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LEFFEST ’18 | High Life, em análise

High Life” leva Robert Pattinson e Juliette Binoche ao espaço na companhia de um bebé e da imaginação perversa e genial de Claire Denis. Este é um dos filmes que integram a secção não competitiva do Lisbon & Sintra Film Festival deste ano.

Algures no espaço sideral, uma nave viaja pela imensidão de vazio. Qual monumento-caixão, o seu interior guarda os corpos de uma tripulação há muito perdida, mas conservada em túmulos de plástico e tubagem industrial. Ainda existe vida a bordo, contudo, na forma de um pai e sua filha, Monte e a pequena Willow. Por entre corredores escuros e jardins desordenados, ele ensina-a a andar, alimenta-a e dedica toda a sua existência à bebé, única companheira viva que ele tem e eterna violadora da solidão em que Monte se parece querer confortar. Num dia, talvez o mesmo em que ele deita fora os cadáveres dos antigos companheiros e os deixa a flutuar no vácuo, Monte fala a Willow de tabus. Segundo o pai pedagogo, beber o mijo e comer a merda de nós mesmos é um tabu, mesmo quando tais detritos foram reciclados e já em nada se assemelham à forma original.

‘Tabu’ e ‘reciclagem’ são conceitos chave para se entender o buraco negro de ideias que Claire Denis edificou para este seu primeiro filme em inglês. Ou talvez seja só um guia que nos permite dar três passadas seguras para dentro de um labirinto antes de nos perdermos novamente. Tais incógnitas são uma constante neste estudo de solidão no espaço, onde o que é desconhecido das personagens é ainda mais inescrutável para o espectador que, se vier à espera de um filme fácil ou uma emocionante aventura de ficção-científica, mais vale nem sequer entrar na sala de cinema. Para muitos, um filme como “Blade Runner 2049” representa o máximo exponencial de um cinema de ficção-científica apoiada em ideias e conceitos complexos, em metáfora e em símbolo. Comparado com “High Life”, o filme de Denis Villeneuve parece uma fábula de Esopo contada a um público pré-escolar.

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Será que o filme é demasiado denso e complicado para o seu próprio bem?

Começando com o conceito de reciclagem, entenda-se que as origens da tripulação desta misteriosa nave espacial a definem como uma coleção de seres humanos reciclados. Conhecemo-los no passado da missão, antes do nascimento de Willow, e entendemos que todos eles são criminosos condenados a quem foi dada uma oportunidade para participar numa missão potencialmente suicida. Presidiários reciclados como heróis espaciais, ou cobaias condenadas à morte, por entidades superiores que consideram as suas vidas descartáveis. Até o sete presente nos seus uniformes e a adornar o exterior da nave marca-os como somente mais um número numa série de tripulações, todas elas destinadas ao martírio em nome do progresso num futuro cruel.

Talvez a mais cruel de todas as entidades em frente â câmara seja a Dr. Dibs, uma prototípica cientista louca que vê em si o potencial para a criação de vida, para a divindade no microcosmo da nave isolada. Com os seus cabelos longos e natureza obsessiva, ela parece quase uma bruxa, um xamã do esperma como Monte a caracteriza, que recolhe os fluidos da tripulação, tentando criar novos humanos perfeitos e usar as mulheres na nave como as incubadoras das suas experiências. Somente Monte, no seu celibato proto monástico, se recusa a fornecer matéria-prima à cientista que noutra vida terá cometido crimes bem além da imaginação dos outros tripulantes. É claro que neste mundo de “High Life”, a santidade da autonomia física é só mais um valor a ser dilacerado.

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Não há copulação neste filme, mas há fisicalidade que transcende a reciclagem de fluidos e organismos da Dr. Dibs. O máximo que temos é uma violação em que um dos parceiros é mais objeto que participante humano e, é claro, a ‘fuckbox’ onde os tripulantes se masturbam e assim encontram uma distração que lhes permite continuar a viver. Não há sexo tradicional ou erotismo titilante, mas este é um filme de sexualidade, cheio de fluidos e necessidades fisiológicas, de gratificação genital e essa câmara de prazer onde as imagéticas de Jonathan Glazzer e Walerian Borowczyk comungam com o corpo em êxtase de Juliette Binoche. Não, este não é um mero filme sobre sexo, mas tem um plano visto do interior de uma vagina a ser penetrada com um dildo metálico.

É precisamente neste miasma fisiológico que a ideia de reciclagem se combina com a ideia de tabu. Afinal, que é uma fórmula cinematográfica infinitamente repetida senão um exemplo de reciclagem artística? E que é a quebra de convenção senão um tabu? A fisicalidade visceral que Denis traz ao espaço é em si um tabu, tratando-se a ficção-científica de um género onde a mente é infinitamente privilegiada em relação ao corpo. Quando entramos no patamar de obras de autor cheias de densidade concetual como este, então o privilégio do intelecto divorciado do corpo é supremo, a não ser que estejamos a participar num exercício de body horror. Denis viola tais tabus, mostrando-nos personagens que urinam, que comem e suam, que se masturbam e sangram, que sofrem, cujos seios lactam, cujos corpos não conseguem aguentar as manipulações dimensionais do espaço e se rasgam em agonizante carnificina.

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Um filme sobre sexualidade e sobre o corpo, mas não sobre sexo.

Apesar disso, não é só em temas e conceitos do corpo que Denis viola os tabus e quebra os ciclos de reciclagem. Toda a construção formal do filme assume-se como um desafio direto às expetativas do espectador, desde a cenografia degradada e isenta de superfícies futuristicamente imaculadas, até à excisão de efeitos especiais para sugerir a ausência de forças gravitacionais. O que temos é uma depuração formal, uma proposta seca e dura de um futuro que não nos quer deslumbrar de modo algum. Até a integridade estética do filme é posta em causa e complicada, quando Denis inclui devaneios oníricos que violentam o tecido do filme, explodindo em memórias que parecem ter sido filmadas por Tarkovsky. Ou quando imagens da Terra, se manifestam como sonhos mal lembrados de um planeta que talvez já nem exista, mas que Monte tenta ensinar a Willow.

Enfim, “High Life” é confuso, mas talvez ainda mais intenso que esse sentimento, é a tristeza avassaladora que acompanha a sua odisseia espacial. Este é um estudo sobre aqueles que estão radicalmente sozinhos no mundo e acaba por se transmutar em algo maior e mais complicado, um grito gutural de reprodução em harmonia com um poema épico sobre o mergulho da Humanidade no ominoso desconhecido. Nas palavras da realizadora, é também um filme sobre ternura no espaço, sobre fidelidade, sinceridade e confiança. É um retrato do laço que une o pai e uma filha, o afeto e o amor que sobrevivem e perduram mesmo por entre a brutalidade de que o ser humano é capaz. “High Life” é tudo isso e muito mais. Pode ser difícil encarar os seus mistérios, mas há glória cinematográfica à espera dos espectadores que aguentarem e foram generosos o suficiente. No final, a Terra está longe, talvez não exista, talvez tudo tenha morrido. No fim, só existe um pai, uma filha, e uma linha amarela. O infinito, o desconhecido abre seus braços negros e abraça-nos no reconforto do seu horror e da sua maravilha. Deixemo-nos ser abraçados.

High Life, em análise
High Life

Movie title: High Life

Date published: 18 de November de 2018

Director(s): Claire Denis

Actor(s): Robert Pattinson, Juliette Binoche, Mia Goth, André Benjamin, Lars Eidinger, Agata Buzek, Claire Tran, Ewan Mitchell, Gloria Obianyo, Scarlett Lindsey, Jessie Ross, Victor Banerjee, Juliette Picollot

Genre: Ficção-Científica, Drama, Terror, 2018, 110 min

  • Cláudio Alves - 88
88

CONCLUSÃO

“High Life” é um filme de Claire Denis no espaço. Para quem é familiar com a oeuvre desta vanguardista mestra da sétima arte, tal descrição é mais do que suficiente.

O MELHOR: A linha amarela.

O PIOR: Cedências que Denis faz à necessidade de claridade informativa. Uma entrevista num comboio e o uso de narração em voz-off são passos em falso de particular notoriedade.

CA

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  1. Lucas 20 de Fevereiro de 2020

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