Nos últimos anos, os escândalos de abusos sexuais e pedofilia na igreja católica têm dado azo a grande cinema. Já tivemos documentários provocadores, dramas abstratos da América Latina e até uma vitória da Academia de Hollywood. Em 2016, “O Caso Spotlight” conquistou o Óscar para Melhor Filme, abordando a questão pela via do jornalismo de investigação e focando-se somente no caso de Boston. Este ano, o cineasta francês François Ozon decidiu olhar para a pedofilia na igreja francesa e, pelo caminho, trocou os seus habituais excessos estilísticos por uma contenção formal formidável e um apropriado sentimento de respeitosa solenidade.
Não que o filme seja exangue ou desprovido de emoções em brasa. Ozon tem vindo a fazer carreira com sedutores puzzles de psicoses sexuais e melodramas desconstruídos. Tal experiência tê-lo-á preparado para extrair arrebatamentos sentimentais até do mais sério dos temas. Mesmo assim, conhecendo o historial do cineasta, era difícil prever o tipo de docudrama magistral que ele havia de formular aqui. O filme começou até por ser um documentário, mas, quando Ozon conduzia as entrevistas de investigação, decidiu dramatizar os relatos. O resultado merece aplausos.
Ao invés de se focar em forças jornalísticas, como “O Caso Spotlight”, ou nos clérigos criminosos, como “O Clube” de Pablo Larraín, este “Graças a Deus” de Ozon é um retrato coletivo de sobreviventes traumatizados. As vítimas são postas no centro do engenho textual e é através de uma estrutura tripartida que Ozon engenha o filme. Primeiro, temos Alexandre Guérin, o homem cujas perguntas complicadas desencadeiam uma avalanche de polémica a cair sobre a instituição católica. Não que este homem se veja a si mesmo como um inimigo do Vaticano. Muito pelo contrário, não obstante o que sofreu na meninice, Alexandre é um homem devoto e pio.
Aliás, é na igreja que ele vai primeiro procurar respostas às suas perguntas e conclusões para a sua complicada história pessoal. As primeiras cenas deste épico do trauma e da dor retratam essa mesma busca, mostrando-nos como Alexandre recorre a terapeutas da igreja e segue os seus conselhos para ultrapassar aquilo que lhe pesa na alma. O problema vem quando as palavras meigas da igreja se revelam ocas e até venenosas. O perdão da vítima para com o agressor é priorizado e Alexandre observa, atónito e chocado, como lhe é pedido que aceite as desculpas do padre que o abusou e siga em frente. O padre, pelo seu lado, não sofre uma única consequência e até continua a trabalhar com crianças.
A história de Alexandre é a história de um crente a confrontar a monstruosidade da igreja pela qual ele orienta a sua vida espiritual. Em contraste, a história de François Debord é o conto de um homem que corta relações com a igreja e faz do seu trauma nascer a militância. Ele organiza os sobreviventes dos abusos e faz-se guerreiro contra o encobrimento sistemático dos padres e seus superiores. Quando “Graças a Deus” coloca François no centro da narrativa, o filme como que se transfigura. De um drama espiritual onde a dúvida tudo domina, passamos a algo mais próximo de um lacerante objeto de ativismo cinematográfico com ares de Robin Campillo.
Ozon bem sabe que a chave para o triunfo deste tipo de filme é o equilíbrio entre forma e texto informativo, entre o horror expositivo da história e a capacidade do elenco para modular o material. Por isso mesmo, algumas cenas são como que entregues de bandeja aos atores e o realizador subsume o estilo e concentra os seus esforços em capturar as dinâmicas espaciais e pessoais de salas cheias de gente a discutir. Como é evidente, há primor e há mérito em tal contenção estilística e em nada isso indica uma displicência formal. Basta vermos como Ozon filma o seu terceiro protagonista para entender quanto a sua inventividade estética não foi erroneamente sufocada pelo peso das suas nobres intenções. Aí, as composições ganham nova complexidade, capturando mais atentamente o corpo e o movimento de um indivíduo cujo corpo ainda treme com as reverberações de dores antigas.
Alexandre e François foram irreparavelmente marcados pelo trauma de infância, mas Emmanuel Thomasin foi completamente destroçado. Quando era menino, ele já era frágil e predisposto a ter violentos ataques epiléticos. O padre que também abusou os dois homens usou essa mesma fragilidade para melhor manipular o menino doente, isolando-o e até lhe deixando marcas que viriam a desenvolver-se em graves disfunções físicas e sexuais. A dúvida, a raiva e o desespero. Estas são três faces distintas, mas não incompatíveis, do trauma e Ozon deixa que os seus protagonistas as personifiquem e compliquem. Há permutações feias nos comportamentos destes homens, por muito que a sua psique fraturada seja fruto da obra de outrem.
O realizador jamais vira as costas a essas facetas mais abrasivas da proposta narrativa e usa um vasto elenco secundário para refletir a interioridade dos seus heróis e a desafiar também. “Graças a Deus”, apesar da sua duração e ambição, não é a obra de um artista arrogante o suficiente para se supor na autoridade de dar resposta às questões que o trauma e sua sistemática ignorância levantam. Ozon observa e deixa-nos observar, dramatiza e ilumina, mas não pinta sensacionalismos sobre a crua realidade. No fim, pode não parecer um filme de François Ozon, mas é uma obra de dolorosa majestade e complexidade. Este pode ser um filme atípico do realizador, mas torna-se instantaneamente numa das mais essenciais joias da sua filmografia.
“Graças a Deus” dói e galvaniza. Este drama sobre os abusos sexuais na igreja católica é o tipo de filme que todos deviam ver, mas o tipo de filme que não recomendamos a ninguém que não se queira perder em espirais de angústia e raiva impotente.
O MELHOR: O trabalho de todo o elenco.
O PIOR: A segunda secção deste drama tripartido é vagamente traída pela inexperiência de Ozon com este tipo de estudo de personagem coletiva. É fácil imaginar outros realizadores a filmarem o mesmo material com mais segurança e capacidade inovadora.
Licenciado em Teatro, ramo Design de Cena, pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Ocasional figurinista, apaixonado por escrita e desenho. Um cinéfilo devoto que participou no Young Critics Workshop do Festival de Cinema de Gante em 2016. Já teve textos publicados também no blogue da FILMIN e na publicação belga Photogénie.