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IndieLisboa ’23 | Crónicas Curtas #3

A Competição Internacional Curtas do IndieLisboa 2023 continua a dar que falar, com uma nova onda de projectos.

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NOUS ENFUIR SUR UN CHAR AILÉ, 2022, de Noa Roquet (Suíça). Mais uma presença da produção oriunda da Confederação Helvética e uma das mais interessantes curtas, para mim a mais interessante apresentada a concurso nas primeiras sessões da competição internacional, onde a generalidade das propostas ficou longe de satisfazer os parâmetros de maior exigência. Este documentário, feito a partir da reestruturação de anteriores documentários sobre questões sociais e laborais, incide com particular atenção no mundo das mulheres que executam as rotinas próprias dos seus empregos, mas igualmente as rotinas domésticas onde o seu papel acaba muitas vezes por se confundir com o perpetuar de uma herança conservadora e de uma filosofia que atribui ao papel da mulher na sociedade o de fada madrinha do chamado lar, doce lar. Muitas vezes o lar, amargo lar, o lar onde se prolonga a exploração da sua energia, da sua mão- de-obra e até do seu corpo. Naturalmente, essa exploração, realizada por outros meios que não os da entidade patronal, não constitui necessariamente uma repressão da sua liberdade individual, não obstante poder confiná-la a uma posição secularmente aceite de cidadã com um falacioso estatuto especial, mas onde nem sempre encontra grande margem de manobra para alterar o “serviço” que lhe pedem para desempenhar. Trabalho sem falhas, sem intervalos, sem direito a greve e sobretudo sem remuneração que permita lutar por uma alternativa eventualmente viável no quadro institucional mais básico como, por exemplo, o que inclui o casamento e a quase sempre louvada maternidade.

Nous enfuir sur un char ailé IndieLisboa
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Trata-se de um documentário de criação adulto, apesar da juventude da sua realizadora, um exercício de montagem inteligente e muito bem articulado com as palavras da narradora, que não se limita a descrever o que vemos ou não vemos, antes se ouve como a manifestação de um depoimento individual que se quer prolongar no colectivo e inserir-se na luta pela valorização da verdadeira condição feminina. Felize ou infelizmente, apesar da maioria das imagens pertencer a um passado relativamente recente, a sua força e significado não perderam uma pitada de actualidade no contexto do combate pela emancipação feminina e por uma nova visão das relações humanas. Por isso, no final, o apelo para que a luta continue faz o maior sentido…!

CLASSIFICAÇÃO: 80/100




Growing Up Absurd
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GROWING UP ABSURD, 2022, de Ben Balcom e Julie Niemi (EUA). Neste filme veremos ser invocada a memória, sem nostalgias desnecessárias e num estilo comum ao cinema experimental, daquilo que foi uma comunidade para a educação anarquista que funcionou nos Estados Unidos e na Universidade de Buffalo entre 1969 e 1985. E a certa altura, num plano fixo que nos remete para escritos passados, podemos ler o seguinte: “O Tolstoy College está de volta e preparado para planificar um novo semestre de actividades. Para isso precisamos de si – estudante ou professor, empregado que zele pelas instalações ou secretária. Precisamos das vossas ideias, fantasias, desejos e energia. Quer ser um actor no palco da política? Iniciar um grupo de estudo? Desenvolver formas de arte democráticas? Encontrar alternativas para a redutora cultura de massas? Rejeitar a autoridade e controlar o quotidiano da sua vida? Erguer na universidade um centro de pensamento radicalmente crítico? Beber umas quantas cervejas? Então fuja do prime-time da TV nas noites de Sábado e venha até ao Towsend Hall. Qualifique-se a si próprio e aos outros. Erga a Universidade que deseja”. Se isto lhe diz alguma coisa, este filme não lhe vai passar ao lado. Na verdade, numa primeira parte vemos a articulação de depoimentos de alguns dos que por lá estudaram (sobretudo novas formas de encarar as relações humanas no interior de uma sociedade organizada sob a pesada arquitectura social imposta pela plutocracia dominante), assim como paredes, papéis soltos, restos de mobília, fachadas e espaços abandonados que nos servem de suporte imagético das palavras dos que, fora de campo, procuram contextualizar o que ali se viveu. Na prática, os autores fazem-nos sentir a presença fantasmática de um período cultural e politicamente activo e o que resta dessa experiência académica e humana. Entretanto, quando sentiram que já haviam dado uma noção mais avançada (mas não necessariamente aprofundada) do projecto com qualquer coisa de visionário, começaram a dar-lhe um rosto feito de muitos rostos através da introdução de imagens fotográficas dos mentores desta curiosa e real utopia americana. Ficamos assim em GROWING UP ABSURD com as coordenadas possíveis para seguir um caminho similar, se quisermos partilhar o pensamento que materializou o igualmente chamado College F. E, já agora, que a jornada não se fique apenas pela ilusória nostalgia do que podia ser o princípio de um novo rumo, mas sim a afirmação de um outro modo de ser.

CLASSIFICAÇÃO: 50/100

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Marinaleda
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MARINALEDA, 2022, de Louis Séguin (França): Dois homens à beira de uma estrada, algures no meio de uma região onde impera a paisagem natural, procuram seduzir quem passa. E porquê? Porque precisam de uma boleia. Para alcançarem o objectivo, filosofam e organizam estratégias de postura e comportamento no desejo de construírem uma imagem de marca que funcione, digamos assim, como a melhor maneira de convencer os que passam que eles merecem ser levados dali para alguma parte. Levá-los para longe de modo a prosseguirem a sua odisseia, que ninguém sabe ao certo quando começou ou se vai acabar logo a seguir a obterem o que, aparentemente, até ali não se mostrava fácil de alcançar. Entretanto, e porque não são bem-sucedidos, dão corda aos sapatos e, mais encontro menos desencontro, lá vamos descobrindo que estão em França (era previsível, mas… va savoir) e querem ir para Espanha, mais precisamente para o País Basco, no Norte. Só que mais adiante ouvimo-los dizer que querem ir para, nem mais, Marinaleda, que fica na Andaluzia, no Sul. Resta aqui saber se a dupla de rapazes do auto-stop, que não se consideram jovens nem provavelmente imaturos, estudou geografia ou viu um mapa, mesmo pequenino e na escala das antigas agendas de bolso, da Península Ibérica. Não estamos no domínio da ficção surrealista nem da verbalização pura e simples de uma ou outra frase que saltita rebelde na cabeça dos protagonistas. Estamos, isso sim, numa zona de influência mais próxima da comédia para consumo adolescente, onde o humor circula nas entrelinhas dos diálogos e das emoções geradas pela retórica de cada uma das personagens que, nesta altura, já fazem parte do imaginário dos que percorrem os caminhos em busca de alguma coisa para irem esbarrar com coisa nenhuma. De repente, quando menos esperamos, acontece um acidente. Um carro capota e o sangue derramado pela infeliz passageira irá proporcionar um inesperado repasto aos sedentos rapazes que logo se deliciam com um banquete gourmet de hemoglobina. Intrigante? Só até certo ponto. Pouco antes, ouvíramos um deles falar de perseguições movidas pela população de uma aldeia que nos fazia lembrar as atmosferas góticas e vingadoras dos contos de vampiros. Huuum…! Parecia que a coisa prometia, ainda não estávamos a meio e já a realização e o argumentista queriam que levássemos a sério, no plano da consistência e da criatividade narrativa, a sua proposta fílmica, o que, infelizmente, a partir dali vai descarrilar quando uma desgraçada que lhes deu boleia, sem perceber bem quem eram, fica a saber que as criaturas (já posso começar a apelidá-las assim) queriam chegar a Marinaleda porque, segundo dizem, seria a única aldeia comunista do mundo, uma utopia situada no Sul de Espanha. Meus caros leitores, chegados a este ponto e consciente da dose de alguma cumplicidade que lhes dera desde o início, aparando a sua filosofia de pacotilha, mas mesmo assim algo curiosa e até divertida, repito, chegado a este ponto foi a vez de eu mandar sair do carro ainda em movimento as almas penadas que até ali sugaram os meus preciosos minutos de cinéfilo, espectador e crítico. Resta dizer que a coisa durou ainda mais do dobro do que levara até ali, preenchendo os dois e a dita condutora, levezinha de espírito, os restantes minutos dos cinquenta e um desta alucinada viagem pelo vazio de ideias até que o escuro da sala deu lugar a uma luz que, assim espero, permita procurar nos dias seguintes uma programação menos voltada para a valorização de certos pseudo-criadores. Resta dizer que, no campo dos chamados valores de produção, a Fotografia, a Montagem e até podemos dizer, a prestação dos actores, MARINALEDA até se suporta, e os pontos que atribuí são única e exclusivamente um reconhecimento dessa inegável competência.

CLASSIFICAÇÃO: 30/100

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