido a uma implacável direção de um conglomerado industrial, em plena acção de ‘limpeza’ da sua força de trabalho. Brutalidade económica, falta de humanidade, funcionários desorientados sem saber o que fazerem, o filme é um retrato cru, logo desde o início, sempre muito carregado pela encenação fria e observacional de Brizé. E sobretudo pela encarnação de Vincent Lindon, nesse executivo infeliz e meio-perdido na vida. Uma intensidade que, no entanto, sofre de algumas divagações pessoais, um tanto convencionais — o homem está no meio de um divórcio e com dificuldades com o seu filho autista —, porém todos estes problemas não deixam de ser uma afirmação marcante, neste personagem, um tanto utópico, à procura da redenção.

Pros

O realizador faz cada plano respirar diretamente através das infinitas feridas de uma tragédia social que se vai adivinhando aos poucos. E nesse sentido a abordagem do filme é impecável, como aliás a interpretação de Vincent Lindon.

Cons

Lindon interpreta o humanista gerente da fábrica e o erro de Brizé está talvez em canonizá-lo em demasia, reduzindo a uma visão mais utópica, do que realista. Mas ainda há homens assim….os últimos dos justos.

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