Ne travaille pas (1968-2018)

16º IndieLisboa | Ne travaille pas (1968-2018), em análise

Ne travaille pas (1968-2018)” é um filme experimental de César Vayssié que integra a competição internacional do IndieLisboa deste ano.

Ao contrário de muitos outros movimentos políticos do século XX, as revoltas estudantis e os cismas sociais do Maio de 68 estiveram sempre ligadas à expressão cinematográfica. Muitos foram os cineastas que putativamente apoiaram o movimento e cujos filmes foram afetados pelos ideais revolucionários. Como muitos sabem, um dos grandes exemplos disto foi o modo como o Festival de Cannes desse ano nem sequer chegou ao fim devido à intervenção de uma série de realizadores revoltosos. Apesar disso, o cinema mais interessante que traça sua origem ao maio de 68 é aquele que foi feito dos anos 70 para a frente, quando cineastas refletiram sobre o relativo fracasso dos seus esforços revolucionários.

As mudanças radicais que muitos esperavam não aconteceram. Não obstante a posição de destaque que os acontecimentos têm na História de França e na História Mundial, o seu legado político é mais facilmente associado com a fragmentação de ação coletiva do que com uma efetiva e eficaz revolução de socialismo libertário. Em termos sociais, as mudanças fizeram-se sentir mais fortemente, mas, mesmo assim, raro seria o revoltoso de 68 que olharia para o que se seguiu aos seus esforços como um sucesso. Tal opinião fez germinar um cinema do desapontamento, por onde cineastas como Jean Eustache, Godard, Chabrol, Malle, Bertolucci e outros fizeram elegias aos ideais utópicos da juventude passada e examinaram a imutabilidade das estruturas sociais que ficaram por derrubar.

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Será que o Maio de 68 foi um fracasso?

Tais obras de reflexão cinematográfica sobre o Maio de 68 continuam a ser feitas nos dias de hoje, inclusive por pessoas que ainda nem estavam vivas durante os eventos revolucionários. César Vayssié nasceu em 1967, pelo que a sua vida quase acompanhou perfeitamente o rescaldo do movimento, sua infiltração nas páginas da História e na psique coletiva. Não que, verdade seja dita, o seu mais recente filme se enfoque na geração do cineasta. “Ne travaille pas (1968-2018)” é, sem sombra de dúvida, uma reflexão sobre o mundo atual e a relação que este tem com os esforços do Maio de 68, seus ideias e seus fracassos, mas as figuras centralizadas pelo edifício fílmico são jovens aos quais se pode muito bem dar a volátil denominação de millenials.

Basicamente, estamos perante um filme experimental que funde diferentes tipos de abordagem documental e géneros de performance. Por um lado, “Ne travaille pas (1968-2018)” é um retrato do período de um ano, entre 2017 e 2018, nas vidas de um casal de estudantes da Escola de Belas Artes, Elsa Michaud e Gabriel Gauthier. Os intervenientes nunca têm o privilégio do diálogo, sendo que toda a colagem febril do filme é homogeneizada por uma batida hipnotizante assinada por Avia x Orly. Em comunhão com esse retrato de 12 meses, temos uma explosão de outras imagens, nomeadamente publicidade, slogans protorrevolucionários do Maio de 68 e uma assustadora compilação de filmagens dos horrores modernos saídos diretamente dos telejornais.

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Há um recorrente alerta para imagens com violência gráfica, o som de um alerta de nova mensagem e novo tweet está sempre a intercalar-se por entre os ritmos repetitivos da banda-sonora. Emojis entram à força no ecrã, tapando imagens de atrocidades e interrompendo homenagens àqueles que morreram nas ruas de França. Vemos o mundo em cacos, morte por todo o lado e governos decididos a destruir o ambiente, vemos um caminho traçado para um apocalipse não muito distante e vemos os nossos protagonistas a contorcer-se com a língua de fora em coreografias anárquicas. Há muito teatro, muita dança e muito Jérôme Bel. Há #MeToo e Harvey Weinstein, posters grafitados de Roman Polanski e defesa dos direitos LGBT, retórica antirracista e referências a Steven Spielberg. Há Macron a celebrar o quinquagésimo aniversário de uma tentativa de revolução, há hipocrisia e há performance política.

Se “Koyaanisqatsi” tivesse sido feito no tempo das redes sociais e com muito menos esplendor formalista, talvez se parecesse com “Ne travaille pas (1968-2018). Na sua forma final, este filme é uma autópsia inconclusiva, mas nunca é um diagnóstico do mundo que retrata. De certo modo, trata-se de um teste de Rorschach, onde cada espectador poderá encontrar uma validação ou ataque aos seus valores. Basta ver como não é preciso muito esforço para encontrar, nos mesmos momentos, uma subversão das promessas vazias do Maio de 68, uma celebração das mesmas e seu legado ou uma mostra de como a juventude atual perde tempo enquanto o caos estabelece domínio sobre a Humanidade.

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O mundo mergulhado no caos.

Nesse aspeto, a experiência de César Vayssié parece um tanto ou quanto superficial, atirando um tsunami de caóticos estímulos audiovisuais sem nunca ponderar ou explorar as ideias que a relação dos elementos díspares pode suscitar. Talvez esse seja o objetivo do cineasta, oferecendo uma tempestade de estímulos vácuos como retrato de uma contemporaneidade onde tudo perdeu o significado, até os ideais de 68. Tal abordagem é respeitável, mas não produz um trabalho particularmente valioso, mesmo no contexto de cinema experimental com mecanismos semelhantes. Pelo menos, o realizador é prodigioso o suficiente na sua manipulação de ritmos e montagem frenética para não aborrecer o espectador. Além do mais, as imagens certamente dão que pensar. Só é pena que essa qualidade devenha quase exclusivamente dos elementos pré-existentes que o realizador usou na montagem e não tanto da construção do filme em si.

Ne travaille pas (1968-2018), em análise
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Movie title: Ne travaille pas (1968-2018)

Date published: 6 de May de 2019

Director(s): César Vayssié

Actor(s): Elsa Michaud, Gabriel Gauthier

Genre: Documentário, 2018, 88 min

  • Cláudio Alves - 60
60

CONCLUSÃO:

Retratando um ano na vida de dois jovens artistas e refletindo sobre os ideais do Maio de 68, “Ne travaille pas (1968-2018) é uma interessante experiência de montagem. Contudo, o todo acaba por ser menos valioso que os elementos que o compõem e a experiência geral é frustrantemente vácua e fútil. Mesmo que esse seja o propósito do cineasta por detrás do projeto, não é algo que valorize o filme em si.

O MELHOR: O incansável ritmo que nunca deixa que ninguém fique perdido ou entediado com a torrente imagética.

O PIOR: O modo como o cineasta levanta assuntos importantes e cheios de potencial relação com o Maio de 68, mas nunca os explora, nem mesmo com contraste imagético. O caos tudo domina, como é óbvio aquando do início da fita, quando o célebre discurso de Emma González sobre as vidas perdidas no massacre de Parkland se torna na base para uma batida pronta para a discoteca.

CA

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