En attendant les barbares

15º IndieLisboa | En attendant les barbares, em análise

Eugène Green volta a marcar presença no IndieLisboa, desta vez na secção Silvestre com uma das suas mais peculiares e características obras, “En attendant les barbares”.

Desde que foi viver para França em 1968, que o americano Eugène Green se tem dedicado à educação de atores. sobretudo à ressurreição de um tipo de registo, discurso e estilo de interpretação típicos do teatro barroco francês. Tais interesses têm-se vindo a fazer notar ao longo da sua filmografia, tanto no que diz respeito à abordagem declamatória dos seus elencos, como no que se refere à execução formalista das suas experiências cinematográficas. De certo modo, podemos mesmo encarar a filmografia de Green como uma constante evolução no caminho de uma síntese dos seus interesses e preocupações, como que uma cristalização máxima do seu caráter enquanto autor.

Com “En attendant les barbares”, o cineasta aproximou-se mais do que nunca dessa perfeita purificação do que é uma obra de Eugène Green. Partindo de um workshop com 12 atores decorrido em Toulouse, o realizador edificou aqui uma oportunidade para desenvolver um filme enquanto exercício semipedagógico, recorrendo somente a um número extremamente limitado de técnicos e criativos para além de si mesmo e do elenco. Para sermos mais específicos, o filme somente credita um diretor de fotografia, o seu fiel colaborador Raphaël O’Byrne, assim como um engenheiro de som e um assistente de realização que trabalharam durante dez dias com Green e os atores.

En attendant les barbares critica indielisboa
“(…)um filme da mais extrema simplicidade(…)”

Em suma, este é um filme da mais extrema simplicidade, sendo quase completamente desprovido de cenários, figurinos, caracterização, banda-sonora musical ou qualquer outro elemento decorativo. Até as composições, à boa moda de Green, são quase totalmente limitadas a uma panóplia de rígidos tableaux frontais. Pela sua parte, a iluminação, como que emulando, em simultâneo, uma produção teatral em black box e as pinturas seiscentistas que Green adora, brilha pela sua austeridade estilizada. Almas muito pouco caridosas poderiam mesmo rejeitar o filme como pouco mais que um exercício teatral filmado, mas isso seria demasiado redutor.

Apesar da natureza espartana da sua mise-en-scène, Green é um realizador com um olho apurado para brilhantes imagens, tão mais belas pela severidade que transmitem. Somente esse tipo de forma poderia sustentar o registo que o cineasta exige aos seus atores, que passam a maior parte do filme a declamar textos, ora originais ora medievais, diretamente para a câmara num estilo tão desafetado que parece quase alienígena. Indo ainda mais longe do que já tinha ido em obras como “La Spaienza” e “Les fils du Joseph”, Green propõe uma quase absoluta anulação da expressão humana, quer a níveis de linguagem corporal, reação facial ou mesmo cadências vocais. Somente um revirar de olhos trocista tem direito a aparecer em cena, o que não é uma surpresa quando consideramos a atitude rabugenta do cineasta.

Sendo já habitual presença no circuito dos festivais de cinema, Eugène Green já teve muitas oportunidades para divulgar o tipo de ideologia pessoal que está na base do seu trabalho. Nomeadamente, Green tem-se vindo a mostrar como um ríspido opositor do mundo moderno, acusando as pessoas, especialmente os jovens, de viverem existências focadas em valores materialistas e desprovidas de significado, uma consequência direta da dependência tecnológica. Não se ficando por aí, Green, seguindo o exemplo de muitos dos outros intelectuais da sua segunda pátria, desdobra-se muitas vezes em discursos que transbordam uma ideia de elitismo intelectual e superioridade condescendente, especialmente para com a cultura e sociedade americana.

Tudo isso está presente em “En attendant les barbares”, onde seis figuras desamparadas chegam à casa de um casal de magos em busca de proteção. Segundo as redes sociais, eles estão a ser perseguidos por bárbaros, incluindo habitantes dos EUA, e correm perigo. As entidades mágicas, que vivem na companhia de uma filha fantasma, oferecem abrigo por uma noite, mas exigem que os fugitivos deixem para trás os seus telemóveis. O que se segue é uma odisseia filosófica, em que as seis personagens deambulam pela escuridão, à procura da luz e se precipitam em inúmeras discussões sobre temas tão variados como pinturas, onde o ato de pintar nunca acontece, e as angústias de jovens com inúmeras qualificações académicas a trabalharem em empregos como construção civil.

“(…)a crítica social de Green não podia ser mais clara.”

No final, os dois mágicos convidam os seus hóspedes a assistir a uma encenação de uma peça do século XII sobre a deposição de um tirano, o que, aparentemente, insufla os fugitivos de coragem. Afinal, os bárbaros nunca existiram e, sem recuperar os seus aparelhos de comunicação, o sexteto lá sai de cena, vendo o mundo com nova claridade. Um mundo, onde real significado suplanta o medo germinado pela vacuidade de uma vida orientada por sistemas de valor digitais. Enfim, a crítica social de Green não podia ser mais clara.

No entanto, há que apontar como o realizador complica o seu discurso com a inclusão de outras temáticas que até os seus mais fiéis fãs terão dificuldade em conjugar com a sua crítica da juventude e da modernidade. A certa altura, a filha fantasma descreve a sua morte e parece apontar para um ataque terrorista como a sua causa, um ataque que uma das personagens acusa os bárbaros de perpetrar. Talvez de modo inadvertido, Green criou uma infeliz analogia entre terrorismo, para nada dizer de genuínas angústias económicas das gerações mais novas, e os caprichos das redes sociais e sua superficialidade.

Enfim, não é a primeira vez que o discurso de Green o coloca em situações de contradição ou conclusões perigosamente ofensivas. Este é o mesmo realizador que já veio a afirmar que o cinema e o teatro são formas de arte diametralmente oposta, o que parece ser uma falsidade quando consideramos este filme. A não ser que rejeitemos a obra como um não-filme, como um mero exercício de atores documentado para fins académicos. Isso seria uma terrível injustiça, pois, não obstante o modo como exemplifica algumas das facetas mais dúbias na ideologia de Eugène Green, “En attendant les barbares” é uma obra deliciosamente obstinada na sua estilização, escolhendo a simplicidade extrema e a frontalidade total como armas para chocar e desafiar o seu público. Além de tudo isso, o filme é surpreendentemente divertido, não obstante uma espessa pátina de pretensiosismo elitista.

En attendant les barbares, em análise
En attendant les barbares critica indielisboa

Movie title: En attendant les barbares

Date published: 27 de April de 2018

Director(s): Eugène Green

Actor(s): Fitzgerald Berthon, Hélène Gratet, Arnaud Vrech, Chloé Chevalier, Ugo Broussot, Anne-Sophie Bailly, Frédéric Schulz-Richard, Clément Durand, Roman Kané, Marine Chesnais, François Lebas, Valentine Carette

Genre: Drama, 2017, 76 min

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO

“En attendant les barbares” é uma estranhamente divertida e revigorante comédia de valores modernos e arcaicos em severa colisão. É também um audacioso exercício de atores e estilo cinematográfico, que deve tanto ao teatro Barroco como a Bresson.

O MELHOR: Os tableaux parcialmente mergulhados na escuridão do espaço teatral.

O PIOR: Muito do humor mais leviano e despretensioso do filme vem sob a forma de jogos linguísticos que, infelizmente, são impossíveis de traduzir do francês.

CA

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