"Paraíso" | © IndieLisboa

IndieLisboa ’21 | Paraíso, em análise

“Paraíso”, o mais recente documentário do realizador Sérgio Tréfaut, foi a obra selecionada para encerrar o IndieLisboa 2021. Assim a 18ª edição termina com uma nota melancólica e muito musical.

Quando o Rio de Janeiro era a capital federal do Brasil, o Palácio do Catete era casa para o Presidente da República. Agora, essa sede política de outros tempos converteu-se em museu. Seus jardins privados viraram parque público e, em certos dias, viram palco para a cantoria. É esse o local onde se encontram os idosos da Seresta, esses anciãos que recordam a música antiga e a celebram cantando, tocando, dançando e amando o som. “Paraíso” é sobre os seresteiros, suas tardes e noites passadas em comunhão musical. Contudo, o projeto começou com um intuito bem diferente.

Há muitos anos que o cineasta luso-franco-brasileiro Sérgio Tréfaut tem feito carreira em Portugal. De facto, já ganhou por três vezes o IndieLisboa, sagrando-se campeão máximo do festival lisboeta e um dos maiores nomes no nosso cinema nacional. “Paraíso” marca assim um retorno importante às terras do outro lado do Atlântico, a outra pátria do autor, seu berço e fonte de muita inspiração. Depois da ficção alentejana de “Raiva”, esse western português com traços pós-Fordianos, Tréfaut também marca regresso ao paradigma do documentário.

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“Paraíso”, que não se chamava assim no início, é assim um filme de regressos que, sem saber, se tornou num cinema de despedidas. O título original era “Triste Brasil” e pretendia retratar o quotidiano carioca durante as horas crepusculares, quando o dia se torna noite e os céus esvaem-se de azul em ouro em veludo escuro pontilhado por estrelas. As filmagens começaram no início de 2019 e estavam abertas as portas à metamorfose do projeto, um filme predisposto a mutar-se em torno do material recolhido. Foi assim que a câmara ganhou afeto aos seresteiros e deixou que estes suplantassem quaisquer outras vertentes da fita.

Dito isso, foi no retorno final ao Rio de Janeiro que Tréfaut se apercebeu da forma derradeira do filme. Em inícios de 2020, a rodagem retomou, sendo rapidamente interrompida pela pandemia do COVID-19. Daí se partiu para a montagem, período que viu muitos dos protagonistas morrer, idosos que sucumbiram a esta praga do século XXI. Se “Paraíso” começou por ser uma canção de amor a um triste Brasil, a mortandade dos tempos que correm converteu-o num requiem. Trata-se do elogio fúnebre que recorda o jubilar de dias passados e cristaliza a felicidade para que esta jamais seja esquecida.

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Não que o peso da mortandade se faça notar em demasia e sobrecarregue o filme de desnecessários fatalismos. Se sentimos a sombra do derradeiro adeus é porque a obra tão bem ilustra aqueles que lhe resistem. Corpos magoados e envelhecidos ainda querem ser vivaços, corações com muitos anos ainda procuram amor e gargantas enrugadas também querem produzir música celestial. O melhor é que estes aficionados da tradição musical brasileira alcançam o sucesso nestas suas missões de resistência silenciosa. Vemos quanto lhes custa, mas o sorriso suplanta sempre o esgar dessas dores do corpo e da mente.

Talvez pela objetiva de Tréfaut registar o vislumbre dessas cruzes que todos carregam, também o filme consegue justificar a simplicidade amorfa com que retrata os seresteiros. O tom do documentário é sempre observacional e a montagem faz pouco para induzir um discurso formalista, qualquer ideia subjacente à relação de imagens específicas. Se existe justaposição ideológica, algum conflito concetual, este manifesta-se nas pessoas filmadas e não tanto no seu enquadramento, na estruturação cinematográfica das suas vidas corriqueiras.

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Sente-se uma tentativa de esmiuçar a espetacularidade do banal e do mundano, mas pouco mais que isso. Gradualmente, lá vão surgindo caras repetidas e um maior destaque por meio de entrevistas, algumas viagens noturnas que descobrem o regresso a casas modestas em bairros empobrecidos. Apesar disso, “Paraíso” é exercício muito singelo, um filme que ganha força pela complexidade cativante dos seus sujeitos mais do que pela astúcia com que a câmara os captura. Comparado com outros trabalhos de Tréfaut, incluindo os documentários “Treblinka” e “Alentejo, Alentejo”, sente-se a falta do engenho inventivo.

No fim, contudo, seria erróneo dizer que a nova obra não tem impacto. A beleza luxuriante da música, mesmo quando cantada com esforço esfarrapado, lima muitas arestas e oculta as fragilidades. Depois, há ainda a transformação retroativa que os minutos finais conferem a todo este “Paraíso”. A informação nua, crua, pura e dura sobre as realidades fatalistas da pandemia corta o coração ao espetador. De repente, a música perde a passividade nostálgica que se supunha ter e fica canção de combate, luta contra a morte e contra o fim. O lado cronista da observação assim se eletrifica com propósito. Tanto como o filme se transfigurou durante a produção, também a canção se altera – uma magia dolorosa e simples, mas não por isso menos impressionante.

Paraíso, em análise
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Movie title: Paraíso

Date published: 7 de September de 2021

Director(s): Sérgio Tréfaut

Genre: Documentário, Música, 2021, 84 min

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

Um hino chorado às Serestas de um Rio de Janeiro pré-pandémico, “Paraíso” é um dos trabalhos mais singelos na filmografia do seu autor. Num apelo ao minimalismo sentimentalista, Sérgio Tréfaut homenageia a música brasileira, aqueles que a cantam, aqueles que a amam.

O MELHOR: O golpe impiedoso do fim. A imagem ominosa das cadeiras vazias – uma Seresta sem seresteiros.

O PIOR: As entrevistas inserem-se muito mal no fluir orgânico da ação. Mesmo que a obra final ficasse ainda mais amorfa sem a sua interveniência, quiçá melhorasse com o corte desse mecanismo perfuntório.

CA

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