"Safe Place" | © Pipser

IndieLisboa ’23 | Safe Place, em análise

“Safe Place,” chamado “Sigurno Mjesto” no original croata, foi o grande vencedor do 20º IndieLisboa, ganhando o maior prémio da competição internacional. A obra do semiautobiográfica do realizador Juraj Lerotic teve a sua estreia internacional no Festival de Locarno, no ano passado, onde arrecadou prémios para melhor primeira longa-metragem, realizador emergente e ator. Entre a sua passagem pelo circuito dos festivais, o filme foi ainda selecionado para representar a Croácia nos Óscares.

Muitos são os artistas que, no momento da criação, contemplam a sua própria existência, daí formulando a obra com base num gesto de autorretrato. Assim fez Juraj Lerotic, cujo “Safe Place” representa a reflexão sobre um dia feito inferno, quando o seu irmão tentou suicidar-se, deixando o realizador e a mãe numa espiral de desespero e incompreensão. De facto, a proximidade entre o cineasta e o filme, fazem-se sentir desde o primeiro minuto, quando tudo começa com mensagem escrita sobre o ecrã: “Se nada disto tivesse acontecido, poderia dizer-vos: Olhem, este é o vosso prédio, contem até vinte e eu correrei para dentro da cena.”

Em frente e por detrás da câmara, a narrativa e o apego pessoal colidem, mas a mensagem também nos denota outra faceta. Há aqui um teor de poesia, a negociação entre uma linguagem direta e a abstração lírica. Assim se ensina o espetador a encarar o filme, lendo os idiomas tonais, textuais e audiovisuais como se de um exercício preparatório se tratasse. O plano de abertura é geral, distante e quase rígido na sua composição, um aparente quadro de inação que se resolve na tal corrida do autor em jeito de personagem. É um frenesim de nervosismo, ordem cortada por um golpe de caos, pânico cinético.

safe place critica indielisboa
© Pipser

A personagem agonizada que nos aparece em cena é Bruno. O edifício é o prédio onde mora o irmão, Damir, que acabou de tentar acabar com a vida em reflexo do que terá acontecido à família do realizador. No hospital, juntar-se-á outra figura a este teatro de desgraça familiar. Ela é a mãe dos dois homens, nunca batizada com um nome além da relação que tem com os filhos, qual figura primordial entre o sonho e o pesadelo. Daí em diante, “Safe Place” desenrola-se com a mesma disciplina da introdução, o trabalho de ator sempre sujeito à modulação da câmara cujo olhar regressa àquela harmonia da mensagem primeira – algures entre o clínico e o poético.

Apela-se à paciência do espetador, mas também há uma ênfase na atenção necessária para estudar a cena, as dinâmicas entre as personagens mais fortemente expressas na mise-en-scène que no diálogo em si. Por esses meios, Lerotic formula um estilo tão gentil quanto brutal, onde uma história que não podia ser mais miserável se manifesta numa encenação espartana e gesto delicado. Desengane-se quem pensar que o rigor formalista esconde o sentimento ou quiçá serve de escudo. O ecrã vibra com vulnerabilidade, sólido, mas frágil – pressentimos que uma brisa, talvez até um suspiro, seria suficiente para deitar todo o drama abaixo.

Ou talvez um suspiro seja alto o suficiente para ensurdecer, uma carícia capaz de esmagar a carne e cortar a pele. A disciplina da imagem e sonoplastia, dos ritmos precisos e afiados, espelha o modo como irmão e mãe encaram o sujeito depressivo. Decerto se trespassa alienação com estes aparatos, mas só isso acontece porque, naquele momento, é exatamente essa a relação das figuras presentes para com os outros e si mesmas. Quiçá também seja uma estratégia para colmatar a violência do conteúdo, cortando a raiz à flor do melodrama de modo a impossibilitar essa leitura.

É necessário, neste paradigma, explicar um pouco destas abordagens estéticas para além do mero apontamento de rigor, disciplina, essa noção generalizada de rigidez. Como na primeira cena, a câmara mantém-se estável e inerte perante a cena, mas a imagem projetada não é por isso menos primorosa. Lerotic e seu diretor de fotografia, Marko Brdar, constroem labirintos de reflexões dentro do cenário hospitalar e lá fora, nas ruas de Zagreb. Há beleza inegável, mas também o toque frio de uma porcelana imaculada. O vidro da janela e o pórtico qual proscénio servem para separar, para exaltar a distância entre aqueles que se dizem entes queridos.

safe place indielisboa critica
© Pipser

A montagem assinada por Marko Ferkovic é igualmente hábil, refratando as interações de modo a salientar os desconfortos patentes em cada cena. Quer seja uma tentativa falhada de simpatia ou um entendimento que se faz ataque, estas pessoas são como estilhaços. Partem-se mais quando se força o encaixe, destruindo mais no esforço de reparar. O som revela-se mais naturalista, pelo menos no termo da comparação direta com os visuais, mas perpetua o incómodo constante. Ecos de conflitos distantes justapõem-se à cena presente, enquanto, noutras ocasiões, o silêncio é como uma besta cósmica prestes a engolir a família por inteiro.

Entre os irmãos e a matriarca, contam-se três vetores de disfunção, jamais capazes de atenuar o sofrimento da premissa. Expressa-se a história de um dia como um grito sussurrado, com as particularidades dessas vidas mantidas fora de cena, mas sempre intensas. Sentimos sua influência, sua dor, com uma opacidade geral mantendo um toque de ambiguidade nos procedimentos. Um cheirinho satírico complica o cocktail tonal, perturbando a sinceridade sem lhe mudar o gosto. O próprio título, no fim de tudo, nos aparece como uma ironia. “Safe Place,” esse lugar seguro entre a família pode não existir. Quiçá, nunca estejamos realmente seguros, nem mesmo quando a única companhia que nos resta é os olhos que nos confrontam no espelho.




Safe Place, em análise
safe place critica indielisboa

Movie title: Sigurno mjesto

Date published: 7 de May de 2023

Director(s): Juraj Lerotic

Actor(s): Juraj Lerotic, Snjezana Sinovcic, Goran Markovic, Damir Klemenic, Biljana Toric, Neven Aljinovic-Tot, Jasmin Mekic, Suncana Zelenika

Genre: Drama, 2022, 103 min.

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

Laços de sangue são uma ideia consagrada pela tradição, pela cultura, até na espiritualidade. Contudo, podem também ser ilusões. Chegado o epíteto do caos interno, ninguém realmente conhece o outro, e até uma mãe se prova incapaz de compreender o filho. Irmãos são estranhos e não há nada que trespasse o sentimento de segurança e reconforto pelo qual a alma chama. “Safe Place” é angustioso e feito com extremo rigor, um tanto ou quanto frio sem perder um tenor de vulnerabilidades. Trata-se de uma estreia promissora para o realizador Juraj Lerotic.

O MELHOR: A construção formalista, especialmente o uso de superfícies reflexivas no jogo fotográfico de Marko Bdar.

O PIOR: A opacidade do exercício torna “Safe Place” num filme difícil, potencialmente impossível de engolir para certos espetadores. Além disso, criticamos o modo como a doença mental se representa, a demonização de hospitais psiquiátricos. Dito isso, há tanta subjetividade no filme que podemos justificar esses aspetos apelando à perspetiva reinante do irmão e mãe presos num estado de incompreensão.

CA

Sending
User Review
5 (1 vote)
Comments Rating 0 (0 reviews)

Leave a Reply

Sending