Na Berlinale, o japonês Ryusuke Hamaguchi conquistou o Urso de Prata para Melhor Realização com “Roda da Fortuna e da Fantasia”. Ainda este ano, viria a triunfar em Cannes com “Drive My Car”. 2021 é o ano de Hamaguchi que assim se afirma como um dos grandes autores do cinema contemporâneo. O filme teve antestreia portuguesa no Lisbon & Sintra Film Festival, sendo que terá estreia comercial em Dezembro.
“Roda da Fortuna e da Fantasia” é um filme antológico, sendo uma longa-metragem composta por três curtas, cada uma durando cerca de 40 minutos. São histórias separadas que, no entanto, se encontram unidas por similaridades estéticas e uma continuidade temática. São contos sobre coincidências e imaginação. De facto, uma tradução mais correta do título original nipónico seria “Coincidência e Imaginação”. Também se afiguram explorações do desejo que endoidece e da necessidade do contacto humano, da companhia.
Tal como acontece com o título maior da fita, há várias formas de traduzir os seus nomes, mas poderíamos intitular o tríptico com os seguintes títulos: “Magia,” “Porta Aberta” e “De Novo.” Assim reunidas, estas miniaturas narrativas formam um artefacto de cinema sublime, daquele que arrebata os sentidos e perturba o pensamento, quiçá o sentimento também. Tudo começa com uma conversa entre amigas, a modelo Meiko e sua companheira Tsugumi. No regresso de uma sessão fotográfica, as duas falam no carro sobre um encontro espetacular que Tsu terá tido na noite anterior.
Fala-se da castidade, do sexo e de um êxtase romântico. As palavras partilhadas em confidência são um relato que acalenta o coração com suas qualidades adoráveis e a esperança de uma paixão futura. Hamaguchi filma tudo num só plano na parte de trás de um táxi, encenando o momento com severidade formal que coloca toda a ênfase no trabalho de ator e sua negociação do texto, seus mistérios humanos e segredos silenciosos. É assim que nos apercebemos que há algo escondido no júbilo amistoso de Meiko. Não está ela feliz pela amiga? “Roda da Fortuna e da Fantasia” é feita de reviravoltas contidas no singelo movimento e aqui se regista o primeiro.
Em “Magia” trata-se de um carro que, meio caminho andado, faz marcha-atrás e regressa ao sítio de onde partiu. Acontece que Meiko entendeu, pelas descrições da amiga, que sua nova paixoneta é o seu ex-namorado. Segue-se a confrontação, um devaneio de ciúme e o sonho da revelação. Em montagem dissimulante, Hamaguchi mostra-nos os extremos do comportamento e depois reverte a história para o decoro da boa educação. Em nome da paz, mantêm-se os segredos e espera-se que a tormenta passe. O conto brilha pela sua falta de conclusão, pela maturidade do fim, pela amargura dolorosa que anda de mãos dadas com a abnegação romântica.
A segunda história, “Porta Aberta” expande a cronologia limitada da sua antecessora. Se o primeiro conto durou somente dois dias, este desenrola-se ao longo de anos, traçando um plano de vingança pela parte do estudante humilhado. Só que nem o homem que procura retribuição ou o pedagogo temido são protagonistas desta fita. Esse papel cabe à mulher que intersecta o fado dos dois, uma fã dos escritos do professor e amante casada do estudante já crescido. Nao é o seu nome e é a voz que estimula a fantasia nos homens da trama.
A pedido do seu companheiro no adultério, ela visita o professor feito escritor, lendo-lhe uma passagem do livro em voz alta. Num filme com tão decoroso tenor visual, a sensualidade vive no texto, na descrição de um homem cujo sexo é rapado pela namorada, atingindo o orgasmo quando ela chupa o testículo liso. O plano passa pelo cativar do homem mais velho, pela gravação do encontro e divulgação do escândalo. Contudo, ele abre a porta do escritório e quebra o feitiço de intimidade. Num gesto ainda mais estranho, ela revela o esquema. Faz-se outro pedido, um elogio e uma traição. A moralidade é ambivalente, mas a luxúria e a mágoa são inconfundíveis.
Isso traz-nos ao terceiro, último, e mais poderoso conto de “Roda da Fortuna e da Fantasia.” Aí, encontramos um futuro alternativo onde um vírus que induzia a partilha involuntária de dados pessoais levou a um regresso ao telegrama e ao correio físico. Neste paradigma, as conexões perdidas entre antigos colegas são difíceis de concertar e relações perdem-se com o passar dos anos sem comunicação. Em tal cenário, Natsuko é uma mulher que vive em Tóquio e está de regresso à terra natal para a reunião da turma do secundário. A ação precipita-se pelo seu regresso, mas não é na festa de antigos colegas que a reviravolta tem lugar.
Acontece numa escada rolante quando, vislumbrando uma cara conhecida, Natsuko reverte o caminho e procura chamar a atenção da outra mulher. Ela chama-se Aya, mas as duas não trocam nomes logo aí. Ambas julgam conhecer a outra, mas, chegadas a casa para um chá e convívio, apercebem-se do contrário. Natsuko confundiu Aya com sua antiga namorada e ela, por sua vez, confundiu Natsuko com uma rapariga solitária que em tempos tocava piano na escola. Desgostosas e em busca da catarse, as mulheres arranjam um jogo para dizerem o que lhes vai na alma.
Assumindo o papel da desconhecida sua sósia, Aya e Natsuko concedem uma à outra o presente da conclusão, de uma conversa final e promessa de amor mútuo. Assim descrito, o episódio parece louco, mas a escrita de Hamaguchi e sua direção de atores contraria a incredulidade narrativa. O comportamento humano é um mistério bizantino, complexo até à exaustão e vasto como uma galáxia em constante expansão. Encontrar razão nesse caos é impossível. Só que a arte assim faz esses milagres, articulando o inefável e resolvendo a impossibilidade. A arte encontra ordem no caos – assim é o cinema de Ryusuke Hamaguchi.
“Roda da Fortuna e da Fantasia” é um tríptico sobre comportamento humano e a eterna procura por companhia num mundo em que estamos todos condenados à solidão. Ryusuke Hamaguchi assim assina uma das suas obras maestras de 2021. O trabalho de ator é insuperável, mas também a forma tem mérito, especialmente ao nível da montagem, como o corte da imagem pode negociar as tonalidades do texto.
O MELHOR: A escrita criativa de Hamguchi e seu elenco miraculoso.
O PIOR: Os ritmos de “Porta Aberta” são imprecisos quando comparados com suas irmãs cinematográficas. Os saltos temporais podem estar no âmago dessa fragilidade.
Licenciado em Teatro, ramo Design de Cena, pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Ocasional figurinista, apaixonado por escrita e desenho. Um cinéfilo devoto que participou no Young Critics Workshop do Festival de Cinema de Gante em 2016. Já teve textos publicados também no blogue da FILMIN e na publicação belga Photogénie.