Em ‘O Rei Perdido’, o realizador britânico Stephen Frears e o actor Steve Coogan transformaram a história verdadeira da descoberta dos restos mortais do ‘infame’ Ricardo III, rei inglês do século XV, sob um estacionamento de Leicester, numa comédia dramática absurda, protagonizada pela luminosa Sally Hawkins. Estreia em breve nas salas de cinema.
Em ‘O Rei Perdido’ de Stephen Frears (‘A Rainha’ 2006), dois mapas diferentes do mesmo lugar sobrepõem-se em épocas diferentes: o passado e o presente. Diz-se que a história é sempre escrita pelos vencedores. Isso nunca foi mais verdadeiro do que no caso do rei Ricardo III, difamado desde o momento de sua derrota por Henrique Tudor: a verdade sobre a sua vida foi contorcida pelas gerações subsequentes (Shakespeare é sem dúvida o mais culpado). Ao longo de 500 anos, ‘factos alternativos’ tornaram-se a narrativa convencional. Isto é, até que a determinada e verdadeira Philippa Langley assumiu a causa de Richard III, que resultou no livro ‘The King’s Grave: The Search for Richard III’.
Entusiasta da figura de Ricardo III, que a famosa peça de Shakespeare imortalizou como um vilão, Philippa Langley (Sally Hawkins, vimo-la em ‘A Forma da Água’, 2017), uma ‘historiadora autodidata’, procura sozinha e obsessivamente juntar os pedaços da história e vestígios para conseguir limpar a imagem negativa — supostamente um usurpador deformado e perverso — e exumar o corpo do último rei da Inglaterra da Casa de York, (ou da dinastia Plantageneta) morto na batalha de Bosworth Field, o confronto decisivo da Guerra da Rosas, em 1485. No entanto, arquivos, livros e documentos não são suficientes para encontrar o lugar certo para a escavação arqueológica e são muitas as dificuldades para encontrar os respetivos financiamentos e autorizações para o fazer. É então que Philippa — brilhantemente interpretada por uma Sally Hawkins como sempre capaz de adaptar o centro emocional do filme ao seu pequeno corpo e rosto — para perseguir a sua obsessão, desiste do seu rotineiro emprego e põe em causa toda a sua vida familiar, já de si de pernas para o ar: o seu casamento com John (o conhecido Steve Coogan de ‘Viagem à Grécia’, 2020) desmoronou, mas os dois permanecem muito próximos, partilhando os cuidados de seus filhos pequenos. Isto tudo por causa de um pressentimento e de determinadas visões de um fantasma do rei (Harry Lloyd), que acompanham Philippa ao longo do filme. A irracionalidade e a coragem (e a determinação também), marcam a realidade e o equilíbrio de poder — cultural, político, social e académico — neste novo filme de Stephen Frears, que conta com, além da interpretação como secundário de Steve Coogan (como ex-marido de Philippa), com a sua participação como ideólogo, argumentista (em parceria com Jeff Pope [‘Philomena’, 2013]) e produtor. O facto é que afinal, por mais absurda que possa parecer, a história deste filme, (quase) tudo aconteceu e o esqueleto do rei Ricardo III foi realmente encontrado em 2012, por uma equipa de investigadores da Universidade de Leicester, tudo por uma forte iniciativa desta mulher de meia-idade de Edimburgo, aparentemente com algumas perturbações emocionais. E mais, esse esqueleto, após uma notável história de detectives arqueólogos, envolvendo poesia medieval galesa e testes de DNA, foi confirmado que era de Ricardo III, acabando por ser enterrado numa grande cerimónia na Catedral de Leicester e a mulher condecorada pela Rainha Isabel: Member of the Order of the British Empire.
Já em 2001, um gentil e charmoso filme britânico intitulado ‘A Grande Escavação’, de Simon Stone, contou a história da ‘vida real’ do arqueólogo autodidata Basil Brown (interpretado com a calma discreta por Ralph Fiennes) que foi afastado da descoberta dos tesouros de Sutton Hoo, por um snob estabelecimento académico, que tentou ficar com os créditos do seu trabalho. Neste aspeto o filme de Frears é semelhante. Contudo, será que Stephen Frears ao fim de tantos anos de uma brilhante carreira se especializou neste subgénero de filmes sobre a monarquia inglesa largamente produzidos no Reino Unido? Não, Frears é Frears e apesar da polémica gerada pelo filme — que não interessa muito para aqui e que pode ser consultada na Internet — a verdade é que como sempre o realizador britânico não cede um pingo da sua confiabilidade como narrador ‘transparente’ e direto: nenhum plano ou movimento de câmara parece ir além da história ou do respeito pelas personagens reais, seja eles quais forem, reis, plebeus, entusiastas, académicos, excêntricos ou desajustados. Claro, que é difícil não estar do lado da personagem de Sally Hawkins, uma mulher da classe média, uma nerd obsessivo-compulsiva, uma pessoa como nós deste século XXI, das pesquisas online, fóruns de entusiastas e de especialistas ou autodidatas em história ou em patologia da Wikipédia. Nada disso afeta o evidente apelo dramático do filme, já que Hawkins dá brilhantemente vida a essa trémula e vulnerável personagem que supera obstáculos aparentemente intransponíveis para provar ao mundo que ela merece ser levada a sério — na verdade o cerne do filme. Quaisquer que sejam as suas inconsistências, ‘O Rei Perdido’ é uma história de superação, que prova ser um veículo perfeito para uma confiável presença de Hawkins como protagonista. Além disso é uma comédia dramática — não sei se é muito correta esta redundância, mas é eficaz para caracterizar este filme — que efetivamente esteve envolto numa polémica, entre alguns membros do elenco, como o ator Steven Cogan, que defende o seu conteúdo, e os académicos da Universidade de Leicester — nomeadamente Richard Buckley e Richard Taylor, interpretados no filme por Mark Addy e Lee Ingleby respetivamente – que reclamam serem mal retratados na obra, e que esta seria imprecisa quanto à evolução da descoberta dos restos mortais de Ricardo III.
Correndo, porém, esse risco de um desvio institucionalizado, — e é importante ler alguma coisa sobre a polémica — como espectadores temos que escolher entre torcer o nariz ou deixar-nos levar por esta história mirabolante entre o drama e o riso, mas que aconteceu realmente. Porém, entre as pessoas ‘normais’, os académicos e os políticos das altas esferas deste ‘novo’ mundo neo-liberal que vivemos, o realizador inglês certamente sabe bem do que está a falar e a mensagem que procura passar: as diferenças de estatuto e poder. Aceitamos!
JVM
O Rei Perdido, em análise
Movie title: The Lost King
Date published: 13 de November de 2022
Country: Reino Unido
Duration: 108 minutos
Director(s): Stephen Frears
Actor(s): Sally Hawkins, Steve Coogan, Mark Addy, Lee Ingleby
Genre: Drama, comédia, 2022,
José Vieira Mendes - 75
75
CONCLUSÃO:
‘O Rei Perdido’ é o mais recente filme de Stephen Frears, que conta a verdadeira história de uma arqueóloga amadora (Sally Hawkins) que luta contra o cepticismo e a burocracia estatal e académica, a favor da sua uma busca para localizar o local do descanso final do rei Ricardo III. Esta parceria entre os argumentistas Steve Coogan e Jeff Pope com o realizador Stephen Frears consegue criar uma razoável tensão narrativa entre o passado e o presente. Através de um retrato sensível e espirituoso de Philippa, Sally Hawkins mostra-nos de uma forma magnífica a figura de uma mulher um pouco desajustada, que luta ferozmente para redimir o rei Ricado III, ao mesmo tempo impotente para mudar os seus mal-entendidos e inseguranças. Ao consertar a percepção fracturada da história de Ricardo III, Philippa ‘conserta-se’ também a si mesmo e aqui está realmente todo o cerne do filme deste novo filme de Frears.
JVM
Pros
A maravilhosa interpretação de Sally Hawkins é muito humana, umas vezes animada outras triste e absurda, mas compensa muito a falta de uma certa tensão dramática do filme.
Cons
Este drama de Stephen Frears sobre a procura da verdade correu um certo risco ao perder-se um pouco nas suas próprias ilusões e polémicas.
Jornalista, crítico de cinema e programador. Licenciado em Comunicação Social, e pós-graduado em Produção de Televisão, pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. É actualmente Editor da Magazine.HD (www.magazine-hd.com). Foi Director da ‘Premiere’ (1999 a 2010). Colaborou no blog ‘Imagens de Fundo’, do Final Cut/Visão JL , no Jornal de Letras e na Visão. Foi apresentador das ‘Noites de Cinema’, na RTP Memória e comentador no Bom Dia Portugal, da RTP1. Realizou os documentários: ‘Gerações Curtas!?’ (2012); ‘Ó Pai O Que É a Crise?’ (2012); ‘as memórias não se apagam’ (2014) e 'Mar Urbano Lisboa (2019). Foi programador do ciclo ‘Pontes para Istambul’ (2010),‘Turkey: The Missing Star Lisbon’ (2012), Mostras de Cinema da América Latina (2010 e 2011), 'Vamos fazer Rir a Europa', (2014), Mostra de Cinema Dominicano, (2014) e Cine Atlântico, Terceira, Açores desde 2016, até actualidade. Foi Director de Programação do Cine’Eco—Festival de Cinema Ambiental da Serra da Estrela de 2012 a 2019. É membro da FIPRESCI.