First Breath After Coma (foto de promoção)

First Breath After Coma à MHD | “O ser humano é péssimo a acertar no que precisa”

Reconhecer a fragilidade humana está em voga no indie ou é uma ideia que importa ainda avançar? Falámos com os First Breath After Coma sobre o NU e muito mais.

Leiria tem-nos trazido uma série de artistas de música alternativa, ligados à editora nacional Omnichord Records, que urge conhecer e acompanhar. Já antes tivemos a oportunidade de recomendar a versão carismática do pós-rock e música ambiente de Débora Umbelino, mais conhecida por Surma, a propósito da sua participação no cartaz da edição de 2018 do Vodafone Paredes de Coura. Agora é a vez dos First Breath After Coma, cujo catálogo de três álbuns revela uma banda capaz de absorver e recriar as suas influências sonoras, construindo um caminho sempre em mutação mas com uma identidade reconhecível. Sintetizando eficazmente experimentalismo e estrutura pop, a pandilha de Roberto Caetano, Telmo Soares, Rui Gaspar, Pedro Marques e João Marques não tem o problema de emular as origens, despreocupação que lhes permite regenerar o que os gera e retirar uma voz única de todas as vozes com que convivem. Aos First Breath After Coma não falta investimento numa sonoridade instrumental colectiva, com uma dinâmica de banda claramente audível, nem um lirismo capaz de evasivamente cortar a direito (se tal é possível) no confronto com aquelas questões existenciais tão incómodas quanto libertadoras. Num panorama lusitano onde a ironia, a sátira e a política tendem a escudar os artistas e ouvintes de certas feridas, muitas vezes mais lacerantes do que o problema da justiça social, tal confronto é um alívio e de gritar por mais.

Depois do álbum de estreia The Misadventures of Anthony Knivet (2013), já de si uma versão original da sonoridade daquela banda da qual os First Breath After Coma retiram o nome, e de Drifter (2016), disco orquestral que os catapultou para a consciência crítica internacional, assistimos agora a um projecto particular que funde os talentos musicais e cinematográficos da equipa. O terceiro álbum NU, lançado no dia 1 de março deste ano, surpreendeu-nos com o seu gospel e northern soul intensos e vem acompanhado de uma média metragem produzida e realizada por aqueles membros dos First Breath After Coma que gerem também a Casota Collective, o trabalho que lhes garante o pão nosso de cada dia. Naturalmente, foi sobre este álbum visual que nos debruçámos na nossa conversa com o Roberto Caetano e o Telmo Soares, algumas horas antes do seu concerto de abertura para os dinamarqueses Efterklang, no Lisboa ao Vivo, promovido pelo Gig Club. Mas, a bem dizer, impossível não discutir todo o catálogo e aquelas linhas de fundo que o atravessam e unificam, porque em cada obra sua é o artista inteiro que vislumbramos. Foi ao encontro desse artista e de tudo o que dele se nos revelou até agora que quisemos ir.

First Breath After Coma - NU - Entrevista
First Breath After Coma

Poderiam explicar o que é a Casota e como surgiu?

Telmo Soares: A Casota basicamente é uma produtora audiovisual que três de nós criaram no final de 2016. Juntámo-nos nós os três com mais um colega nosso, que hoje em dia é o nosso manager, e criámos uma produtora porque tínhamos acabado os estudos. Alguns de nós estudaram a componente audiovisual, tiraram cursos nessa área, e precisávamos de um projeto que nos desse liberdade total, se precisássemos de ir um mês para fora com a banda em tour ou de dar concertos durante a semana. Assim, a única escapatória seria sermos os nossos próprios patrões e hoje em dia corre bem, incluindo também tanto o Roberto como o João, que, não tendo estado na criação da produtora, estão sempre muito ligados ao projeto. E o NU é o resultado dessa colaboração entre a banda e a produtora.

Como surgiu este último álbum dos First Breath After Coma?

Roberto Caetano: A ideia de juntar o vídeo ao som já é antiga. Nós já desde o primeiro álbum que queremos fazer os nossos próprios videoclipes. Mais tarde, com as valências que eles foram adquirindo, (lá está) formou-se a Casota Collective. Neste terceiro álbum houve um todo que deu para juntar e fazermos então um vídeo-álbum. Acabámos por viver juntos numa casa mesmo ao lado do nosso estúdio, trabalhávamos durante o dia nas músicas, à hora do almoço e à hora de jantar tínhamos as folhas dos vídeos à frente para termos ideias e irmos escrevendo para cada música. Foi uma simbiose muito natural.

Qual foi o processo de composição do NU? Porque sabemos que foi bastante distinto daquilo a que estavam habituados.

RC: Nós estamos habituados a marcar um horário, chegarmos todos, fazermos uma experimentação todos juntos e, quando sentimos aquele arrepio, a parar e ir desenvolver a ideia. Neste terceiro álbum estávamos a pensar que ia ser a mesma situação, só que durante mais horas, porque estávamos mesmo à frente da sala de ensaios. Acabámos por perceber que as dinâmicas de ensaio e criação eram diferentes de uns para os outros. Ocupámos um espetro muito grande do dia mas, se calhar, vermo-nos lá os cinco ao mesmo tempo foi muito raro, só mais para a parte final em que se estava a compor o resto. Mas as ideias iniciais, como as vozes, foram surgindo de uma forma mais individual, mais pessoal. Daí o título NU, é um bocado isto, termos perdido o medo e ganho coragem de expor cá para fora, individualmente. Estão presentes pedacinhos mais evidentes de cada um de nós.

Tocar juntos e compor colectivamente parece ser fundamental numa banda de pós-rock (ou que pelo menos nasceu como tal) como são os First Breath After Coma. Sentiram em algum momento falta desse modo de trabalhar?

TS: Acho que o facto de os primeiros dois álbuns terem vindo desse método de trabalho, todos juntos a ensaiar, fez com que os álbuns tivessem uma componente muito mais ao vivo e muito mais coesa a nível instrumental. Não sentimos falta porque foi uma abordagem diferente que descobrimos e tentámos abrir à nossa mente e à nossa maneira de fazer música. Foi uma novidade e adorámos esta nova experiência porque as coisas ficaram, sim, mais fragmentadas, em certos aspetos menos live, mas isso fez com que as músicas também ganhassem uma vertente mais original de acordo com o que tínhamos feito até agora. Até agora tínhamos seguido sempre uma linha, foi uma boa maneira de quebrar com o que tínhamos andado a fazer, não perdendo a essência da banda mas fazendo uma coisa nova. A nossa única premissa era que o terceiro álbum não ser uma simples continuação do segundo, queríamos mesmo fazer uma quebra de sonoridade.

THE MISADVENTURES OF ANTHONY KNIVET | “ESCAPE”

Sonoramente temos vindo a assistir a uma evolução dos First Breath After Coma que poderia caricaturar do seguinte modo: De Explosions in the Sky a M83 a Bon Iver. Concordam com esta caricatura? Como explicariam o vosso percurso?

TS: Acho que tem muito mais a ver com a fase criativa onde nós estávamos em cada álbum e não tanto com ser mais influenciado por um artista. Eu diria que no primeiro álbum éramos tão influenciados por Explosions como Bon Iver e o mesmo no segundo e no terceiro. Nós ouvimos Bon Iver já há bastantes anos. Realmente o grande pulo que demos face a tudo o que tínhamos feito antes, quando ainda nem existiam os First Breath After Coma, foi mesmo este seguir por um caminho mais instrumental, usar a voz como um instrumento, tal como o pós-rock se propõe fazer (se bem que muitas bandas de pós-rock nem têm voz, mas há umas que têm). No segundo álbum já foi um degrau acima ou, pelo menos, um passo ao lado. Começámos a caminhar talvez por outras influências, não diria pop, mas talvez na linha de Sigur Rós, fomos para um lado mais orquestral, mais melódico. E, neste terceiro álbum, optámos por fazer uma coisa para o que Bon Iver talvez seja, sim, um bom exemplo, mas um Bon Iver mais recente. Porque o Bon Iver do primeiro álbum é completamente acústico, o segundo é assim meio acústico, já a caminhar um bocadinho para banda.

Como é a escrita lírica nos First Breath After Coma? Há algum de vocês que escreve maioritariamente as letras? Porque, apesar de tudo, há uma grande unidade entre elas.

RC: Não, acho que somos cinco cabeças que pensamos muito no mesmo. Nos primeiros dois álbuns criámos as letras, como tudo o resto, em conjunto, fomos os cinco a trabalhar nelas. Neste álbum aqui é que já se vê que há uma letra que é do Telmo, outra minha, outra que é do Rui. Já começa aqui a surgir uma diferença, mas passa sempre pelos cinco, não há ninguém de nós que chegue e diga “pronto, esta letra é para esta música e está feito”. Tem que haver ali um sentimento comum, transversal.

TS: Acho que neste caso a maior diferença para os outros dois álbuns foi exatamente isto. Mesmo que houvesse um que tivesse mexido mais naquela letra, ia acabar por passar por todos, muitas vezes mais numa de identificação e confirmação. Houve muitas letras neste álbum que foram feitas por uma pessoa e depois apresentadas: “Olha fiz isto, o que achas?” Tem de haver sempre isso, nunca é uma coisa muito reta nem quadrada. Depois, como é óbvio, todos nos identificamos porque estamos todos mais ou menos na mesma fase das nossas vidas e são temas transversais ao ser humano. Qualquer pessoa consegue identificar-se, apesar de serem coisas muito pessoais. Ou seja, estão ali temas muito, muito íntimos e referentes a uma parte muito específica da vida de quem escreveu aquela letra, mas depois podem ser extrapolados para a vida.

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A imagem do mito de Ícaro surge tanto em NU como no The Misadventures of Anthony Knivet, com uma estranha inversão ou reescrita. O céu não parece ser para vocês necessariamente inatingível, como seria para os gregos. Em “Feathers and Wax”, é mais um problema de ter aprendido certas coisas que permitiriam ter lá chegado. E se inalcançável, tem pelo menos uma função de elevação, como em “Punch in the Air”. Deve-se desejar tudo? Pode-se obter o que se deseja? O fim trágico não é inevitável?

TS: Eu acho que no primeiro álbum éramos mais sonhadores, mais ingénuos. A maior diferença dos outros dois álbuns para este foi que as letras antes eram muito mais observações do mundo que nos rodeava e, neste álbum, pela primeira vez olhámos para dentro. Em relação a esse tema, essa letra é um exemplo do lado sonhador e ingénuo que nós ainda tínhamos a olhar para as coisas e este “Icarus” do NU fomos nós a ir de encontro novamente a esse tema e pensar sobre ele. Na verdade surgiu de uma conversa que estávamos a ter, onde nos questionávamos se não estaríamos a arriscar demais, porque quanto mais sobes maior será a queda. Mas percebemos que, se calhar, às vezes é arriscar mesmo, é ser mesmo radical, o mais fiel possível ao que acreditamos e depois, se a coisa correr mal, é saber encaixa-la, saber tornar essa falha em algo bom, nem que seja numa aprendizagem. Neste álbum foi um bocado isso, nós não fazíamos a mínima ideia qual seria a reacção. Se calhar há duas músicas deste álbum em que estamos nesta situação de estar numa música a falar de fazer música, estamos no álbum a falar do próprio álbum. A “Change” é um bom exemplo disso. Estamos em banda a escrever uma letra e a compor uma música que fala das nossas próprias vivências de ser banda e de compor música. É um bocado meta, mas a “Icarus” acaba por ser um bocadinho isto.

RC: Eu acho que há um lado esperançoso em todas as letras.

Essa era exatamente a minha próxima pergunta. Uma das imagens fundantes dos First Breath After Coma é a da aurora, da luz iminente. Correlativamente, a esperança parece ser a palavra de ordem, mesmo se sempre com um travo ameaçador. Que é para vocês a esperança e porque importa tanto?

RC: Sim, acho que é uma constante de todos os álbuns. É um lado esperançoso que usamos nas letras. É a tal cena de tentar tocar no céu e acreditar que não foi em vão, ou seja, mesmo que corra mal há ali qualquer coisa que tiramos de bom. É um bocado aquilo que vivemos diariamente, rumar contra a maré. Muitas vezes são dissabores que vão pelo meio, mas é sempre bom ter coragem e persistência, muito mais do que, sei lá, desejar que “ok, não está correr bem, nunca mais toco naquilo.” E é isso que tentámos fazer nos primeiros originais. Não correu nada bem, mas não baixámos os braços, fomos à luta, sabendo que é difícil ser-se músico, perseguir esse sonho em Portugal, mas vamos fazer um esforço, tentar fazer algo mais do que apenas o dinheiro. Então, é sempre esse lado esperançoso que as nossas letras carregam, essa parte da “Change” de que o Telmo estava a falar. Ensaiar numa sala em que o telhado está a deixar entrar água e a água está quase sobre os nossos pés, a meio das canelas, e mesmo assim gritar por uma mudança, para que as coisas aconteçam. Acho que esse lado esperançoso, esse lado romântico é transversal.

TS: A vida, parecendo que não – é quase uma frase feita –, tem altos e baixos e nós podemos, se isso for mesmo um gráfico, fazer música quando estamos no alto, quando estamos numa fase boa da vida, e podemos fazer música quando as coisas estão a descambar, quando estamos no fundo do poço. Todas essas músicas dão temas diferentes, letras diferentes e géneros diferentes e conseguimos associar artistas a diferentes fases destes picos. Nós parecemos fazer música muito naquela zona do gráfico em que estamos em baixo, mas estamos a subir. Na curva em que já estamos a começar a subir e começamos a ver o alto.

RC: A luz ao fundo do túnel.

NU | “CHANGE”

Já agora, a propósito da “Change”, a certa altura vocês dizem que “oh father, we’re hoping for that change”. Tenho curiosidade em saber quem é este pai.

TS: É uma componente muito engraçada de um diálogo que foi muito impactante, mas não está visível em nada. Conhecemos uma pessoa que começou a trabalhar ao pé de nós, ao pé do nosso estúdio, um pintor. Ele estudou artes plásticas e hoje em dia é pintor. É bem mais velho que nós e é uma personagem, tem uma maneira de pensar muito, muito própria. Chama-se Leonardo Rito e é muito bom orador, fala muito bem. Passámos pela fase de o conhecer durante a criação do álbum, e foi-nos influenciando em pequenas coisas. É uma curiosidade – por acaso hoje não vai dar para ver, porque em princípio vamos partilhar a bateria com os Efterklang – mas a parte da frente da nossa bateria tem uma pintura dele que diz “Love Jesus”. Ou seja, ele é uma pessoa muito peculiar, com uma maneira de pensar muito radical, é muito assertivo, mas nunca ninguém diria que ele tem uma componente religiosa. Nenhum de nós é propriamente religioso, muito menos praticante mas, como este álbum tem um lado influenciado pelo gospel e pela soul, gostamos muito deste mundo, desta ligação a algo superior, e acho que foi uma pequena referência a esse mundo.

Como aliás se percebe pelo nome do vosso segundo álbum, Drifter, outra imagem relevante é a da água e uma série de metáforas e realidade a ela ligadas. Não é de estranhar dada a sonoridade com que trabalham os First Breath After Coma. Estas imagens aquáticas são sugeridas pelo som ou emergem ambos, imagens e som, de um mesmo lugar? Se sim, que lugar é esse?

RC: Depende. Por exemplo, na construção do NU existiram ideias visuais que surgiram primeiro que foram depois, mais tarde, modificar um bocado a música e o contrário também aconteceu, que foi a música muitas vezes transformar aquilo que queríamos gravar na imagem. Quanto a esse lugar, sei lá, dizem que veio tudo da água e é verdade. Tem essa base, depois também tem a base geográfica. É um facto que gostamos do mar, estamos a 15 minutos e faz-nos muito bem ir lá. Mas a água também tem aquela cena de submersão, quando estás contigo próprio, sem ninguém. Eu estive há pouco tempo no deserto e parece que sinto a mesma coisa lá. São lugares com tanta coisa, mas ao mesmo tempo muito teus, em que te ouves muito a ti próprio. Se uma pessoa estiver no mar parece que ouve melhor os próprios pensamentos. Se estiveres em Marrocos, no deserto do Sara, é a mesma coisa que sentes, é como se estivesses numa bolha e fosses mais tu ali dentro. É aquilo de que o Telmo também falou, que nos outros álbuns há uma cena de fora para dentro e agora de dentro para fora. Acho que é um bocado a junção de tudo isso.

DRIFTER | “SALTY EYES”

Poderiam explicar como surgiu a narrativa do NU? Porque sei que não foi concebida a priori, mas foi antes emergindo.

RC: Isso vai-se construindo.

TS: Foi muito gradual. A parte mais curiosa de fazermos um disco e um filme ao mesmo tempo foi essa. Nós estávamos simultaneamente a fazer músicas e a pensar os vídeos para as músicas. Na maior parte das vezes aconteceu o normal, o que é suposto acontecer, que é a música influenciar a imagem. Mas curiosamente aconteceu pela primeira vez o contrário. Uma música tinha sido começada e tínhamos uma ideia visual para toda a música. Mas a música não estava acabada ainda, por isso, o final da música foi baseado na ideia que tínhamos para o filme. Isso é raríssimo acontecer, a não ser que o artista seja desafiado para fazer uma banda sonora. Fizemos metade do álbum, ou mais de metade do álbum, já tínhamos as ideias, a maior parte das letras e começámos. Uma das coisas que nos ajudou a desbloquear foi começar a associar palavras-chave a cada música e essas palavras-chave foram resultar num conceito muito interessante, que depois tentámos passar para a narrativa – a das diferentes fases, todas elas dramáticas, da vida de uma pessoa, algumas boas outras más, mas todas elas muito importantes, os pontos-chave da vida de uma pessoa. Costumamos dizer que o álbum e o filme são sobre o nascimento, a vida e a morte, porque é um bocado esta curva. Sim, foram-se influenciando muito gradualmente e nós gostamos de fazer as coisas assim. É muito raro partirmos para um álbum com uma ideia preconcebida, porque já somos muito complicados e muito demorados a compor música. Se fossemos com balizas, ia ser bem mais complicado ainda.

Gostava de falar sobre o tema de fundo desta “narrativa”. Às vezes parece-me que a ideia de fragilidade não passa de um culto, uma noção que nos enleva, até comove, tecemos a nossa arte em redor disso, mas no fundo não passa de um novo estereótipo, que opomos ao estereótipo épico. Quão sério é o tema aqui e as reflexões que vocês tecem em torno dele?

RC: Se há uma coisa que todos somos é frágeis. Há uns que têm uma capa mais rija que outros, mas lá no fundo há pontos que nos deitam abaixo. Acho que isso é mais um exemplo do lado esperançoso que nós levamos nas nossas músicas. “O que vais fazer? Como vais reagir, quando a fragilidade te ataca, quando estás lá no fundo?” Há muita coisa que podes fazer. Podes ver o mundo de outros olhos, podes ver as partes boas. Sei lá, todas as pessoas vão reagir de maneira muito própria, mas partem de um sentido comum, que é o facto de serem frágeis e há ali qualquer coisa que as deita abaixo. Essa “fragilidade” está no início do álbum, porque as outras palavras que vêm a seguir são resultado desses momentos que, começando por ser frágeis, acabam depois por ter direções como a do “empowerment” e todas aquelas palavras que estão no vídeo, que nos fazem sair desses momento. Acho que é quando estamos frágeis que nos encontramos, quando estamos mais lá no fundo, a ouvir o que se passa connosco.

TS: Embora possa acabar por ser um estereótipo, muito usado como inspiração, ainda é uma coisa muito associada (pelo menos publicamente) aos artistas. Conheço muita gente (pelo menos é a minha experiência) doutras gerações e da minha geração que tem ainda muito preconceito em mostrar a fragilidade. E mostrar a sua fragilidade não é dizer “pá, no outro dia chorei a ver o Rei Leão”. Isso não é mostrar a fragilidade. Fragilidade é dizer que tenho um medo da morte que me faz não conseguir lidar com elementos da minha vida. Fiquei obcecado por uma pessoa, o que me fez mal. Situações que, 99% das vezes, sentimos vergonha de expor. Nos outros álbuns falámos de fragilidade, da fragilidade do ser humano, da fragilidade em lidar com o mundo à nossa volta. Neste aqui, foi um assumir, não de que todos temos, mas de que as temos especificamente e quais são. Claro que não tornámos o álbum uma consulta de psicólogo, mas, para quem nos conhece melhor, estamos realmente a ser explícitos nos nossos medos e nas nossas angústias. Concordo um bocadinho com essa parte da fragilidade já ser, às vezes, um bocado usada. Mas também sinto que há muita gente que vive, faz música e nunca toca nesse ponto. Porque a música também é muitas vezes usada como uma coisa para entreter, para dar pica, para dar garra, e esse ponto não é tocado. Até acho que não é assim tão comum tocar nesse tema. Porque na verdade ninguém quer sair à noite, beber umas cervejas e ver uma banda a demonstrar-se frágil e a ter toques de fragilidade no palco. Normalmente, queremos uma coisa mais energética, mais positiva.

E agora, voltando ao Ícaro, a ambição, o desejo desmedido parece ser uma das notas de fundo. Até que ponto importa aqui? Até que ponto importa para a vida? Até que ponto empecilha a vida? Porque o tema de abertura do álbum diz a certa altura que “all you ever want/ will turn to blind you/ of all you need”.

TS: Acho que acaba por ser muito literal. Nós passamos a vida toda com objetivos, com desejos, sonhos e ambições e muitas vezes criamos uma bolha com o que queremos, as nossas ambições e, de repente, está-nos a passar ao lado o que queremos realmente, que nos completa e faz feliz. Há pessoas que passam uma vida inteira em busca de uma carreira, em busca de um casamento, em busca do que seja, uma casa, um carro. E pronto. Nós criámos este álbum e, se calhar, escrevemos essa letra com a noção de que as coisas não são bem assim. Daqui a cinco ou dez anos, vamos olhar para o que éramos agora e vamos achar que ainda não tínhamos bem descortinado o que nos deixa realmente felizes e tranquilos, equilibrados, o que nos faz ser quem realmente somos. Andamos aqui muito cegos, literalmente, diz a letra, por aquilo que achamos que queremos. Infelizmente, somos muito maus a saber do que precisamos. Ou seja, o que isso quer dizer é que o ser humano é péssimo a acertar no que precisa.

FIRST BREATH AFTER COMA | “NU” AO VIVO NA CASOTA

Há uma certa tensão no álbum entre o ímpeto para proteger e certos laivos de violência. Parece haver também a necessidade de sair de si para ir ao encontro do outro. O que é a relação amorosa e como se relaciona com a fragilidade?

RC: Qualquer tipo de relação é complicado. A vida nunca é um mar de rosas. Duvido que alguém que esteja aqui sentado na mesa (e se fossemos mais, mais ainda seriam) nunca tenha discutido ou pensado fazer isto e aquilo a uma pessoa que realmente ama. Isto é completamente normal. Nós aqui também tentámos a ideia do labirinto, das entranhas. É descortinar como são todas as relações que temos durante a vida: umas estão neste canto, outras estão naquele canto, temos de espreitar por cima do labirinto, outras por baixo. É esta dinâmica que acaba por ser muito frágil, porque todas as pessoas são diferentes, acabando por ser iguais: temos de ser sociais. Acabamos por ser muito frágeis uns com os outros. Na minha relação com o Telmo, a quem conheço há mais tempo, vou percebendo até onde posso ir, o que fazer ou não. Contigo seria completamente diferente [risos]. Acaba por ser uma questão de sabermos lidar com cada um. Uma das coisas a ter mais em conta é que temos de ser verdadeiros. Se é para discutir, é para discutir. Se é para amar, é para amar. Se é para proteger, é para proteger. Mas sabermos ser verdadeiros e dizer essas coisas na altura certa.

Poderiam explicar-nos o fim do álbum e o fim do vídeo? O cenário final é o de uma capela. Apenas mortuária?

TS: A nível conceptual é engraçado, porque a ideia não passava por uma capela. Passava por uma ideia completamente diferente que, depois a nível de produção, não resultou. Aconteceram-me dois contratempos completamente inesperados que nos fizeram arranjar uma solução rápida. Acabou por ser uma solução em cima do joelho mas que, para mim, resultou melhor, é provavelmente o plano de que mais gosto. Tem muito mais a ver com crenças e o nosso ser mais além, num estado superior, não terrestre, não de coisas do dia-a-dia mas espiritual. E aquilo fez-nos todo o sentido, porque na verdade, literalmente, no nosso imaginário português, católico, é uma igreja, é uma capela, tem logo esse lado espiritual agregado. Nós não queremos essa ligação cristã, católica, ou religiosa sequer, mas queríamos esta ligação espiritual.

E de onde surgiu a ideia do labirinto final, no último plano aéreo? Já agora como escrevem o guião, quem decide o argumento?

TS: Basicamente foi à base de referências visuais. Decidimos a narrativa, um guião muito abstrato e cada um foi, para si próprio, buscar referências visuais do que gostava e associava a cada música. Na maior parte dos casos, estávamos todos na mesma direção, consoante as músicas. E esse foi um exemplo perfeito, porque o conceito de labirinto encaixava na perfeição no que queríamos passar com este álbum. Todos chegámos à conclusão de que estes diferentes capítulos fossem diferentes fases da vida de uma pessoa, diferentes caminhos desse labirinto e de que, no fim, revelássemos o labirinto. Foi de uma maneira óbvia mas, conceptualmente, era para fazer uma união final de todos aqueles capítulos; visualmente, acabámos por perceber que tínhamos de ter um labirinto obrigatoriamente e foi um dos maiores desafios de produção que já tivemos. Estivemos muito tempo à procura de um labirinto realmente dito. Por exemplo, o Shining do Kubrick tem um labirinto em arbusto. Tentámos procurar esse tipo de labirinto, mas depois não conseguimos encontrar nada à escala do que queríamos, pelo menos em Portugal. Em Espanha havia um caso, mas era difícil porque seria preciso fechar o labirinto às excursões. Depois acabámos por perceber que seria muito mais impactante a própria personagem, no fim, escavar o seu próprio labirinto. E visualmente seria impossível, àquela escala humana do labirinto, mostrá-lo da melhor maneira sem ser num plano aéreo. Tem também a ver com o que o Roberto estava a falar ao bocado, de almoçarmos e jantarmos numa mesa da cozinha. Estavam lá várias fotos, uma (de um fotógrafo qualquer) era mesmo de um labirinto visto de cima a uma escala mais pequena, mas sabíamos que queríamos a nossa personagem nua naquele labirinto.

First Breath After Coma - NU - Entrevista
Capa de NU (2019)

Como lidam com a fragilidade uns dos outros nos First Breath After Coma? Em que ser uma banda exacerba ou colmata essa fragilidade?

TS: Nós já nos conhecemos há doze anos, desde que éramos crianças. Infelizmente, até uns para os outros, é nas músicas e pequenas situações que nos vamos conhecendo. Nunca fomos muito de deitar cá para fora, derramar o sangue e tudo o que sentimos. Acabamos por nos conhecer através de outras formas de nos expressarmos, mas sem dúvida que nos conhecemos uns aos outros por causa dessa vivência. Porque a partir do momento em que somos uma banda, porque a partir do momento em que vivemos experiências tão intensas como foram alguns concertos ou algumas tours de mês e meio, partilhar essas coisas faz com que conheças as pessoas de uma maneira que não é assim tão normal conheceres. Tenho amigos meus que conheço aos mesmos anos que conheço estes meus amigos da banda e há partes das personalidades deles que nunca vou conhecer, porque nunca as experienciei. Nunca vou partilhar com amigos meus comuns o estar à saída de um concerto onde estivemos a tocar para milhares de pessoas, foi emocionante, chegamos cá fora, estamos todos arrepiados e adoramos aquele momento. Esta é uma vantagem que partilhamos com a banda. Diz-se que uma viagem é um sítio que nos leva a conhecer as pessoas de forma acelerada e mais profunda e, por isso, a tour ajuda-nos também a conhecermo-nos melhor uns aos outros, porque através de palavras nós nunca fomos muito bons a partilhar coisas. Por isso é que fazemos música. A nossa maior característica como pessoas é sermos tão maus a exprimirmo-nos oralmente, que tivemos de fazer música.

RC: Acho que somos cinco melancólicos, introvertidos em terapia musical.

Como é que os First Breath After Coma se conheceram e começaram a tocar juntos?

RC: Eles começaram com uma banda de covers, malta que estava a dar os primeiros passos e quer fazer barulho. Eram muito novos. Treze, catorze anos, não é?

TS: Tínhamos essa vontade. Um de nós sabia tocar bateria, o outro aprendeu a tocar guitarra, ainda éramos muito novos. Começamos com treze anos, aos catorze foi um ano decisivo porque decidimos “bora lá começar a dar concertos”. Demos três ou quatro concertos e andávamos à procura de vocalista. Andávamos todos na mesma escola, ainda no básico, no terceiro ciclo. Depois conhecemos o Roberto, que, apesar de ser uns anos mais velho, estava direcionado para o mesmo gosto musical e para o que queríamos. E já se passaram 10 ou 12 anos, pelo menos.

RC: É engraçado. A primeira vez em que cantei para pessoas, tirando na primária em que tive de cantar aquela cena das galinhas –  “raspam, raspam, raspam…” –, foi na primeira vez que fui para Paredes de Coura. Com os ares do Paredes de Coura, uma pessoa fica desinibida e eu cantei pela primeira vez à frente de outros. As pessoas disseram-me “eh pá, tu tens jeito!” e eu disse “a sério?”. Depois de vir do Paredes de Coura, lembro-me do exacto momento em que os conheci. Não sei se estavas lá (virando-se para o Telmo), mas sei que estavam lá o Pedrocas e o Rui. Bom, estava a estacionar o carro para as Festas da Reixida, que são no local onde a gente ensaia, abri a porta do carro e julgo que estava a ouvir Arctic Monkeys, The Strokes ou uma cena assim. Eles iam a passar, pararam, e começaram a dizer que curtiam aquela música. Começámos a falar e eles disseram: “Temos uma banda e estamos à procura de vocalista.” Eu vinha ainda de uma semana com aquele “Ah, tens jeito!” no ouvido e disse que podia tentar. Foi a primeira vez que cantei num microfone. Com 19 anos, para eles. Desde então, tenho estado com eles. Depois surgiu o João, mais tarde, a meio do primeiro álbum, em 2013.

DRIFTER | “GOLD MORNING DAYS”

As coisas nunca ficam previsíveis, a certo momento, na dinâmica entre vocês nos First Breath After Coma? Ou o que emerge do outro permanece inesperado?

RC: Eu acho que, no dia-a-dia, a nível de personalidade, nós já sabemos: “Ah, isto é mesmo a Telmo!” Mas, a nível de composição, vai havendo surpresas, porque vamos descobrindo material novo, vamos explorando outros tipos de instrumentos, vamos usando a voz assim, a voz assado. Vamos tentando mudar porque gostamos muito da metamorfose, não gostamos de estar sempre dentro do casulo. No terceiro álbum, o Rui começou a cantar (e eu gosto imenso da maneira como o Rui canta, acho que é geral) e isso surpreendeu-me. Também me surpreende, por exemplo, durante um concerto, quando um deles chega ao microfone e diz qualquer coisa, o que é raríssimo e eu digo “que é isto que está a acontecer?”.

TS: Uma das razões para acontecer tão poucas vezes é porque, quando acontece, ele di-lo publicamente às pessoas que isso nunca acontece. Quando é o meu caso, fico envergonhado. Não faço mais vezes porque já sei que ele vai mandar uma piada.

RC: Mas há sempre surpresas. Um ritmo de bateria, uma guitarra, a maneira como se explorou um determinado efeito.

TS: Até pode não ser tecnicamente ou de instrumento, às vezes pode ser uma surpresa de conteúdo. Nós estamos a crescer como pessoas, passámos pela fase de crianças, adolescentes, um agora está com a namorada, o outro teve a vida toda com namorada e agora de repente está solteirão, depois há um cujo familiar está a passar mal, etc.. Vamos passando por estas fases na vida e trazemos coisas diferentes para a mesa. Acaba-se por se surpreender muito mais em termos de conteúdo, no que queremos dizer. Este álbum foi um exemplo perfeito disso. Surpreendemo-nos uns aos outros mesmo por isso: “Agora queria trazer isto para a mesa. Gostava muito de ter uma música que falasse desta fase da minha vida ou deste tema.” É isso que trazemos porque a nossa maior arma é quem somos, a nossa pessoa. Estou a tocar uma guitarra que foi feita em série numa fábrica e vendida a milhares de pessoas, mas o que eu tenho cá dentro é só meu. O melhor é sermos o mais genuínos possível. Até pode haver muita gente que passou por aquilo que passei numa certa situação, mas tal como eu passei e da maneira como eu vi, só eu.

RC: A cena fixe de tudo isto é estarmos a crescer juntos, tornarmo-nos homens juntos e isso ficar registado.

FIRST BREATH AFTER COMA | “CHANGE” AO VIVO NA ANTENA 3

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