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Devotion Uma História De Heróis, em análise

Jonathan Majors e Glen Powell lideram o elenco de “Devotion Uma História De Heróis”, a mais recente obra de J.D. Dillard (“Sleight“)!

HISTÓRIA DO HERÓI, NÃO! DE UM ANJO DE ASAS CORTADAS, SIM…!

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Desde logo quero aqui manifestar uma espécie de declaração de interesses sobre o que me despertou a curiosidade pelo filme DEVOTION, 2022, realizado por J. D. Dillard. Na verdade, sou daqueles que ainda vociferam cobras e lagartos contra o défice no mercado de simuladores de vôo de combate. Refiro-me em particular aos relacionados com a Segunda Guerra Mundial. Recordo com gosto as horas que passei nos céus da Europa e do Pacífico com a MICROSOFT e as suas diversas versões do COMBAT FLIGHT SIMULATOR, para além dos excelentes simuladores da UBISOFT, com a série dos IL2 STURMOVIK, mais o PACIFIC FIGHTERS da mesma equipa. Isto só para vos dizer que, se não fosse cineasta, e crítico de cinema para manter a disciplina, seria capaz de me alistar na aviação. Provavelmente, não me quereriam lá. E não me serviria de nada dizer-lhes que no COMBAT FLIGHT SIMULATOR, WWII PACIFIC THEATER, o meu avatar piloto (nome de guerra: Yasujiro Ozu) estava a ganhar a guerra para o Japão. E porque não? Há por aí muitas criaturas sempre prontas a reescrever a História, pelo que mais uma menos uma ninguém leva a mal. Deste modo, jogos de computador ou filmes de guerra que incluam matéria compatível com o gosto de voar, contem comigo. E há muitos e bons filmes, nas mais diversas cinematografias, que nos falam da força aérea nas mais diversas geografias do mundo.

Devotion 12
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Feita a declaração, regressemos para saudar um filme que no original se intitula DEVOTION, sinónimo de amor, lealdade, interesse maior por uma actividade, por uma determinada missão e, num plano mais particular, por um sentimento de partilha religiosa que habitualmente rima com comunhão. Em Portugal ninguém soube, ou não quis, estrear a dita obra de ficção baseada em factos reais com a singela, neste caso mais do que justificada e portuguesa palavra, DEVOÇÃO. Para além do mais, lembraram-se de acrescentar um subtítulo, UMA HISTÓRIA DE HERÓIS, conceito que me parece completamente desajustado do contexto narrativo e das premissas que estão na base da escrita do argumento, não se encaixando sequer na definição geral das personagens em presença nem nas circunvoluções do guião cinematográfico, que estrutura e planifica uma história de pilotos aviadores, americanos brancos e um negro, sendo este último, Jesse Brown (interpretado com grande segurança por Jonathan Majors), o primeiro afro-americano a completar o curso de pilotagem da Marinha dos EUA, onde a cor predominante na época em que decorre a acção, o início dos anos 50, era a branca dos euro-americanos. E se perguntassem ao verdadeiro Jesse Brown (1926-1950) o que ele pensava do assunto e da sua maneira de ser e estar, ele diria que não era um herói mas sim um aviador ao serviço da marinha americana com uma missão a cumprir, um dever maior para com o país que representava, um compromisso consigo próprio, uma preocupação para com a sua família, mulher e filha, razão número um para combater os inimigos que, no interior e no exterior dos EUA, o faziam lembrar de forma acintosa que um negro nunca seria naqueles anos considerado igual a um branco, mesmo que fosse igual em aptidões ou até superior. Muito significativa será a introdução de uma breve sequência em que Jesse Brown se vê entrevistado por um repórter da revista LIFE, que insiste para que ele diga aquilo que era suposto dizer para contentamento do público leitor de acordo com parâmetros paternalistas, e não aquilo que lhe ia na alma. Ele recusa esse faz-de-conta e mantém a sua integridade de piloto, homem negro, acossado por alguns e aceite por outros, nomeadamente de forma muito activa e positiva pelo camarada de armas Tom Hudner (Glen Powell), o seu wingman, e ainda os que com ele partilhavam o dia a dia nas sempre exíguas instalações de um porta-aviões. Esta questão que atravessa a narrativa, a resistência ao racismo endémico que existia e que em grande medida ainda continua a existir na sociedade americana, nada deve ao heroísmo seja de quem for. Está mais próximo de uma afirmação de coragem, de uma valorização do carácter e da integridade moral dos homens que nunca se vergaram ao peso de preconceitos reacionários, os que lutaram e continuam a lutar pela igualdade racial, social, sem discriminações de género, numa palavra, os que combateram pela civilização contra a barbárie. Numa outra sequência de grande impacto iremos ver Jesse Brown, meio escondido numa casa de banho, voltado de frente para um espelho, olhos nos olhos com os espectadores. Ele contorce o rosto, e a realização decidiu focar o actor em plano próximo para que melhor possamos sentir a violência dos insultos e palavras menos agradáveis que ele dirige a si mesmo, frases onde subsistem ecos das provocações racistas que o atormentavam, numa mistura de raiva e angústia por recear no dia seguinte falhar uma prevista aterragem no convés do porta-aviões USS Leyte. Manobra das mais difíceis e perigosas para qualquer piloto. Mas nós sentimos que Jesse Brown não entra em parafuso só pelo simples facto de poder não corresponder ao que se esperava de um piloto experimentado no chamado “Big Show”, leia-se, a Guerra do Pacífico. Na verdade, a introdução de um novo avião de combate, o Vought F4U Corsair, veio criar dificuldades, mesmo aos veteranos, por causa da falta de visibilidade frontal que era uma consequência directa da imponência volumétrica do seu motor. Não, Jesse Brown sabia que os marinheiros negros o adulavam, para eles, sim, ele era um herói. Mas não apenas no campo da guerra. Era antes de mais um herói da emancipação, um precursor involuntário do orgulho de ser negro, quando ainda só superficialmente se falava do Civil Rights Movement. Por isso, ele sofria a pressão pessoal e colectiva que quase o obrigava a ser o modelo, o exemplo a seguir. Bater com o avião no deck e explodir ou mergulhar nas águas sem alcançar a “segurança” do carrier seria um duro golpe para os que viam nele um homem capaz de fazer o que os brancos faziam (por vezes mal, como iremos constatar) de forma a alimentar a esperança de verem a segregação posta de lado, neste caso com a ajuda do seu estatuto e através do mérito. Enfim, decorreram muitos anos até esse patamar civilizacional ser alcançado, e as razões que estão na base do Black Lives Matter recordam-nos que, mesmo depois de elegerem Barack Obama, ainda há muito por fazer na sociedade americana.

Hollywood II Guerra Mundial
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Do ponto de vista estrutural, podemos dizer que DEVOTION joga pelo seguro. Muito do que mostra parece consensual e fica mesmo a sensação de que os argumentistas (Jake Crane e Jonathan A. H. Stewart, baseados no livro Devotion: An Epic Story of Heroism, Friendship, and Sacrifice, de Adam Makos) não quiseram ir mais longe por recearem que o filme pudesse cair numa narrativa ao estilo panfletário ou num ensaio de ressonâncias político-ideológicas mais acutilantes. No entanto, a matéria primordial está lá, e não me parece que seja por aí que a acção fica mais ou menos frágil. Tudo o que se passa nas sequências iniciais na base naval de Quonset Point, no Estado de Rhode Island, parece credível, e as relações de Jesse Brown com a família e com os restantes pilotos, a amizade com o liberal Tom Hudner, fazem acreditar no que vemos e dá-nos lastro ficcional necessário e suficiente para enquadrarmos o percurso, a importância relativa e o papel reservado a cada uma das personagens. Mesmo o breve interregno da folga no Sul de França, em Cannes, onde até a figura da Elizabeth Taylor (Serinda Swan) e outras beldades locais aparecem para animar as hostes com uma dose de picante e glamour (um bocadinho forçado, diga-se) passa por ser um comic relief num filme geralmente sério, mas não pesado, em que as opiniões dos protagonistas são expressas sem papas na língua. De facto, onde o filme se vai abaixo, sem todavia esmorecer o interesse pelo que vemos, será no quadro daquilo que devia ser um dos seus pratos fortes, ou seja, a credibilidade dos raids e combates aéreos. Se nos Estados Unidos e no Mediterrâneo nada há a apontar quanto às proezas dos aviões, quando estes chegam ao inferno da Guerra da Coreia (que entretanto rebenta já a acção de DEVOTION vai longa) continuamos a assistir a sequências espectaculares, onde os efeitos digitais são do melhor que há, como até ali sucedera, mas a credibilidade vai por água abaixo. De repente, o filme parece querer entrar no modo invencível dos jogos de computador (como se fosse dirigido por gente que nos simuladores não suporta a derrota e não sabe, ou não quer, usar o modo cem por cento realista). Daí para a frente volta-se para um público que só está bem se as suas cores vencerem, mesmo que ninguém acredite no que está a ver. Nessa altura não há anti-aérea do inimigo que atinja um só dos Corsair, e até um Mig-15 de propulsão a jacto, provavelmente chinês ou soviético, parece pilotado por alguém que se sentou no cockpit de olhos vendados. Já adivinharam… claro que sim, será o único caça a ir desta para melhor. Entretanto, cá em baixo e no solo, os fuzileiros que combatem a ofensiva norte-coreana, apoiada pela então recentemente fundada República Popular da China, viam-se a braços com inúmeras baixas e dificuldades logísticas. Quem se dedicar um bocadinho que seja a estudar o que se passava em 1950 nessa Guerra da Coreia sabe que os americanos levaram forte e feio, e não foi a aviação que os salvou de uma quase derrocada da sua intervenção a favor da Coreia do Sul. Mesmo assim, mais para a frente as coisas vieram a equilibrar-se mas, se não sabem ficam a saber, a Guerra da Coreia nunca acabou, porque nunca foi assinado um armistício. Tecnicamente, as duas Coreias ainda se encontram em guerra. Por isso, logo no genérico inicial, quando os mentores do filme inscrevem uma frase onde afirmam ser a “guerra esquecida dos Estados Unidos”, no fundo estão a ficcionar a realidade e a procurar, isso sim, esquecer uma guerra que lhes correu menos mal, apesar de ser inconclusiva e que os obriga a manter as suas bases a Sul do Paralelo 38, o que divide dois países com o mesmo povo, imensamente igual e diferente. Seguramente, muitos desejariam igualmente esquecer a derrota na Guerra do Vietname, certos aspectos da invasão do Iraque, mais recentemente o desastre anunciado do Afeganistão, e ainda vamos ver o que se vai passar na Europa.

Devotion Uma História De Heróis
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Seja como for, DEVOTION, perde alguns pontos quando quer ser um jogo de adolescentes pipoqueiros em vez de uma ficção sólida, como até certo ponto conseguiu ser. No final, felizmente, regressa um pouco ao que fora no início, e a memória do sacrifício do aviador Jesse LeRoy Brown, merecedor das asas que ostentou ao peito e que a Marinha dos brancos não lhe queria dar, merece o nosso maior respeito e admiração. DEVOTION vale pelo perfil e a história breve que nos deu a conhecer desse anjo de asas cortadas, ele sim um homem esquecido, que alcançou com força de vontade e sacrifício um lugar no destino que lhas atribuiu para sempre, para que ele pudesse voar sem medo, aqui na Terra como no Céu.

Devotion - Uma História de Heróis, em análise
Devotion Uma História De Heróis Poster

Movie title: Devotion

Director(s): J.D. Dillard

Actor(s): Glen Powell, Jonathan Majors, Serinda Swan

Genre: Drama, 2022, 138min

  • João Garção Borges - 70
70

Conclusão:

PRÓS: Para além do que disse no artigo, destaco a Direcção de Fotografia de Erik Messerschmidt, com uma paleta de cor que nos faz lembrar alguns valores cromáticos muito em voga nos anos 50. Embora nem sempre, há pinceladas do processo KODACHROME (Fotografia) e EASTMANCOLOR (Filme). Boa mistura e montagem de som. Em geral, as sequências aéreas são magníficas, sobretudo na primeira metade do filme.

CONTRA: Trata-se de um filme que ganharia muito se visionado no IMAX. Pena que não estejam previstas sessões naquele formato, para que DEVOTION pudesse voar ainda mais alto.

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