Jamala | Eurovisão, liberdade e a luta dos tártaros da Crimeia
Falámos em exclusivo com Jamala, a artista ucraniana vencedora da Eurovisão em 2016 e que acabou de lançar o seu novo álbum: QIRIM.
Neste período pós-eurovisivo, no qual somos confrontados com alguma nostalgia, queríamos apresentar algo que te fizesse viajar ao passado e, ao mesmo tempo, olhar com esperança para os experimentos musicais que os principais nomes da Eurovisão têm apresentado. Por essa razão, convidámos Jamala, artista ucraniana de renome internacional e vencedora do festival em 2016, para falar-nos da inspiração para o seu mais recente álbum, “QIRIM“.
Nesta viagem musical pelas origens, voamos com Jamala até à Ucrânia e aos cânticos mais antigos da península da Crimeia. Com apoio de orquestra sinfónica, do compositor Artem Roshchenko e do produtor de som Sergei Krutsenko, a artista leva-nos por histórias desconhecidas, rescritas ou esquecidas do seu povo. É nesse mundo que podemos conhecer o herói nacional Alim Aidadmakh, que veio de Karasuv e desempenhou o papel de Robin dos Bosques na península, salvando as pessoas da pobreza e da injustiça. Também em “QIRIM“, é dado espaço ao povo Nogai e aos seus dísticos rítmicos que se refletem de forma transparente na vida e nos costumes daquele local.
Ao longo do álbum, lançado no início de maio, podemos também ouvir a história sobre o camelo Kerch, Chalbash-Bora, que se tornou o protótipo do amor e devoção no folclore. Com Jamala percebemos que a herança folclórica tártara da Crimeia precisa de ser restaurada, preservada, e sentida novamente nas diferentes cidades e vilas da sua terra natal: de Kerch a Akyar, de Yalta a Dzhankoy.
1944 | Jamala vence a Eurovisão em 2016
De facto este o mundo de “QIRIM” é tão profundo, que percebermos tratar-se de um trabalho construído ao longo de alguns anos. No entanto, o início da invasão da Ucrânia pela Federação Russa, gerou alguma incerteza relativa ao seu destino. O álbum, que já tinha chegado à fase de mistura de som, corria o risco de não ver a luz do dia. Ainda assim, Jamala conseguiu cumprir o seu sonho. Tal como as palavras ditas na obra, este é um álbum que luta pela verdade, que assume uma monumentalidade sem precedentes. A artista quis mostrar ao mundo que na música reside grande parte da memória.
Aliás, como poderemos esquecer aquela vitória em 2015, na Suécia, quando Jamala deu à Ucrânia a sua segunda vitória por um tema dedicado precisamente às pessoas que quiseram fazer da Ucrânia a sua casa. “1944” mistura instrumentalidade étnica aos tons mais vanguardistas da pop e soul, provando de como a música tem o poder de transcender fronteiras. A sua canção, das melhores alguma vez a vencer o Festival da Eurovisão, prova que podem ser plantadas novas raízes, quer na conquistar de novas sonoridades, quer na conquista de ouvintes. Muito emocionada, Jamala recordou o momento em que os tártaros da Crimeia, uma minoria predominantemente muçulmana de língua turca, foram deportados das suas casas pelo então líder soviético Estaline, incluindo sua bisavó, que fugiu para o Uzbequistão, na Ásia Central.
Ouve já o novo álbum de Jamala
Abordamos “QIRIM” e “1944”, mas também as restantes influências musicais da cantora e até o seu papel em ações humanitárias. A artista tornou-se uma heroína nacional, uma voz de sucesso e a prova de que o futuro ucraniano pode ser risonho. Temos a certeza que o seu percurso continuará a dar que falar, pela sua exaustiva criatividade.
MHD: Desde “1944”, que homenageia o povo tártaro da Crimeia que Estaline deportou durante a Segunda Guerra Mundial, ao teu novo álbum “QIRIM”, sempre estiveste fortemente conectada com a tua pátria. Além disso, nasceste e foste criada numa família de músicos. Como é que esta herança influenciou a tua música e o teu estilo?
Jamala: Cresci com Ella Fitzgerald e Leontyne Price como banda sonora. Sempre houve música em casa desde que me lembro, por isso nunca tive dúvidas sobre o que viria a ser. A música estava nos genes da minha família. E quanto mais se mergulha neste mundo diversificado da música, mais se tem sucesso e maior se torna o teu público. A certa altura, apercebemo-nos de que o palco do conservatório se transforma num estádio, e então queremos falar ainda mais alto. Falar para o nosso público. E aqui começa o mais interessante: cada um de nós tem a sua própria história, imbuída da luta pela igualdade, pela liberdade… A minha história começa na Crimeia, na minha casa, que me foi tirada.
Estava a planear o lançamento do álbum “QIRIM” muito antes da invasão em grande escala, mas o lançamento de 14 canções tártaras antigas da Crimeia, ironicamente, aconteceu durante a guerra. A Rússia continua a destruir a nossa cultura e nós continuamos a lutar por ela debaixo de fogo. A história é cíclica. Hoje, este lançamento adquiriu um significado monumental, é uma outra forma de luta. É outra oportunidade de dizer ao mundo que somos o povo indígena da Crimeia, que vivemos aqui, criámos e cantámos canções.
MHD: A tua música aborda frequentemente os temas de justiça, direitos humanos e identidade. Podes falar sobre o papel da música na promoção destes valores e na sensibilização para estas questões?
Jamala: A música contemporânea é um reflexo do mundo em que vivemos, com todas as suas falhas e cicatrizes. É também uma ferramenta poderosa para lutar por uma vida melhor. Beyoncé, Kendrick Lamar, Jannele Monae, criticam o racismo, a brutalidade policial nas suas canções… Esta é uma luta por uma vida melhor. E a minha terra tem sido sujeita a repressão e deportações organizadas pela Rússia durante séculos, por isso é claro que me magoa. Claro que vou cantar sobre a minha terra; sobre as pessoas que estão a tentar destruir; sobre a minha cultura, que estão a tentar reescrever. E se conseguir salvar pelo menos uma vida desta forma, então o meu trabalho não será em vão.
MHD: A tua vitória no Festival Eurovisão da Canção em 2016 teve um impacto na indústria musical ucraniana e europeia. Consideras que esse momento foi essencial para o mundo inteiro, que ficou a conhecer a história da Crimeia?
Jamala: Hoje em dia é fácil falar da vitória, mas eu sobrevivi. Subi ao palco e contei a história da minha bisavó, cantei em tártaro da Crimeia… Mais uma vez, subir ao palco do Festival Eurovisão da Canção, num festival de alegria e luz, e contar a minha história horrível numa língua que a maioria das pessoas não compreende foi um pouco assustador. Esta canção tinha de ser ouvida não com os ouvidos, mas com o coração. E eu só teria uma hipótese.
Estou extremamente grata ao concurso, não tanto por ter ganho, mas pela oportunidade de ser ouvida. Muitas pessoas ouviram falar da minha terra, da sua história e da sua língua pela primeira vez.
MHD: Os pilares do Festival Eurovisão da Canção são a união, a paz e o respeito pela diferença. Como é que vês o papel do Festival Eurovisão da Canção na promoção do consenso e da compreensão entre diferentes culturas e nações?
Jamala: A Eurovisão é vista por mais de 150 milhões de espectadores todos os anos, por isso, independentemente do que ouvimos dizer sobre o concurso estar “desactualizado” ou outras queixas, é o espectáculo mais popular da Europa e a maior plataforma de comunicação com o público. Ponto final.
Por isso, quando a Europa está a atravessar a maior guerra desde a Segunda Guerra Mundial, o tema “United By Music” tornou-se exactamente o apelo de que a Europa precisava. Hoje, mais do que nunca, temos de perceber que só somos fortes quando estamos unidos.
Ouve Solo de Jamala
MHD: Quais são os teus maiores desafios em cantar na língua tártara da Crimeia? Como é que os ultrapassaste?
Jamala: Cantar em tártaro da Crimeia é ambicioso e corajoso. Mas acredito no poder da língua e do intérprete. Quer dizer, podemos não perceber a letra, mas conseguimos sentir as emoções. Isto aconteceu-me quando oiço Yma Sumac ou Cesária Évora. Magia absoluta na sua forma mais pura!
“QIRIM” mistura dois mundos: o sinfónico e o folk. Não importa onde se eu toco música sinfónica: na Nova Zelândia, no Chile ou na Geórgia, ela será compreendida. E é precisamente através da forma sinfónica que consigo introduzir o ouvinte na componente folk do álbum – a linguagem, a forma de execução. Neste álbum, uma complementa a outra, pelo que o ouvinte pode facilmente mergulhar num mundo até então desconhecido. Para mim, esta é uma oportunidade de o tomar pela mão e conduzi-lo pelos caminhos da Crimeia montanhosa, estepe e costeira.
MHD: Podes descrever o universo musical tártaro da Crimeia e o seu lugar na cultura ucraniana?
Jamala: As culturas ucraniana e tártara da Crimeia estão intimamente ligadas há séculos. Os tártaros da Crimeia partilhavam a sua vida e o seu modo de vida com os cossacos ucranianos, pelo que podemos ter alguns pontos em comum. Até tínhamos lendas populares semelhantes. Os ucranianos tinham Ustym Karmeliuk e os tártaros da Crimeia tinham Alim Aidamak. No entanto, ambos são lutadores pela justiça e pela honestidade. Os escritores tártaros da Crimeia traduziram o kobzar ucraniano Taras Shevchenko… Parece que sempre houve uma ligação entre estas culturas, baseada no espírito de liberdade.
Mas depois da deportação para a Ásia Central, em 1944, as autoridades soviéticas começaram a apagar os vestígios do meu povo na Crimeia. Começaram a colonizar o território com russos, a mudar os nomes das aldeias e cidades tártaras da Crimeia e a proibir a cultura e a língua. Durante décadas, a máquina de propaganda começou a difundir a informação de que éramos inimigos do povo. É por isso que hoje é tão difícil encontrar algo antigo e autêntico, e, por isso, é tão importante lutar.
Ouve Alim, de Jamala com orquestra sinfónica
MHD: Podes descrever como é que a música tem tem ajudado a aproximar-te de outros refugiados ucranianos?
Jamala: Liverpool foi tão calorosa com os ucranianos este ano e todas as pessoas que conheci receberam os ucranianos em suas casas, nomeadamente aqueles que foram forçados a fugir do país. Este é o poder da união.
No início da invasão em grande escala, a Loreen foi uma das primeiras pessoas a escrever-me e a oferecer-me abrigo a mim e aos meus filhos. E quantos músicos, como Tom Odell, Arcade Fire, Pharrell Williams, falaram em apoio aos ucranianos e angariaram fundos! Todos os eventos com a participação de músicos dão calor e apoio, e a convicção de que não estamos sozinhos nesta luta.
MHD: Tu e a tua família tiveram de abandonar a Ucrânia e acabaram como refugiados de guerra. Podes descrever algum momento particular da tua carreira ou da tua vida pessoal em que tenhas sentido que a música te ajudou a curar, a encontrar esperança?
Jamala: No ano passado, lancei um mini-álbum chamado “ПОКЛИК”, um disco electrónico cheio de reflexões e, no qual, descrevo as minhas saudades de casa.
Foi escrito em diferentes partes do mundo, enquanto eu estava a fazer eventos de apoio à Ucrânia, por isso não é surpreendente que cada uma das quatro canções nele contidas contenha referências a casa, nomeadamente o instrumento daire tártaro da Crimeia, o canto popular e a poesia ucraniana. Gravei este EP em estações de autocarros e aeroportos, e cada momento de gravação deu-me força para seguir em frente. Foi como uma sessão de auto-cura, numa altura em que tudo à minha volta era tão frágil. Foi como se estivesse a criar uma teia musical invisível que me aproximou da minha casa, dos meus filhos e da minha família.
Ouve o EP Поклик de Jamala
MHD: Podes dar-nos uma ideia do que se segue na tua carreira musical e de quaisquer projectos ou colaborações que possamos esperar?
Jamala: Tenho uma digressão pelos Estados Unidos e Canadá planeada para o Verão, com uma paragem no estúdio Spotify. Vou gravar qualquer coisa, para agradar aos ouvintes que me têm acompanhado desde o início.
MHD: Como esperas que a tua música continue a evoluir e que novas direcções ou temas estás interessado em explorar?
Jamala: Quanto mais trabalho com música, mais me apercebo de que há muito mais para descobrir. Isso aconteceu com “QIRIM“. Quando comecei a trabalhar nele, apercebi-me de que não havia arquivos nem história. Tudo foi levado, roubado, escondido. E tudo precisa de ser recolhido do zero. Reunir canções num álbum para compreender o meu povo, para me compreender a mi própria. Penso que este é o início de um novo marco na minha vida.
MHD: Finalmente, por que razão é essencial apoiar os artistas que querem partilhar música étnica e o seu património cultural, especialmente neste mundo cada vez mais globalizado?
Jamala: Sem sabermos de onde viemos, não podemos abrir caminho para um futuro melhor.
A MHD gostaria de agradecer à equipa de comunicação de Jamala por nos ter possibilitado esta entrevista sobretudo num período bastante agitado para a artista.