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Crónica | A Morte de Nahel: da ficção à realidade

A morte do jovem Nahel, de 17 anos pela policia francesa, mergulhou novamente a França numa escalada de violência, desordem e fúria urbana. ‘Athena’, de Romain Gavras — disponível na Netflix desde setembro — é um dos filmes que quase prevê estes acontecimentos. Eis como a ficção se pode tornar realidade em três filmes franceses.

Dois séculos depois da Revolução Francesa de 1789, a França é ainda uma terra de lutas e tensões, onde os valores de liberdade, igualdade e fraternidade, não são na realidade aplicados e usufruídos por todos os seus cidadãos, que hoje em dia vêm de origens muito diferentes. Basta olhar para a diversidade étnica da Selecção Francesa de Futebol e para alguns dos seus craques. ‘Athena’ de Romain Gavras, desde setembro passado, disponível na Netflix, é um filme a ter em conta já que é centrado igualmente numa revolta popular de jovens dos subúrbios parisiense (banlieue), após o suposto assassinato pela polícia — o mistério fica resolvido no final — de um jovem de origem magrebina.

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Trata-se ainda de uma aproximação, entre a pop-verité e a tragédia grega, às grandes tensões sociais que a França vive realmente na actualidade, como vimos há poucos dias. Horas depois dessa morte trágica, estalou uma violenta revolta e os distúrbios intensificam-se ao extremo, enquanto a vida de três irmãos fica transformada num caos. É o mais novo desses três irmãos que vai liderar essa revolta que parece imparável e com a policia quase a perder o controlo da situação.

Menosprezado por alguns sectores da crítica, o melhor de ‘Athena’ , é que consegue filmar a insurreição popular como se fosse uma autêntica guerra, sem barreiras e com bastantes meios cinematográficos, que fazem lembrar os melhores filmes de guerrilha urbana, passados no Iraque ou Afeganistão; e também mostrando imagens muito semelhantes às dos distúrbios em várias cidade francesas, que vimos recentemente nos noticiários de televisão. ‘Athena’ torna-se assim uma verdadeira coreografia de violência, que acompanha os seus personagens principais com agilidade, elegância, espectacularidade e bom senso. O brilhantismo é tanto que, às vezes, acaba por secundarizar um pouco a história central.




Porém é um filme que mantém sempre viva uma poderosa narrativa e uma constante lógica moral. Não se trata apenas de uma fábula social, de uma tragédia grega, mas de um tremendo retrato do real, que anteviu um acontecimento. ‘Athena’ é uma obra contundente, dura, frenética, cheia de descobertas visuais e com uma mensagem tão atual quanto necessária, que mantêm o espectador agarrado ao sofá. O destino dos personagens é logo percebido, mas rapidamente esquecido, porque se trata de um thriller intenso e incendiário que declara guerra à injustiça social. É o terceiro filme do realizador é talvez apesar de várias polémicas à volta das suas obras anteriores, este é sem dúvida o seu projeto mais impressionante até hoje.

Athena
‘Athena’, de Romain Gavras. ©Netflix

‘Athena’ foi dirigido por Romain Gavras, filho do grande cineasta grego Costa-Gavras, — também ele um imigrante por outras razões claro —, que conhece muito bem os banlieue, desde que começou a trabalhar em videoclips, com alguns rapper e músicos franceses de origem africana: ‘Stress’ (2008), com a dupla electrónica Justice, um filme gerou muitas discussões, devido à sua brutalidade.

Depois, Gavras assinou a sua primeira longa-metragem de ficção intitulada, Our Day Will Come (2010), — um filme inspirado num dos seus mais provocantes videoclips‘Born Free’ de M.I.A. — que conta uma história de marginalidade e violência, interpretada (e co-produzida) por Vincent Cassel. Este actor trabalhou com Romain Gavras, ainda em ‘O Mundo é Teu’ (2018), uma grotesca comédia policial, centrada num grupo de pequenos traficantes de drogas e na sua tentativa de fazerem uma grande negociata. 




Les Misérables (2019)
Os Miseráveis (2019) |©Cannes Film Festival

‘Athena’ de Romain Gavras foi co-escrito pelo Ladj Ly , um cineasta criado no banlieue, — segundo ele salvo pelo cinema — que já tinha desenvolvido uma história muito semelhante — embora nem por isso menos trágica — no seu primeiro e extraordinário ‘Os Miseráveis’, outro incendiário retrato dos conflitos nos subúrbios franceses. Os banlieues, são os subúrbios urbanos das grandes cidades francesas e são habitados por uma população muito heterogénea, sobretudo descendentes de imigrantes magrebinos ou de África, muitas vezes relegados, não apenas geograficamente, mas que vivem igualmente à margem da sociedade.

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Os banlieues, são lugares emblemáticos, onde são reveladas as muitas contradições daquele país; e também já da Europa como um todo, no que diz respeito aos subúrbios das grandes cidades, embora a dimensão da violência não tenha chegado aos extremos como em França. Porém, o cinema francês tem algum tempo relatado esta raiva por vezes contida outras vezes explosiva, sobre os conflitos sociais, étnicos e culturais e os gritos de exasperação dessa população marginalizada, em vários aspectos como um bom ensino e educação públicas, sobretudo jovens que vêm apenas uma esperança no futebol e nos seus ídolos como por exemplo Kylian Mbappé. 

O Ódio’ (1995), de Mathieu Kassovitz, com Vincent Cassel, foi talvez o primeiro filme a abordar este assunto e tornou-se polémico, devido precisamente à exposição desse fenómeno da violência urbana, em particular a desses bairros degradados da periferia. Porém, pouco parece ter mudado desde aquele filme de 1995, inspirado também no assassinato real de um jovem pela polícia. Os protagonistas são três jovens de origem étnica diferente, um judeu, um árabe e um negro, que vivem nos subúrbios de Paris. Abdel (Abdel Ahmed Ghili), um amigo deles, foi brutalmente espancado e está às portas da morte. Vinz (Vincent Cassel) e os seus dois amigos, Said (Saïd Taghmaoui) e Hubert (Hubert Koundé), não têm nada para fazer e para passar o tempo, deambulam por Paris… Vinz jura que, se Abdel morrer, mata o polícia.

JVM

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