Hanami, a Crítica | Denise Fernandes sai vitoriosa do IndieLisboa
Denise Fernandes ganhou a Competição Nacional de longas-metragens do 22º IndieLisboa com “Hanami,” um díptico cabo-verdiano passado na Ilha do Fogo.
Seria justo dizer que “Hanami,” aclamado em Locarno, Chicago e no IndieLisboa, compõe-se por dois filmes. Quebrado por fases na vida de uma jovem cabo-verdiana, a primeira longa-metragem de Denise Fernandes distingue um par de capítulos cuja abordagem cinematográfica parece discordar uma da outra. Ou conversar entre si. No entanto, a fita começa com uma terceira parte, um prólogo onde se puxa pela poesia, com imagens simbólicas e lirismos estéticos, uma narração que assombra e um sentido de perda que reverbera pela história seguinte. “Hanami” é o retrato díptico de Nana, uma menina que a mãe deixou na Ilha do Fogo, aos cuidados de tios e avós, enquanto a progenitora foi fazer vida lá fora.
Como o espectador acaba por descobrir, este é um fado comum a muita juventude nessa comunidade. Só que, no prelúdio de tudo, Fernandes apresenta o conto da mãe quase como memória da terra, uma canção folclórica partilhada de geração em geração. Quando algumas das suas imagéticas ecoam na vida de Nana, sentimos o fantasma deste abandono maternal em verdadeira assombração. Sentimos a História pessoal do indivíduo como uma História antiga do coletivo. Nana é todas as filhas deixadas para trás e sua mãe é todas as mulheres que deixaram a família no meio do Atlântico em busca de algo melhor.
Histórias de emigração e quem fica para trás.
Pontuado por uma sessão fotográfica que serve de despedida, o primeiro salvo de “Hanami” sugere um misto estranho entre realismo e teatralidade, com tableaux trabalhados e uma insistência na musicalidade da montagem. Corta para a meninice de Nana e os preceitos cinematográficos alteram-se subtilmente, reforçando aquela impressão de estarmos a ver múltiplas curtas suturadas em forma de longa. A naturalidade das prestações deu lugar a um minimalismo desafetado, quase brusco, com planos médios de enquadramento à la Ozu para dar a impressão de frontalidade dramática. Trata-se de um cinema muito direto no precipício de algo mais rebuscado.
“Hanami” cai na ravina e afunda-se na loucura cinematográfica depois de apelos à magia da terra e suas tradições orais. A história de uma sereia desenha uma continuidade entre o fado da rapariga e a gente antiga do mito e da lenda, enquanto uma maladia misteriosa a leva a descobrir os confins da Ilha do Fogo. Essa viagem abre as portas ao realismo mágico, transmutando o filme pelo caminho. A curiosa contemplação de domesticidades e flores de tecido com orvalho plastificado dá lugar a paisagens vastas e uma cabana xamânica que parece mover-se por si só. Busca-se o sabão-de-feiticeira como panaceia da saudade e toda a aventura o vulcão testemunha.
Ancorado por uma notável prestação juvenil, este capítulo de “Hanami” recorda o “Ixcanul” de Jayro Bustamante e o “Stromboli” de Rossellini na beleza conferida ao marco geográfico. Certas passagens são verdadeiras rapsódias visuais, perdendo-se na majestade da lava solidificada e as arquiteturas naturais assim erguidas nas largas extensões de areia preta e pontos verdejantes. A ilha é todo um organismo e o vulcão é o coração pulsante. Nessa metáfora, Nana é, quiçá, a sua alma. É pena, portanto, que o filme se perca nas possibilidades da magia e negligencie a protagonista.
Acima dela fica uma comunidade de crianças monádicas, um contador de histórias chamado Orlando, o misticismo que ele traz e os relatos de um vulcanologista japonês que dá pelo nome de Kenji Mizoguchi e consegue transcender as barreiras linguísticas com a população local. Tudo culmina num fogo de artifício sobre o céu azul da Ilha do Fogo e, sem nos apercebermos, perdemos Nana no fluxo de ideias. Ela tornou-se objeto, mero adereço numa mise-en-scène em crescente desconexão da sua putativa protagonista. Mas, nesse ponto extremado em que “Hanami” enlouquece, a estratégia audiovisual de Fernandes cresce também.
Faz-se cinema poético na Ilha do Fogo.
Ou talvez diminua. Da expansiva experimentação que se sentiu quando a pequena Nana foi peregrina em busca de remédio mágico, a fita retrai-se num realismo mais desambiguado e concreto. Noutros contextos, diríamos que “Hanami” perde fulgor criativo, mas, ao mesmo tempo, é difícil negar quão mais frutífera esta abordagem é quando comparada com o que veio antes. Porque, na sua segunda metade, Nana volta a ser personagem e sua relação com a ilha ganha uma dimensão além da esfera pessoal. No seu conflito, pressentimos uma noção política e social, um ultraje sem moralismos e um lamento sem soluções.
Tudo isso devém ao regresso materno, mesmo que temporário, e o sabor agridoce que fica na língua da audiência e sua heroína perante um verão passado com a família completa. Este sonho estival é necessariamente efémero, acentuando a perda e o abandono na mesma medida em que confirma uma interpretação de Nana enquanto sinédoque de Cabo Verde e seus filhos, inicialmente alienada de si mesma até chegar à autonomia serena do plano final. O tom é delicado, mas a construção cénica fica mais precisa que nunca, quase severa, com os talentos de Fernandes e da diretora de fotografia Alana Mejía González bem salientes.
Numa cena de refeição prolongada, as barreiras óticas entre mãe e filha dizem-nos mais que mil palavras. Mais tarde, quando Nana observa a avó nas margens da ação, sozinha e pelos demais ignorada, outro surgimento de sentido e sentimento tem lugar. O mesmo se diz do rito do cabelo entrançado e outros tantos momentos. Sim, “Hanami” não tem falta de instantes sublimes nesta segunda metade sem que, apesar disso, a totalidade da obra alcance a coesão – ora estética, concetual ou narrativa. O texto escrito em colaboração com Telmo Churro será o grande problema, deixando a jovem demasiado abstrata, uma colagem de signos que muito dizem sobre Cabo Verde e a Ilha do Fogo. Mas, apesar de se centrar nela, a história de “Hanami” nunca parece pertencer a Nana e é mais pobre por isso.
“Hanami” tem estreia comercial nos cinemas portugueses a 15 de maio, com distribuição assegurada pela Desforra Apache.
Hanami, a Crítica
Movie title: Hanami
Country: Portugal, Cabo Verde
Duration: 96 min.
Director(s): Denise Fernandes
Actor(s): Sanaya Andrade, Daílma Mendes, Alice da Luz, Nha Nha Rodrigues, Yuta Nakatano
Genre: Drama, Fantasia, 2024
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Cláudio Alves - 70
CONCLUSÃO:
Na sua primeira longa-metragem, Denise Fernandes demonstra uma riqueza de ideias que ainda não se consolidaram num cinema coeso e eficaz. Mesmo assim, “Hanami” é uma estreia muito promissora, recordando a beleza que Pedro Costa viu na Ilha do Fogo na “Casa de Lava” sem o olhar distanciador desse trabalho. O maior problema está na conceção e concretização da protagonista, uma jovem cujo valor simbólico muitas vezes parece exceder a sua humanidade enquanto elemento cénico neste drama de imigração e aqueles que ficaram para trás. Por muito que os devaneios em realismo mágico deem variedade à obra, o realismo da segunda metade sente-se mais seguro, quão severo como momentaneamente eufórico.
O MELHOR: A poesia de perda no prólogo, a beleza paisagística do primeiro movimento, e a intimidade complicada entre mãe e filha no segundo.
O PIOR: Quão abstrata Nana durante a maioria de “Hanami.” Também diríamos que a estrutura em capítulos estilisticamente díspares prejudica mais o filme do que o ajuda.
CA