"Girls/Museum" | © IndieLisboa

IndieLisboa ’21 | Girls/Museum, em análise

Na sua mais recente experiência cinematográfica, a realizadora Shelly Silver levou uma série de raparigas a um museu alemão. “Girls/Museum”, que explora o cânone artístico através dos olhos da mocidade feminina, integra a secção Silvestre do IndieLisboa 2021.

Dezasseis jovens, com idades entre os sete e os dezanove anos, embarcam numa viagem pelo mundo da Arte, seus códigos, histórias, o espelho que levanta para as sociedades que o produz. De pintura em pintura, escultura e depois fotografia, a realizadora Shelly Silver acompanha este grupo pelo Museum der bildenden Künste Leipzig, seguindo cronologias e movimentos artísticos ao longo do tempo. Cada rapariga age como nosso guia, apresentando e comentando as obras. Muitas vezes, só sabemos o título, ano, e autor dos objetos artísticos depois de estes serem dissecados por elas. Em suma, Silver tenta fazer com que o espetador aprenda, ou pelo menos compreenda, como estas jovens encaram as galerias de Arte e o que nelas veem. Acima de tudo, é um exercício sobre o ato de ver o mundo.

A forma do engenho é bem simples, sendo que a realizadora jamais se perde por invenções formalistas. Ora frontal ou ligeiramente na diagonal, a lente captura as suas protagonistas à medida que elas falam diretamente para nós. Ocasionalmente, lá temos um grande plano da tela, por vezes um detalhe fragmentado de modo a dirigir a atenção para o pormenor em discussão. Só uma vez a câmara sai do registo estático, quando tenta acompanhar o movimento repentino de uma rapariga que abandona um quadro para apontar outra obra que prefere. É um belíssimo travo de espontaneidade juvenil num trabalho quase academista.

girls museum critica indielisboa
© IndieLisboa

Nessa medida, “Girls/Museum” é um filme muito simples. No entanto, desengane-se quem assume que as ideias que Silver esmiúça tão simples como suas escolhas audiovisuais. Da modéstia forma floresce uma tapeçaria de observações vitais, mentes jovens que aprendem e ensinam a ver, que reagem, pela primeira vez, às injustiças institucionais que muitos já aceitaram sem pensar. Como a própria realizadora esclarece, todos nascemos num mundo que já foi construído por outrem. Não escolhemos a História que nos define nem a sociedade ou o contexto cultural, de que fazemos parte. Sempre foi assim, nós assumimos.

Porque nascemos desta forma, aprendemos a aceitar o status quo como algo imutável e constante, impossível de questionar. Contudo, houve um momento em que aprendemos o estado das coisas. De modo semelhante, há também aquele instante em que, pela primeira vez, somos questionados sobre esse estado. “Girls/Museum” retrata a simultaneidade dos dois gestos e enquadra-os nesse palácio da História preservada e do contexto cultural – o museu. São instituições da lembrança, mas também monumentos da seletiva construção da cultura comum.

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Quando se põe um objeto no museu, por muito banal que a peça seja, torna-se ora Arte ou um artefacto histórico. Tomamos por garantida uma inefável objetividade na curadoria, uma imaculada decisão que contorna preconceitos em prol da educação. Só que o museu é obra humana e todo o humano erra. Aprender essa falibilidade é importante, pois ajuda-nos a questionar a ordem regente, a imaginar um mundo melhor. Neste paradigma cinematográfico, essa imaginação vem com o desgosto meio indignado de uma menina que se inquire acerca da ausência de arte feita por mulheres. É quiçá uma pergunta por detrás das câmaras que provocou isso, quiçá a descoberta de uma das poucas pinturas assinadas no feminino.

Outra rapariga, uma jovem de origem Síria refugiada na Alemanha, compõe um raciocínio improvisado sobre a relação entre fortuna e imortalidade pintada. Perante uma infinidade de retratos aristocráticos e composições mitológicas, ela pondera como seriam as pessoas mais pobres desses tempos passados. Apesar das suas conjeturas históricas trespassarem inocência e muita imaturidade, também revelam uma crescente perceção das desigualdades que vivem dentro e fora do museu. Por que é que o mundo é definido tão exclusivamente pelos endinheirados? Por que razão são as suas caras celebradas para eternidade enquanto os mais humildes são esquecidos?

girls museum critica indielisboa
© IndieLisboa

Nem tudo é tão focado na economia ou na questão da autoria. Vejamos, por exemplo, como algumas das nossas guias amadoras tentam explicar a nudez feminina que as rodeia. Algumas mostram-se desconfortáveis com a objetificação. Elas tentam verbalizar como muitos quadros celebram o nu erotizado da mulher jovem, mas jamais tratam a figura masculina da mesma maneira, jamais representam o corpo envelhecido com semelhante paixão. Desse modo, os códigos de género que regem muita da Arte são postas a nu, especialmente quando Silver pede a cada rapariga para ponderar, não só o artista, mas também a pessoa responsável por escolher que obras merecem a atenção do público.

Atente-se que as palavras destas estudantes também não são nenhuma joia de progresso perfeitamente formulado. Deteta-se um travo de puritanismo quando se observa o trabalho de uma fotógrafa que expõe o corpo nu na sua própria arte, por exemplo. Não há respostas universais, nem neste congresso de raparigas nem em lado nenhum, e o dogma é um fracasso da criatividade. Aí está o grande valor deste “Girls/Museum”, pois jamais chega a conclusões definitivas. Serve mais como ponto de partida para a discussão do que como argumento fechado – algo que será qualidade para uns, problema para outros. Na nossa perspetiva, isso é uma das grandes mais-valias deste documentário, um filme cheio de ironia risonha que faz pensar sem ser didático. Um filme que celebra a perspetiva da menina e da adolescente, que usa os adultos do futuro para falar sobre o nosso passado coletivo.

Girls/Museum, em análise
girls museum critica indielisboa

Movie title: Girls/Museum

Date published: 31 de August de 2021

Director(s): Shelly Silver

Genre: Documentário, 2020, 71 min

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO:

Um filme-tese com grande rigidez formal, “Girls/Museum” celebra o ponto-de-vista da mulher jovem, da adolescente e da menina. Percorrendo um museu alemão ao lado de gerações mais novas, a cineasta Shelly Silver explora as disparidades de género ao nível da cultura e questiona a santidade do museu.

O MELHOR: A premissa basilar do projeto e o momento em que a obra mais questiona a aptidão dos curadores, suas responsabilidades, seus privilégios. É uma perspetiva raramente examinada, mesmo quando se discute a legitimidade do museu enquanto instituição cultural.

O PIOR: A arquitetura do museu em si é muito pouco explorada pela câmara. Só passagens de introdução e despedida usam esse elemento visual. No entanto, mesmo aí, é mais ornamento que parte essencial da tese cinematográfica. A nosso ver, parece uma oportunidade perdida.

CA

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