"Dias em Chamas" | © Leopardo Filmes

Dias em Chamas, em análise

O realizador Emin Alper vem-se afirmando como um dos grandes críticos da Turquia atual, construindo o seu cinema à forma de um grito de protesto. “Dias em Chamas” não difere da norma, sendo a sua provocação mais feroz até hoje. Estreado originalmente na secção Un Certain Regard do Festival de Cannes, a obra já ganhou muitos prémios, tanto pela realização de Alper, a fotografia de Hristos Karamanis e pelas prestações do seu elenco, liderado por Selahattin Pasali e Ekin Koç. No contexto dos European Film Awards, “Dias em Chamas” é um dos candidatos ao Prémio Lux votado pelas audiências europeias.

O sol não perdoa, luz forte e flamejante sobre a terra, qual chicote flagelando as pobres pessoas à sua alçada. Duas figuras em cena sofrem esse suplício, mas uma está mais à vontade que a outra. A mulher habita o inferno como quem a ele já se habituou, mas o homem de fato escuro não demonstra a mesma paz. Nervoso, o rasgo preto sobre a tela de terra e céu aberto transpira um rio salgado que se embeba na roupa, molha o sobrolho e pinga sobre o solo queimado. O infeliz e sua companheira são autoridades judiciais defronte do desastre natural que talvez não seja tão natural assim. É o apocalipse da paisagem.

É uma cratera, chão colapsado sobre si mesmo, rocha desfeita como se a planície seca tivesse aberto uma boca gigante para engolir o mundo. No contexto da abertura do filme, pouca informação é fornecida, ficando a imagem de proporção quase bíblica e a insegurança de um sujeito sem amparo. A explicação seguir-se-á em breve, mas fica a ideia do estranho enquanto procurador. Ele será Emre, jovem da cidade perdido num purgatório rural ao qual não pertence, mas cujo dever profissional o condena. Lá vai o Hélio pulverizando-lhe o corpo, a terra onde se ergue ameaça a implosão e o espetador deixa-se ficar na inquietação.

dias em chamas critica
© Leopardo Filmes

Apesar da tecnologia cinematográfica ainda não conseguir transcender os limites físicos do ecrã para propor uma maior imersividade dos sentidos, a imagem projetada muito consegue transmitir. Assim é com estes “Dias em Chamas” e sua cena de abertura. Contudo, o quadro não fica tão pacífico por muito tempo, seguindo-se um transtorno cinético opondo-se à quietude da cratera, esse desastre cuja violenta génese fica sempre além das margens da nossa perceção. Agora, não há tal misericórdia para o espetador que assim se confronta com o movimento, com um sofrimento tão menos passivo que aquele dos corpos ao sol.

Trata-se de um javali a fugir do predador humano, toda uma procissão de caçadores na sua senda, disparando tiros para o ar num esforço de terror. Faz-se a tortura do animal pela perseguição que irrompe pela cidade ao mesmo tempo que o procurador chega à sua nova casa. Emre e audiência são testemunhas da barbárie, mas nós vemos sempre mais. Feitos alados pela magia do cinema, vemos o fim da matança em jeito divino, olhando de cima para baixo em admiração de um traço de sangue pintado sobre as ruas. A carcaça suína será o pincel, sua linha escarlate qual ferida aberta sobre a comunidade, um corte na carne da cidade em fomento de infeção.

Começada a ação do enredo, essas duas visões do prólogo ecoam e reverberam, a começar com uma visita inesperada. Um advogado, filho do presidente da câmara, e seu amigo dentista vêm ao escritório do procurador com justificações, contando-lhe o fado da sua gente que muito gosta de caçar o javali invasor em distração da seca. Um processo do antigo procurador pôs fim à recolha de água subterrânea devido ao risco de mais crateras, deixando as pessoas desamparadas no cenário árido. Há lago vizinho, mas não há forma de lá ir buscar sustento. Ou, pelo menos, ninguém no poder se digna a tentar a busca – intriga política de mãos dadas com a Natureza impiedosa.

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Fazem-se desculpas e faz-se pressão sobre o novato, faz-se o convite para um jantar na casa do presidente, oásis com reservatório de água nesta triste secura. Lá vai Emre comer e beber na calada da noite, o trago do álcool especialmente intoxicante e o entretenimento salaz muito celebrado pelos anfitriões. Uma rapariga Romani vai dançar para os homens, mas o comportamento deles não é o de cavalheiros. Será, na verdade, o de vorazes bestas perdidos na fome do prazer, suas ações toldadas pelo ébrio que passa do procurador para a câmara. Chegada a matina, são feitas acusações de violação por parte da moça e sua família, ergue-se um processo e traçam-se os desígnios da desgraça eminente.

A cratera repentina, o javali em perfeita metáfora de um procurador caçado, uma infração sexual – são estes os ingredientes principais de “Dias em Chama,” cujo enredo deles se desenrola. A escalada de paranoias recorda os thrillers de Grisham nos anos 90, uma crítica política feita com base no entretenimento mainstream, daquele que injeta adrenalina e faz do desconforto regozijo. O alvo do realizador e argumentista Emin Alper é claro, estando a fita em crítica descarada contra uma Turquia contemporânea e muito conservadora, cheia de gente manipulada por líderes mentirosos e epítetos de violência a servir como novo ópio do povo.

Tudo o que é forasteiro é rejeitado e perseguido como o animal caçado. Esse será o papel de Emre. Ele é bode expiatório, mártir da ordem num cosmos relegado ao caos. Ele é figura à revelia da tradição antiga, seu desejo antitético a costumes heteronormativos só mais um ponto para a acusação no julgamento popular. O charmoso Murat, jornalista e figura da oposição face ao presidente, é tanto um aliado como outra desgraça que se precipita sobre o procurador, sua ligação elétrica pronta a eletrocutar os dois homens se não tiverem cuidado. E assim se perpetua esta tensão ao longo de duas horas até que o preconceito e ódio fermentados no calor finalmente explodem.

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© Leopardo Filmes

Acontece na noite das eleições, um clímax catastrófico que quebra com a languidez rítmica que o filme exemplificou até então. De repente, a cadência paciente de “Dias em Chamas” resvala na histeria, um grito no escuro em jeito de banda-sonora para a literalização da metáfora inicial. A conclusão será um retorno à besta bíblica que abre a boca e devora o mundo, quiçá em jeito de milagre ao invés de castigo. Sente-se como um sonho benigno, a terra misericordiosa depois de tanta maldade, um gesto justiceiro pela parte do autor que, verdade seja dita, deverá irritar muito espetador. Afinal, renega-se o realismo para dar lugar a algo mais febril, o rigor sacrificado ao alter da expressão primordial.

Em completa honestidade, declaramo-nos adeptos desta rutura e só desejamos que tivesse ocorrido mais cedo. O rigor que antecede a loucura dessa noite pode-se estimar em retórica intelectual, mas distende-se ao ponto de enfadar mais do que elucida. O simbolismo barato e a estrutura esquemática também magoam, justificados somente pela raiva clara em que tudo se apoia. Entenda-se que “Dias em Chamas” é filme furioso, por vezes em detrimento de um discurso com nuance, cheio de emoção forte subjacente a uma narrativa onde as personagens raramente se expressam em pleno. Nas mãos do autor, a Turquia aparece-nos à beira do apocalipse, nação fulminada pelas forças destrutivas que revolvem em seu âmago. Por isso podemos afirmar que o que falha em termos de cinema ou drama, triunfa enquanto canto de protesto. Calcinante e venenoso, com homoerotismo feito arma, o trabalho de Emin Alper merece muita admiração, respeito, e aplauso moderado.




Dias em Chamas, em análise
dias em chamas critica

Movie title: Kurak Günler

Date published: 14 de June de 2023

Director(s): Emin Alper

Actor(s): Selahattin Pasali, Ekin Koç, Erol Babaoglu, Erdem Senocak, Selin Yeninci, Sinan Demirer, Nizam Namidar, Ali Seçkiner Alici, Eylül Ersöz, Onur Gürçay

Genre: Drama, Thriller, 2022, 129 min.

  • Cláudio Alves - 70
  • José Vieira Mendes - 80
75

CONCLUSÃO:

“Dias em Chamas” começa de forma portentosa e termina num frenesim, pânico à flor da pele e adrenalina a ribombar no coração. Pelo meio, faz-se uma crítica feroz ao estado atual da Turquia, seus ódios mesquinhos e perigosos populismos, retórica conservadora descontrolada e hostil. Emin Alper assim se afirma como retratista do estado da nação, usando estilo severo e epítetos de erotismo queer para provocar e melhor delinear os parâmetros da sua investigação em cinema.

O MELHOR: Presa-se a rutura da sequência final, qual faísca que incendeia uma poça de gasolina que vimos formar-se ao longo da primeira hora. É uma explosão que ferirá a sensibilidade de alguns espetadores e fará outros revirar os olhos. Contudo, sentimo-la necessária e muito fantástica. A derradeira imagem, em particular, permanece na memória, um assombro agrilhoado ao espírito.

O PIOR: A natureza esquemática do engenho narrativo, quão gritado todo o simbolismo é e o modo como o guião jamais se digna a ponderar a humanidade da jovem cuja vitimização está na génese de tanto enredo.

CA

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