LEFFEST ’21 | Onoda, em análise

“Onoda – 10 000 nuits dans la jungle” é um projeto internacional sobre a vida de Hiroo Onoda, soldado japonês da Segunda Guerra Mundial que só admitiu que o conflito tinha acabado mais de 30 anos depois da rendição nipónica. O filme de Arthur Harari passou na secção Um Certain Regard do Festival de Cannes e agora compete no Lisbon & Sintra Film Festival.

A falácia do custo irrecuperável, também chamada do custo afundado, refere-se a um fenómeno cognitivo que leva o ser humano a repudiar a desistência, mesmo quando isso só o beneficiaria. Acontece quando se investe muito numa só ideia ou projeto, quando se afunda tempo e carga mental, sentido identitário ou algo tão simples como a vontade. Quando damos tanto a algo que não admitimos o seu fracasso, por muito óbvio que ele seja. Estamos predispostos a continuar uma ação se já estivermos suficientemente investidos nela, não obstante os problemas que essa escolha nos possa trazer. É um daqueles problemas da mente, uma dessas insanidades comuns que todos sofremos no curso da vida.

De uma perspetiva presente, é fácil olhar para o passado e diagnosticar o caso de Hiroo Onoda como o máximo exemplo desta falácia. Em 1944, então com 22 anos, ele foi recrutado para uma fação secreta do exército Japonês. Ainda nesse ano, depois de um treino de dura doutrinação, o jovem militar foi enviado para a ilha de Lubang, nas Filipinas. Para lá, Onoda foi com as ordens de manter controlo do território através de técnicas de guerrilha, um regime de terror sobre a população local e constante sabotagem do inimigo. Ao contrário dos outros soldados, o jovem estava estritamente proibido de recorrer ao suicídio face à captura inimiga.

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© LEFFEST

A missão era clara, resistir e jamais desistir, permanecendo em posto ativo até que, um dia, algum oficial seu superior aparecesse com as ordens seguintes. Quando lá chegou, Onoda foi confrontado com pelotões indisciplinados e já muito exaustos pelos esforços bélicos. A chegada de tropas americanas significou uma sanguinária exterminação de grande parte das forças nipónicas. A revolta dos filipinos contra os invasores do Japão também se revelou problemática, sendo que as aldeias do ilhéu se recusaram a render à subjugação. Isolados no centro da ilha, uma densa floresta, Onoda e seus homens perderam ligação com seus aliados e, quando os filipinos chegaram com notícias da derrota japonesa, ninguém quis acreditar.

Por conseguinte, Onoda e três homens sob o seu comando esconderam-se na selva e lá ficaram durante anos, racionalizando os relatos da guerra terminada como rumores e mentiras sediciosas. Um a um, o militar obcecado foi perdendo os seus homens. Tudo começou a dar para o torto chegado 1949, quando um dos soldados foi morto durante a tentativa de roubar uma cabeça de gado à vila mais próxima. O transtorno dessa perda foi a gota de água que fez transbordar o balde para o membro mais jovem dessa equipa maldita. Aceitando a derrota, ele abandonou os outros dois. Por fim, já na alvorada dos anos 70, Onoda perdeu o seu último subalterno, companheiro, e amigo, quando este foi morto por pescadores locais.

No fim, mesmo depois da intervenção de familiares, foi a teimosia de um estudante turista que acabou por levar Onoda à desistência. Quando o miúdo regressou à ilha com o oficial que havia treinado o soldado eterno nessa fação secreta, finalmente se anunciou a rendição e Hiroo Onoda regressou a casa. Para a população de Lubang, foi o fim de um longo tormento, o pesadelo desse papão da floresta. Afinal, Onoda e seus homens não só roubavam à população como os matavam quando podiam e queimavam colheitas como técnica do seu regime imaginado. Contudo, regressado ao Japão nem todos consideraram Onoda um vilão ou mesmo um louco.

Artistas romantizaram a teimosia lendária do militar perdido na selva, enquanto movimentos da extrema direita o elevaram ao estatuto de um santo laico, um ídolo propagandista. Entenda-se assim que Hiroo Onoda é uma figura complicada e politicamente volátil. Dependendo da perspetiva assumida, tanto ele pode ser retratado como uma figura de nobreza Quixótica ou uma demente assombração, um fantasma do Eixo fascista que prolongou os horrores da Segunda Guerra Mundial décadas depois do seu fim. Há que se aplaudir o realizador francês Arthur Harari pela sua ambição, pela bravura em confrontar o legado multifacetado desta figura. Contudo, seu filme que foge a sete pés da complexidade política inerente à história.

Quiçá por ser forasteiro europeu observando a História do Japão, existe uma qualidade clínica e incisiva no modo como o cineasta gálico encara o conto da vida real. “Onoda, 10 000 nuits dans la jungle” prefere focar-se no isolamento da figura titular ao invés do que o mundo exterior pensou dele. Tanto em termos geográficos como espirituais, este é um exercício sobre a insularidade que, já em si, é insular. Até ao nível estético existe um divórcio entre o humano e seu contexto, um classicismo de ares Americanos que privilegia a cara do ator e deixa que o retrato psicológico seja a força condutora do texto. Somos puxados para a loucura de Onoda sem nunca o compreender por completo.

Em certa medida, somos postos na posição dos seus soldados e do estudante seu salvador. Olhamos o homem de fora, mas com tal proximidade que sentimos o calor da intimidade partilhada. Essa desconexão alienada acaba por refletir a própria experiência que vemos Onoda estabelecer com a realidade da condição japonesa. Harari não tenta estabelecer equivalências entre o passado e presente, mas a paranoia destas almas perdidas na selva acaba por reverberar na sensibilidade do espetador em 2021. As ligações estão lá para serem feitas, só que o cineasta não vai fazer o trabalho intelectual da audiência. A simplicidade formalista e narrativa assim evita a polémica, ao mesmo tempo que desperta uma forma de espectar o filme mais ativa que passiva.

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Como que conversamos com “Onoda, 10 000 nuits dans la jungle” à medida que o vemos e desenrolamos a demência Herzogiana do protagonista. Talvez a maior surpresa que emerge de tal visionamento ativo é quão humanista o discurso concetual de Harari se vai revelando. Se a obsessão de Onoda era a guerra eterna, a obsessão deste cineasta é a relação mutante entre homens amigos, entre indivíduos e seu corpo em constante mudança, entre o ser humano e o espaço que habita no cosmos natural. Ele consegue alcançar essa dimensão graças a um elenco incrível, liderado por Endo Yuda e Tsuda Kanji no papel de Onoda em fases diferentes da sua vida. Verdade seja dita, não há um único passo em falso neste grupo de atores, todos eles compondo um dos melhores coletivos interpretativos deste ano cinematográfico. Através das suas performances, conseguimos vislumbrar alguns dos mistérios da condição humana levada aos extremos da resiliência sem sentido.

Onoda, em análise
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Movie title: Onoda, 10 000 nuits dans la jungle

Date published: 17 de November de 2021

Director(s): Arthur Harari

Actor(s): Yuya Endo, Kanji Tsuda, Yuya Matsuura, Testsuya Chiba, Shinsuke Kato, Kai Inowaki, Issei Ogata, Taigo Nakano

Genre: Aventura, Drama, Guerra, História, 2021, 165 min

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO:

“Onoda, 10 000 nuits dans la jungle” é uma odisseia histórica que estuda a obsessão de um indivíduo que se recusava a aceitar a realidade e assim se refugiou numa fantasia bélica sem fim à vista. Com ajuda de um grande elenco e financiamento dos quatro cantos do mundo, Arthur Harari aqui conta a história inacreditável de Hiroo Onoda, sua loucura, sua dor, sua humanidade.

O MELHOR: Os atores, com destaque para os principais e para Issei Ogata num papel secundário. Também temos que salientar um plano que nos deu calafrios, quando a câmara olha para baixo e observa a descolagem de um helicóptero através do detalhe de pés humanos elevando-se acima do solo, libertos da ilha por fim.

O PIOR: Respeitamos a austeridade formalista, mas mais floreado técnico poderia ter dado vitalidade à fita. Com quase três horas, este é um filme comprido e, mesmo que a repetição faça parte da temática, não tem de ser tão exaustiva. Dito isso, a simplicidade com que a trama histórica é apresentada acaba por possibilitar momentos modestamente transcendentes. Pensamos no revisitar de um nó, muitos anos depois de ter sido primeiro usado para marcar um lugar de luto.

CA

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