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Effi Briest – Amor e Preconceito, em análise

O mais recente destaque do ciclo especial de Rainer Werner Fassbinder e “Effi Briest – Amor e Preconceito”, estreado pela primeira vez em 1974.

EFFI BRIEST, O AMOR… MAIS FRIO DO QUE A MORTE!

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Há uma estética de cinema mudo que atravessa FONTANE EFFI BRIEST (EFFI BRIEST – AMOR E PRECONCEITO), produção de 1974, com realização de Rainer Werner Fassbinder, apesar de a especificidade da língua alemã ser uma constante que dá corpo e substância a um conjunto significativo de sequências pautadas por um ritmo que nem sempre coincide com a estrutura sonora de um filme onde prevalece a palavra, sobretudo a consubstanciada pela voz humana. Não, antes pelo contrário, se há algo que se destaca nesta ficção são os silêncios que, para existirem e serem mais eficazes, necessitam do contraponto do verbo, a voz dos actores, o pulsar de vida ou de morte das sonoridades quotidianas de uma era onde o ruído praticamente não se fazia sentir como sucede na actual civilização urbana. Diálogos, sons e pausas dramáticas que, ao serem disseminados pelos quatro cantos dos ambientes onde se inserem as personagens, polarizam os nossos sentimentos, assim como a nossa maior ou menor empatia com o que vemos e ouvimos. Mas não só: as legendas que a espaços são inseridas, representações gráficas que apresentam alguns pontos de contacto com os cartões dos filmes mudos, são autênticos comentários que geram uma interligação dialéctica entre a acção e as circunvoluções narrativas a que ela dá corpo, sendo mesmo um dos aspectos mais sedutores da componente “literária” desta obra cinematográfica. Finalmente, o poder das palavras, ou melhor, o poder que se quer atribuir desde o início ao que se escreve na superfície branca de um grande ecrã, assim como aos diálogos que ecoam nos salões burgueses, está patente na extensão do nome e subtítulo deste filme: “FONTANE EFFI BRIEST ou as muitas pessoas que fazem uma ideia das suas possibilidades e necessidades, porém aceitam, através das suas acções, a ordem dominante, ajudando, dessa forma a sustentá-la e a fortalecê-la.” Percebemos claramente que se fala aqui de personagens específicas no contexto desta obra específica, mas essa frase pode ser encarada, no seu significado mais lato, como uma exposição sintética dos valores que se aplicam a muitas outras personagens que encontramos em filmes anteriores do cineasta, memórias dos antecedentes que acabam por reforçar uma ideia de evolução na continuidade que no fundo suporta a identidade própria de uma proposta ficcional como EFFI BRIEST – AMOR E PRECONCEITO.

Effi Briest - Amor e Preconceito
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Dizem que este filme foi a obra longamente sonhada pelo autor que, desde 1969, procurou o financiamento que se perfilava então quase impossível. Foi igualmente o projecto cujo período de rodagem demorou muito para além do que era habitual no realizador, mais do dobro, ou seja, 58 dias, repartidos por dois anos. Para o argumento, Fassbinder adaptou o romance homónimo de Theodor Fontane (1819-1898), escrito em 1894. Disse Fassbinder a propósito do escritor: “Ele viveu numa sociedade cujos defeitos reconhecia e sabia descrever com precisão, mas, simultaneamente, necessitava dessa sociedade e a ela desejava pertencer. Rejeitava-a e considerava-a repelente. No entanto, lutou a vida inteira para ser reconhecido por parte dessa mesma sociedade.” E acrescentou: “Também é essa a minha atitude, perante a minha sociedade.” Não admira que seja este o seu filme de sonho (com a acção situada na fechada e repressiva Prússia, numa era em que pontificava o nobre, diplomata e político Otto von Bismarck), porque foi seguramente este o filme que lhe permitiu assumir a citada e corajosa confissão que precisava para se demarcar, mas não para se afastar ou ocultar, do meio em que se movia. Na prática, a força motriz daquilo que correspondia ao seu mais profundo modo de ser, num país erguido das cinzas ainda fumegantes da Segunda Guerra Mundial, uma Alemanha que fora vítima de uma ambição abjecta, feita de ilusões e mentiras, que acabou derrotada quando o “sonho” de um Terceiro Reich deu lugar ao pesadelo da ressaca para uma larga percentagem do povo alemão. Recordemos que R. W. Fassbinder nasceu precisamente no dia 31 de Maio de 1945, em Bad Worishofen, poucas semanas após a entrada dos militares americanos na cidade. Estava em curso a divisão da Alemanha.

Regressando aos aspectos sonoros e literários, o modo como o realizador quis usar a linguagem falada foi ao ponto de dobrar as vozes de alguns actores. Por exemplo, a actriz Irm Hermann foi dobrada por Margit Carstensen, Lilo Pempeit por Rosemarie Fendel e Hark Bohm por Kurt Raab. Dobragem precisa que sobrepõe ao som das vozes originais – e que vozes maravilhosas são as verdadeiras – um outro patamar do som, uma sensação que gera em nós a impressão de os actores na pele das suas personagens não falarem simplesmente para nos dar a ouvir as suas falas, mas sim para as suas palavras serem ouvidas num espaço subjectivo e objectivo de reconhecimento da sua composição e no contexto mais encantatório em que a linguagem fílmica pode e, neste caso, deve inserir-se.

Effi Briest - Amor e Preconceito
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Mas qual o enredo de FONTANE EFFI BRIEST? Uma muito jovem e bonita mulher, Effi Briest (Hanna Schygulla), nos seus ainda rebeldes 17 anos, vai ser empurrada pelos progenitores, sobretudo a mãe, para um casamento com um homem mais velho, enfim, com 38 anos, o Barão Geert von Instetten. Este e a sua mulher vão habitar uma casa solarenga no Mar Báltico. Num primeiro contacto que Effi, agora Effi Instetten, realiza com a governanta Johanna (Irm Hermann) fica a saber, e nós com ela, que não será a pessoa mais bem-vinda naquelas paragens. Esse encontro, ou melhor, essa colisão entre duas mulheres muito diferentes entre si, faz lembrar uma situação similar vivida entre as actrizes Joan Fontaine e Judith Anderson no célebre REBECCA, 1940, de Alfred Hitchcock. Durante a noite, a jovem não consegue dormir e começa a ser dominada por medos que não consegue dominar, nomeadamente o da existência de fantasmas que a observam. Mais adiante fica grávida, e para cuidar da filha contrata uma empregada, uma mulher católica e, por isso mesmo, algo deslocada daquele ambiente prussiano e protestante. Na verdade, Effi, como a ama Roswitha (Ursula Stratz), são duas faces da mesma moeda. Pessoas que não se enquadram a cem por cento naquele lugar isolado, situado perto das dunas de areia e junto ao mar. Precisamente, será na praia que uma relação diferente, com outras implicações de natureza pessoal, se começa a fazer sentir, quando Effi passa a conviver de perto com um galante oficial, o Major Crampas (Ulli Lommel). Na ausência do marido, que será chamado para funções políticas, Effi acentua a proximidade da relação com o seu novo amigo, facto que anos depois irá dar lugar a um conflito entre homens que, cada um com a sua intensidade, amam a mesma mulher. Tudo acaba num duelo. Será o fim do Major, mas igualmente o ponto final de um casamento assombrado. Divorciada, Effi vive agora numa situação que nada se compara ao conforto da alta burguesia onde nasceu e viveu os anos de casada. Transfere-se para um pequeno apartamento em Berlim, onde esporadicamente recebe a filha, Annie, visivelmente educada de acordo com os princípios repressores do pai, que ficou com a sua guarda. Effi não suporta ver a rapariguinha como um macaquinho amestrado, um papagaio sem alma e sem o fulgor próprio de uma criança, e cai desesperada numa crise existencial que finalmente chama a atenção e convoca a má consciência do pai e da mãe, que aceitam cuidar dela, mas num período que se revela dia após dia mais sombrio e depressivo, mergulhada que está num clima prenunciador da morte que parece inevitável. Por estranho que pareça, Effi, nos seus derradeiros momentos, acaba por perdoar o Barão Instetten, numa atitude que resulta de uma brutal quanto luminosa contradição, ou seja, para alcançar a paz interior ela necessita de expiar a culpa, expiação acompanhada do reconhecer da razão, o que quer que isso seja, subjacente no comportamento e nas dramáticas opções do seu ex-marido. Mais romântico do que isto, mais sofrido do que isto, mais verdadeiro do que isto, seria difícil encontrar num filme do senhor Rainer Werner Fassbinder. E não pensem que descrever as grandes linhas do argumento faz algum mal. Antes pelo contrário, ao longo do visionamento o que mais importa ao espectador atento e cinéfilo passa pelo inegável deleite inerente ao exercício de descobrir cada pormenor, cada movimento de câmara, o posicionamento dos actores e o rigor dos enquadramentos, a linguagem cinematográfica em plena conjugação com a matriz literária do guião. Numa palavra, a matéria de que são feitos os sonhos.

Amor e Preconceito, em análise
Effi Briest - Amor e Preconceito

Movie title: Fontane Effi Briest

Director(s): Rainer Werner Fassbinder

Actor(s): Hanna Schygulla, Wolfgang Schenck, Ulli Lommel

Genre: Drama, 1974, 140min

  • João Garção Borges - 85
85

Conclusão:

PRÓS: Para além da excelente cópia, compatível com a qualidade global das que se podem visionar no ciclo dedicado ao realizador, destaque maior para a Direcção de Fotografia de Dietrich Lohmann e Jurgen Jurgens, um preto e branco deslumbrante obtido a partir de negativo 35mm, cor. Nesta área específica, nota máxima para o modo como o realizador coordenou com os responsáveis pela cenografia e pela fotografia, nos seus mais diversos aspectos, o muito criativo jogo de interacções a partir de imagens reflectidas nos espelhos que, por diversas vezes, permitem anular, por exemplo, a noção clássica de campo/contra-campo, acentuando no fotograma uma espécie de composição áudio e visual, muito próxima das gravuras sob a forma de vinhetas e de outras populares iconografias novecentistas. Não são muito frequentes os grandes planos, mas há um que surpreende e supera os que por lá se vislumbram: o rosto de Hanna Schygulla, ou seja, Effi Briest, perto do fim do filme e do seu fim enquanto personagem, que faria inveja a uma Greta Garbo ou a uma Marlene Dietrich, fotografadas pelos geniais William H. Daniels e Lee Garmes, só para citar dois nomes maiores dos anos de ouro da grande indústria de Hollywood. Trata-se de um momento sublime, em que ela regressa ao baloiço da juventude e confessa ao Pastor Niemeyer, na sequência de antigas recordações, que outrora o vento lhe dava a sensação de voar para o céu. E pergunta: “Será que vou para lá?” E o Pastor acabará por responder: “Sim, Effi. Vais para lá.” Fundido a branco. Está dito, um filme para ver e rever.

CONTRA: Depois do que disse? Nada.

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