"Holgut" | © IndieLisboa

IndieLisboa ’21 | Holgut, em análise

Entre o mito e a missão arqueológica, “Holgut” de Lisbeth De Ceulaer é uma das obras mais enigmáticas na secção Silvestre do IndieLisboa 2021.

A escassez, o impiedoso passar do tempo, faz do que é comum algo mitológico. As renas selvagens que outrora viviam na tundra siberiana, nobres reis da paisagem natural, foram-se perdendo à medida que as gerações nascem e acabam. Os animais que outrora caminharam ao lado de humanos já não são mais que uma memória, mas alguns indivíduos ainda os procuram. Eles são motivados pelo interesse mercenário ou curiosidade científica, quiçá por um desejo de combater a crise existencial que desabrocha da morte de uma espécie. Não interessa a razão, mas sim a ação.

São eles esses aventurosos homens que exploram o gelo degelado do extremo norte na busca pelos animais de outros tempos. Em certa medida, a própria cineasta é também ela um dos exploradores. A realizadora belga Lisbeth De Ceulaer tem vindo a desenvolver um cinema que incide sobre a dinâmica entre a Humanidade e mundo Natural que lhe é lar. Nesse paradigma audiovisual, os filmes da autora também se interessam por outra relação precária, tão simbiótica como mutuamente corrosiva, transformadora. Trata-se da dança periclitante entre cinema narrativo e a não-ficção.

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Nos filmes da autora, a barreira precária entre os dois modos de fazer filmes é uma membrana porosa, tão fina ao ponto de ser imaterial. Localizado na região de Yakutia ou Sakha, na Rússia, “Holgut” mistura o documental e a ficção, reconfigura os dois impulsos em volta de uma abordagem que se perde entre a poesia e a lenda. Nesta fita, dois irmãos, Roman e Kyym, perscrutam a tundra em busca das renas ancestrais. Ao mesmo tempo, um cientista chamado Semyon debruça-se sobre a sua própria odisseia glacial. Ao invés de tentar encontrar indícios da presente vida de uma espécie presumida extinta, ele orienta os seus esforços em torno de uma ideia de ressurreição.

Pesquisando o pergelissolo, ou permafrost, esse homem da ciência quer localizar as células de um mamute. Qual personagem do “Parque Jurássico”, Semyon pretende usar o material genético para clonar o animal, trazendo a besta da pré-História para a nossa contemporaneidade. Não que “Holgut” alguma vez tente ser ficção-científica. De Ceulear está mais interessada no que passou do naquilo que pode um dia vir a ser. Pelo seu filme encontramos uma verdade tão universal quanto devastadora. No grande esquema do cosmos, até mesmo no panorama terrestre, a vida humana é um abrir e fechar de olhos.

Nós definimos medidas de temporais com base no breve instante em que vivemos. Em simultâneo, o impacto humano neste mundo tende a acelerar processos outrora longuíssimos. A Terra aquece e a culpa é nossa, o degelo é veloz, a paisagem muda e nós agarramo-nos àquilo que se perdeu com um desespero monstruoso, quase demoníaco. Essa calamidade de sentimento é como uma corrente subterrânea que define os tons de “Holgut”, seus ritmos e atmosfera. De Ceulear quer refletir sobre estas ideias e convida-nos a participar no jogo meditativo, caindo num transe sussurrado e frio, puxando o espetador com ela.

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Há valor nessa experiência, mas também há um teor de frustração. Sentimos que “Holgut” jamais chega a qualquer conclusão, preferindo atirar ideias ao ar e fermentá-las numa cratera cheia de águas termais que fumegam por entre o cenário esquálido da tundra. O entrelaçar das duas vertentes docudramáticas produz muitas possibilidades narrativas, mas a cineasta jamais as resolve numa tese central. Por isso mesmo, o que mais brilha neste “Holgut” são os elementos formais, o feitiço audiovisual que a artista belga conjura sobre o ecrã iluminada e o espetador extasiado.

A fotografia de Jonathan Wannyn tende a encontrar o porte mítico da tundra, suas possibilidades fantasiosas. Vista de cima, esta terra quase parece uma planície abstrata, com fios de gelo transfigurados nos cabelos de algum titã gigantesco. O uso perspicaz de fundos desfocados ajuda a separar a magnificência siberiana da pequenez humana, salientando a simbiose dos dois elementos ao mesmo tempo que ilustra o antagonismo histórico patente na relação. Roman e Kyym veem suas vidas definidas pela tundra, mas, quando a exploram, eles são forasteiros em terras familiares, reinos agrestes que não lhes pertencem. Maravilhas espaciais que, de facto, não podem nunca pertencer a alguém. Isto é a terra de ninguém no seu sentido mais cósmico.

A odisseia sempre rumo a Norte, um ponto imaginário e sonhado, tão irreal com concreto, jamais cessa. Com o movimento dos exploradores também os cineastas aumentam o engenho estilístico. O som vai sendo cada vez mais agressivo para manter passo com a fotografia, pintando uma pátina de alienação sónica sobre a imagética. Movendo-se na direção do fim do mundo, também a qualidade plástica da fita parece precipitar-se para alguma região mais operática do documentário. E assim chegamos àquele que poderá ser o ponto final ideológico do filme. Com trabalhos como “Holgut”, o ser humano consegue contrariar a impiedosa mortandade do tempo.

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A Arte dá-nos oportunidade de deixar uma marca e o cinema, especificamente, permite a cristalização da memória em imagem projetada. O mito faz da memória esquecida uma narrativa que atravessa gerações, dando imortalidade ao contador de histórias. O cinema faz um pouco do mesmo, mas não é só para a pessoa em frente ou atrás da câmara. Também o faz para a paisagem, preservando um momento fugaz numa cronologia de mudanças constantes. A tundra vai continuar a aquecer, a derreter, mas “Holgut” dá eternidade a esta visão ainda coberta com algum gelo. Esta planície fria que ainda esconde alguns segredos enterrados no solo.

Holgut, em análise
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Movie title: Holgut

Date published: 26 de August de 2021

Director(s): Lisbeth De Ceulaer

Actor(s): Semyon Grigoriev, Kyym Skrybykin, Roman Skrybykin

Genre: Documentário, 2021, 73 min

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO:

“Holgut” explora a tundra e explora também o limiar entre a ficção e o documentário. Trata-se de um sonho, quiçá um pesadelo, sobre temas de um mundo em constante mudança e os homens que lutam contra a obsolescência, contra a mortalidade humana e animal.

O MELHOR: A fotografia fantasmagórica de Jonathan Wannyn e a sonoplastia de Gert Verboven.

O PIOR: A inconclusividade frustrante do exercício. Além disso, questionamos o uso de um prólogo academista e os constantes sussurros de uma narração em voz-off.

CA

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