"Fechar os Olhos" | © Nitrato

LEFFEST ’23 | Fechar os Olhos, a Crítica

“Fechar os Olhos” de Víctor Erice foi o grande vencedor do LEFFEST deste ano, tendo arrecadado o primeiro prémio da Competição Oficial. Segundo o júri “com um ritmo natural e um controlo refinado e orgânico, Cerrar los Ojos pondera a natureza da existência e o terror – talvez dom – do esquecimento, a capacidade da arte de falar por nós e para nós.”

Em 1973, Víctor Erice estreou a sua primeira longa-metragem depois de uma década a explorar as possibilidades do cinema em curtas. “O Espírito da Colmeia”, protagonizado pela pequena Ana Torrent tornou-se numa sensação internacional, deliciando cinéfilos com as suas visões de subjetividade infantil em tons de âmbar. Hoje em dia, podemos encontrar o título em muitas listas dos melhores filmes já feitos. Passados dez anos, Erice regressou com outra obra-prima, “O Sul”, e, em 1992, veio o seu “Sonho da Luz, o Sol do Marmeleiro”. Desde então, contudo, a curta e o documentário singelo assolaram a sua filmografia.

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Para muitos, parecia que Erice jamais voltaria ao grande ecrã com nova longa-metragem, um mestre para a eternidade com somente três filmes em seu nome – todos majestosos. Mas o silêncio de 30 anos quebrou-se com o anúncio de novo projeto, uma continuação dos seus interesses expressos em obra passada, nomeadamente a perspectiva do artista, a memória, a cristalização do momento passageiro pelo advento da arte e do celuloide. Daí surgiu “Fechar os Olhos,” trabalho claramente influenciado pela idade avançada do cineasta, um daqueles filmes de mestre envelhecido que, no entanto, se sente tão cheio de ideias como o trabalho de um estreante.

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© Nitrato

Desde a conceção até à estreia, contudo, muitos sobressaltos se levantaram. Entre eles, esteve toda uma polémica em Cannes, onde o realizador planeou o seu grande regresso pela mão de Thierry Frémaux. Só que o diretor do Festival terá induzido Erice em erro. Assumindo que o seu trabalho estrearia em competição, o artista espanhol teve a infeliz surpresa de ver “Fechar os Olhos” renegado a uma posição menos prestigiada quando Frémaux anunciou o programa. Foram feitas muitas acusações e os boatos acumularam-se, maldizeres em todas as direções e suficiente controvérsia para enterrar a fita em má publicidade.

Só que, em parelha com polémicas vieram as reações da crítica, uma torrente de amor para com um mestre do cinema regressado. Com a chegada do filme a Portugal pelo LEFFEST, podemos confirmar essa paixão, aplaudindo este “Fechar os Olhos” como um dos melhores feitos do ano cinematográfico. Além disso, é capaz de ser um dos melhores poemas já concebidos sobre o cinema enquanto manifestação do engenho humano e magia que dialoga com as pessoas também, um recetáculo de memória e imaginação que serve para nos levar a realidades fora do alcance físico ou até mental. Obviamente, tudo começa com um filme que nunca foi nem nunca será.




Trata-se da primeira cena de algum neo noir à moda antiga, floreado com orientalismos requentados e uma prestação exuberante no centro. Um senhor chamado Levy reside em casarão francês no pós-guerra, algum refugiado do regime franquista que fala sobre uma filha perdida em Xangai. O grão e a névoa dão ao ecrã um ar de miragem, texturas aveludadas com uma pátina de antiguidade e o jeito artificial do cinema dentro de cinema. Esta Matryoshka fílmica é um fragmento em 16mm, réstia de um trabalho inacabado do realizador Miguel Garay. Do celuloide para o digital, conhecemos o autor em 2012, mais de vinte anos após essa rodagem ter sido interrompida pelo desaparecimento do ator principal.

Não foi Levy que sumiu no nevoeiro, mas o detetive em busca da filha, como se ficção e realidade se tivessem fundido e invertido. Aquele que procura tornou-se procurado, nunca encontrado. Assim é o estado da situação na narrativa principal, quando Garay é convidado de um programa televisivo sobre mistérios por resolver. Fala-se no desaparecimento do seu protagonista, Julio Arenas, e, de repente, é como se todo o passado se abatesse sobre o presente. Em conversa com Ana, a filha de Arenas, a vontade de seguir em frente é forte, mas o ontem agarra-se ao hoje e recusa largar, revolvendo na imaginação do cineasta.

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© Nitrato

Através de três horas, Erice usa este avatar artístico para ruminar sobre a relação do cinema e do ser humano, a memória que guardamos dentro de nós e o modo como esta se manifesta no dia-a-dia- Garay é um homem recluso em aparente fuga da vida como ela foi, embriagado de arrependimentos e mágoas, de amores perdidos e amigos fantasmas. Mas então, uma reviravolta tem lugar e, da arqueologia em celuloide, a pista emerge e a resposta para o enigma afirma-se no horizonte. Estará o ator descoberto? Só que a questão da lembrança continua, sobressaltada por uma amnésia profunda e transformada numa verdadeira fusão de melodrama e filosofia.

Perante um amigo esquecido, será que Garay e Arenas conseguem recordar a verdade? E o que é ela, essa verdade? Será a identidade esvanecida de um homem rebatizado Gardel ou a sua persona partida? Será a ambivalência da filha ou a necessidade visceral de um artista em usar a sua arte como panaceia? Uma coisa é certa – é preciso um milagre para resolver o imbróglio no último ato deste “Fechar os Olhos.” É claro que, como as personagens dizem, o cinema não é sítio para magia milagreira. Pelo menos, assim é desde que Dreyer morreu. Com isso dito, chegado o fim desta fita, talvez se tenha que rever a fala.

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Na obra de Erice, o cinema ainda consegue fazer milagres. De facto, a maleabilidade do tempo é verdadeira feitiçaria nas mãos deste senhor, as horas passando em fluido gesto. Sentimos a corrente de um rio de recordação com uma profundeza de emoção forte, mesmo comovente. As fragilidades da psique colidem com a capacidade de congelarmos imagens fora do tempo, além da mortalidade, precipitando reflexões sobre aquilo que separa a carne do espírito. Alguns falam numa carta de amor à sétima arte, mas “Fechar os Olhos” é mais complicado que isso, arriscando o terror em parelha com o espanto, um poema elegíaco do grande ecrã.

“Fechar os Olhos” chega aos cinemas portugueses dia 7 de dezembro, com distribuição da Nitrato Filmes.

Fechar os Olhos, a Crítica
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Movie title: Cerrar los Ojos

Date published: 22 de November de 2023

Director(s): Víctor Erice

Actor(s): Manolo Solo, Jose Coronado, Ana Torrent, Petra Martínez, María León , Mario Pardo, Helena Miquel, Antonio Dechet, Josep Maria Pou, Soledad Villamil, Juan Margallo

Genre: Drama, 2023, 169 min.

  • Cláudio Alves - 95
95

CONCLUSÃO:

Se este for o fim de Víctor Erice, trata-se de uma das grandes despedidas na História do Cinema. “Fechar os Olhos” é o tipo de filme que só poderia emergir da mente de um artista com o peso dos anos sobre os ombros, refletindo sobre o que já foi e nunca será. Por isso mesmo, conta a história de um realizador em busca de um espírito do passado, toda a realidade humana dessa missão e todo o simbolismo que lhe é inerente. Tudo culmina num momento merecedor de aplausos, tão simples quanto poderoso.

O MELHOR: Um argumento brilhante, um ato final que comove e faz pensar, um fim de cortar a respiração.

O PIOR: Há uma certa feiura na imagem digital, especialmente quando contrasta diretamente com os arquivos em 16mm. Contudo, diríamos que esse aspeto é mais qualidade que defeito, um jogo estético muito deliberado de Erice.

CA

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