Family Film Project | Entrevista à diretora do festival Né Barros
Né Barros, diretora do Family Film Project, falou com a MHD para discutir a importância dos filmes caseiros na construção de uma memória etnográfica.
Não é fácil ter uma visão sobre os filmes caseiros em Portugal, como também não é fácil pensar em memória, arquivo e etnografia num festival de cinema por solo lusitano. Normalmente, a procura por esta forma tão minimalista e quase corriqueira de fazer cinema é menosprezada em detrimento de um cinema mainstream, que joga a favor do excesso das emoções sempre numa perspetiva de velocidade, frenetismo e até efemeridade. Tantas vezes esquecemos os filmes mais pequenos, que têm um papel importantíssimo para ajudar-nos a pensar sobre as nossas identidades, os nossos microespaços, onde convivemos e passámos maior parte dos nossos dias.
Foi nesse alinhamento que conversámos com Né Barros, a diretora do Festival Internacional de Cinema Family Film Project, de decorre no Porto de 12 a 16 de outubro, e que é também coreógrafa e diretora do Balleteatro. Para a equipa da MHD é-nos pertinente partilhar a experiência de visionamentos proporcionadas por este festival do norte, que ajuda sobretudo a ganhar uma ideia do que são os “filmes caseiros“, de obras que muito têm a dizer sobre o nosso quotidiano e que até bem pouco tempo não tinham direito a um festival ou estavam inerentemente reservadas aos espaços das filmotecas e universidades.
Celebrar o “home-made film” ou “home-made movie” pode ser uma forma de entender como um filme vai além dos realizadores e seus atores célebres, não está reduzido a um certo fanatismo em torno das estrelas, e fala com uma pureza e magia das pessoas comuns nos lugares comuns da nossa existência.
Na entrevista da MHD com a Né Barros, que poderás ler a seguir, são apresentados os principais tópicos da 10ª edição do Family Film Project – onde se destacam a retrospetiva dos primeiros trabalhos do cineasta sueco Ruben Östlund, vencedor da Palma de Ouro em Cannes com o filme “O Quadrado” – e também aquilo que está por vir, os projetos futuros de um festival que sonha chegar a mais cidades, para apresentar este interminável debate entre o mais íntimo e recôndito e a esfera pública. No total, para este ano, o Family Film Project conta com 35 filmes em exibição, dos quais duas dezenas de filmes encontram-se na secção “Em Competição”. Vejamos o que nos diz a Né Barros e o que poderemos esperar ao longo desta semana.
MHD: Que filmes e atividades destacaria desta 10ª edição do Family Film Project?
Né Barros: Para além da secção de competição, que naturalmente é sempre um momento muito importante de descoberta de novas vozes, novos olhares e novas formas de construir o arquivo e a memória – e que eu recomendo sempre -, destacaria o foco no nosso realizador convidado que é o Ruben Östlund, um cineasta que tem vindo a ser reconhecido pelos seus trabalhos mais recentes, mas que ao nosso festival nos interessou para recuperar a primeira parte da sua obra. Um trabalho com menos visibilidade mas que atinge a temática do nosso festival. A masterclass com ele será um momento importante, para ouvir uma pessoa especial, sendo uma voz alternativa com processo de criação singular.
Também poderia destacar a recuperação do filme-concerto, que é um formato que tínhamos inicialmente e que irá acontecer no dia 13 de outubro. O parceiro da sessão é o Home Movies, uma associação italiana que trabalha com filmes de arquivo, com quem trabalhamos desde o nosso surgimento. Aqui será recuperado o filme “The Shape of Things to Come” filmado por jovens nova-iorquinos. Digo que é um momento muito especial.
Além das diferentes conversas, temos um destaque especial para a Catarina Vasconcelos que está a ter um sucesso enorme com o filme “A Metamorfose dos Pássaros”. Uma pessoa com uma cultura e o modo de pensar as imagens bastante interessante. Há outros encontros e masterclasses importantes, como a conferência com a Giulia Simi, que na sessão-conferência Il gesto delle donne agendada para o dia 14 de outubro irá refletir o trabalho da mulher, ao longo de diferentes tipos de profissões e momentos históricos. Afinal, há também que pensar na mulher pela perspetiva do trabalho e não apenas no lar.
Temos inclusive, pela primeira vez, uma extensão do MICE – MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA ETNOGRÁFICO da Galiza, com uma série de sessões dedicadas ao filme etnográfico. Temos os ateliers para as crianças e jovens dirigidos pela Tânia Dinis. São momentos importantes, onde as crianças e os jovens vão decifrar as imagens, e como é que se constrói a memória e o seu lado mais fragmentário.
No geral, o Family Film Project em 2021 tenta mostrar como a memória não é algo sólido, mas algo muito frágil e até ficcional. Queremos ajudar o público a perceber a memória do ponto de vista auto-biográfico e referente àquilo que nos pertence. Pensar as imagens do lado mais pessoal e a esfera pública que, por intermédio, aponta a um lado universal.
MHD: A Né refere-me muito a questão da memória, aliás é a base do festival. Como é que ensinamos jovens a pensar a memória num momento como o hoje onde a memória é um conceito sensível, e somos bombardeados com imagens, de forma a que deixamos de ter tempo de olhar para o passado e pensamos mais futuro.
Né Barros: Justamente o nosso festival tem pertinência a esse nível. Num dos textos que escrevemos sobre a filosofia do festival referimos o facto das imagens serem muito vistos do lado efémero e da velocidade a que as coisas acontecem na nossa sociedade sempre viradas ao que vem a seguir.
Somos invadidos pela imagem, pelo multi-tasking e pelo scroll-down. Estamos a ver televisão, a conversar por videochamada ou a mexer nos nossos smartphones e deixamos de ter tempo para assimilar algo mais histórico.
Num dos filmes da Catarina Vasconcelos, ela refere que “antes as revoluções faziam-se por dentro e agora as revoluções fazem-se mais por fora”. É preciso continuar a fazer as revoluções por dentro, é preciso que as pessoas tenham noção do seu legado, mas que não fiquem reféns da memória – longe disso.
Os filmes desta edição do Family Film Project visam ajudar o público a perceber como se aborda a memória num espaço que nos é familiar, muito mais além de um modelo generalizado de família. Devemos pensar a memória no espaço dos afetos, revelador das pequenas narrativas igualmente pertencentes à História e que precisam de ser partilhadas.Há muito valor nessas narrativas que nos ajudam a refletir sobre o mundo.
MHD: É realmente importante essa questão, porque quando vamos ao cinema pensamos sempre no domínio do espectáculo, dos filmes maiores do que a vida, e afastamo-nos dos filmes mais pequenos. Existem até espectadores reticentes a esse domínio. Portanto, além deste festival, que outras ferramentas deveriam ser utilizadas para aproximar o público dos filmes sobre as memórias familiares?
Né Barros: De facto, os festivais continuam a ser a principal ferramenta para chegar a estes filmes. São importantes porque abrangem momentos em que não existem somente a pensar num ponto de vista comercial, não há uma pressão sensacionalista ou mesmo uma pressão voyeurística. Através das plataformas de streaming, existem fórmulas criadas por computador para o público encontrar memórias familiares, mas numa lógica muito mais superficial com objetivo de alcançar as audiências. O nosso festival procura algo diferente…
O público que procura conhecer os filmes que mostramos gosta de ir a estes espaços, a espólios e a filmotecas. Continuam a ser esses os locais que merecem ganhar um foco e devem ser utilizados para alcançar este nosso nicho.
MHD: Como descreveria a relação entre o Family Film Project e o Home Movies – Archivo Nazionale del Film di Famiglia e quais são os objetivos delineados para o futuro em conjunto com esta associação?
Né Barros: A nossa colaboração tem sido espantosa. A nossa primeira edição trabalhou exclusivamente com filmes convidados desta associação e, desta forma, conseguimos trazer obras que nunca haviam passado em Portugal. Uma das retrospectivas foi a do Jonas Mekas, com as suas obras museológicas e depois tivemos sessões só com filmes caseiros, recuperados precisamente por esta associação italiana. A recolha deste tipo de material não é fácil, embora esteja à venda em feiras. Há, portanto, um lado de arquivo que não pertence a ninguém e que a associação Home Movies recuperou.
Um dos casos foram os trabalhos do cineasta e arqueólogo das imagens Péter Forgács, cujos filmes de arquivo foram editados de maneira a chamar a atenção para um determinado acontecimento, para um determinado problema social, como a questão do Holocausto, ou outras temáticas políticas. Há neste seu trabalho um jogo entre o material de arquivo e a ficção, e apesar de serem subjetividades são coisas que merecem foco.
MHD: O Family Film Project é um festival do Porto, mas será que no futuro poderemos contar com uma expansão por outras cidades portuguesas, sobretudo aquelas com menor densidade populacional?
Né Barros: É uma boa questão, porque o Family Film Project desde início procurou fazer extensões um pouco por todo o país. Uma dessas extensões aconteceu nos Açores, mais precisamente no Faial. Tivemos ainda dois anos em Espanha, no âmbito do projeto VISIONA, com quem estabelecemos algumas parcerias.
Ainda não conseguimos ir a mais lados, mas queremos reforçar e apostar num plano nacional. Temos, aliás, uma Open Call de filmes caseiros, portanto pode ser uma maneira de chamar a atenção para as pessoas que queiram partilhar connosco os seus filmes, independentemente do local onde estejam. A riqueza do contraste de modus vivendi é algo que queremos comparar.
MHD: O que mudou desde o início do festival até chegarmos à 10ª edição do Family Film Project?
Né Barros: A estrutura manteve-se e os eixos que nos interessavam também. Falo da secção em competição, da Open Call, do foco num artista convidado, das masterclasses e até do Family Film Project na sua vertente da investigação. O festival tem desenvolvido um conjunto de livros que se encontram na plataforma online Wook, que são livros ensaísticos para pensar a questão da imagem e memória e filosofia, sempre em estreita colaboração com o INSPSIC – Instituto Português de Psicologia no Porto. A parte que mudou mais na estrutura do festival foram os Ciclos de Performance Private Collection. O foco performativo começou a ter um maior peso no festival de tal forma que já editámos um livro onde são reunidas essas performances.
Por fim, sentimos que estamos a chegar a mais pessoas, que olham para o festival Family Film Project com curiosidade. Tem sido uma luta muito grande, porque inicialmente era um festival de uma dimensão específica, e apesar de queremos manter a sua dimensão, sentimo-nos gratos pela calorosa recepção do público. Ao conquistar este espaço ganhamos visibilidade e isso é extraordinário.
MHD: Obrigado.
O Family Film Project decorre até ao próximo dia 16 de outubro em vários espaços do Porto. Visita a página oficial do festival aqui.