Gérard Depardieu é o comissário Maigret nesta nova adaptação. © NOS Audiovisuais

Maigret – Simenon, do cinema à televisão

O belíssimo ‘Maigret e a Rapariga Morta’, de Patrice Leconte, com Gérard Depardieu chega esta semana às salas de cinema. A propósito importa recordar que a fértil imaginação do escritor Georges Simenon (1903-1989), fez com que muitos dos seus romances e personagens, fossem adaptados ao cinema e televisão, como é o caso da figura do comissário Jules Maigret.

No IMDB (Internet Movie Database), existem cerca 164 entradas com o nome de George Simenon, o que o torna, certamente, num dos escritores policiais, mais adaptados ao cinema e televisão, sendo que muitas das séries até se desdobram em várias versões, temporadas e diversos protagonistas, principalmente da sua personagem mais relevante: o comissário  Jules Maigret. A mais antiga adaptação o cinema da obra de Simenon é La Nuit de Carrefour (1931), um filme realizado por Jean Renoir. Depois foram criadas, uma enorme quantidade de adaptações ao cinema e televisão algumas mesmo nos Países de Leste, antes da queda do Muro de Berlim; a maioria em França, realizadas entre outros por cineastas como, Marcel Carné, Claude Autant-Lara, Jean-Pierre Melville, Bertrand Tavernier, Claude Chabrol, Serge Gainsburg, além da produção franco-americana de Burgess Meredith (‘Homem da Torre Eiffel’, [1949] e a do mestre húngaro Béla Tarr (‘O Homem de Londres’ [2007]. Em 1947 estreou um filme espanhol intitulado ‘Barrio’, realizado pelo húngaro Ladislao Vajda, — o realizador de ‘Marcelino, Pão e Vinho’ (1955) — onde participaram grandes actores portugueses: Milú, Isabel de Castro, Óscar Acúrcio. O cineasta português António Lopes Ribeiro (1908-1995) foi curiosamente, um dos mais improváveis tradutores da obra de Simenon, ao lado de outros artistas nacionais como o pintor Lima de Freitas, os poetas Alexandre ONeil, António Barahona ou o brasileiro Mário Quintana e mais recentemente o escritor Miguel Serras Pereira. Um dos aspectos que certamente influenciou a obra de Simenon foi sem dúvida a sua amizade com o realizador italiano Federico Fellini, com quem partilhava o desejo de ‘fazer bom, mas popular’, algo que resultou na edição de um livro com cartas trocadas por ambos e uma entrevista feita a dois. 

Lê Também:   O Menu, em análise
Maigret
George Simenon é um dos escritores de policias, mais adaptados aos ecrãs de cinema e televisão. ©Famous Authors

O romance policial ‘Pietr, o Letão’, escrito por volta de 1930 — há controvérsias quanto a esta data — e publicado em 1931, pela editora francesa Fayard, foi para todos os efeitos, dito até pelo próprio autor George Simenon (1903-1989), o primeiro romance protagonizado pelo famoso comissário Jules Maigret. Na altura, logo a figura do taciturno investigador, despertou interesse numa indústria cinematográfica em expansão, com o advento e popularidade dos filmes sonoros. O jovem escritor George Simenon, tinha então 28 anos e estava entusiasmado com a Sétima Arte, uma novidade na qual via um grande futuro. E assim, muitas das suas personagens e romances foram facilmente adaptadas ao pequeno e grande ecrã. O caso mais evidente obviamente foi o da figura do comissário Maigret: protagonista de diversos filmes realizados por nomes como Jean Renoir (‘La Nuit du Carrefour’), Jean Delannoy (‘Maigret Tend un Piège’, ‘Maigret et l’Affaire Saint-Fiacre’) ou Richard Pottier (‘Pipcus’, ‘Les Caves du Majestic’).




Maigret
‘La Nuit du Carrefour’, realizado por Jean Renoir (1932). ©Europa Films

Em 1932, estrearam dois filmes, com o comissário Maigret, ambos baseados em romances publicados no ano anterior: ‘O Cão Amarelo’ (‘Le Chien jaune’), realizado por Jean Tarride, e ‘Noite na Encruzilhada’ (‘La Nuit de Carrefour’), de Jean Renoir, então também grande amigo de Simenon. Abel Tarride, o pai do cineasta, interpretava Maigret. Aliás ambos os filmes, são uma espécie de assuntos de família já que Jean Renoir, escolheu também o seu irmão Pierre para interpretar o protagonista: o melhor Maigret de sempre, aos olhos do seu criador Simenon. Porém, ambos os filmes tornaram-se num enorme fracasso comercial. Por causa disso, amargurado, Simenon insurgiu-se contra o cinema, contra produtores, realizadores, argumentistas, críticos e contra o funcionamento dessa indústria, sobre a qual sentiu de repente, que não tinha qualquer domínio, ao contrário dos seus romances, que como escritor solitário, controlava totalmente.

Lê Também:   C’mon C’mon, em análise



Maigret
‘O Cão Amarelo’ (‘Le Chien jaune’), realizado por Jean Tarride. (1932). ©Les Établissements Petit

Simenon planeou mesmo realizar ‘O Homem Que Via Passar os Comboios’ e até começou a trabalhar na adaptação deste romance ao cinema. Porém, mais uma vez, o mundo do cinema, passou-lhe a perna e acabou por impor-lhe o realizador Julien Duvivier. Simenon, queria que fosse Pierre Renoir, o protagonista, mas foi Harry Baur, uma figura mais pesada, mas de facto mais ao jeito de um ‘Maigret’ dos romances, a interpretar o papel. Curiosamente o argumento ou adaptação feita pelo escritor foi também recusada ou não-utilizada. Irritado e furioso, Simenon durante cerca de sete anos, não quis nada com o cinema. Porém, a partir de 1942, os filmes baseados na obra de George Simenon – romances com ou sem Maigret, como protagonista — foram mais que muitos e raros são os anos das décadas seguintes, sem que pelo menos uma obra de Simenon não fosse estreada ou estivesse em cartaz nas salas de cinema. Albert Préjean foi o primeiro actor que interpretou o comissário Maigret, em três filmes realizados de seguida, durante a ocupação nazi da França, no decorrer da II Guerra Mundial; Charles Laughton foi o protagonista de uma produção norte-americana de 1949, ao passo que o actor francês Michel Simon participou em ‘Brelan d’as’ (1952). Até o actor russo Boris Tenin acabou por ser protagonista de uma produção soviética datada de 1974. Novamente ‘O Homem que Via Passar os Comboios’, um dos mais famosos livros de George Simenon, foi igualmente objecto de uma adaptação ao cinema, num filme de 1953, realizado por Harold French e protagonizado por actores como Claude Rains, Marius Goring ou Anouk Aimée. Porém algumas das melhores adaptações dos romances do comissário Maigret são sem dúvida os filmes, ‘Maigret Tend un Piége’  (1958) e ‘Maigret et L’Affaire Saint-Fiacre (1959), ambos realizados por Jean Delannoy e protagonizados por Jean Gabin.




Maigret
O mais conhecido Comissário Maigret talvez seja o interpretado pelo actor Bruno Cremer. ©Antenne 2

‘A televisão substituiu o cinema’, observou George Simenon numa entrevista de 1971. As séries de televisão, apareceram timidamente na década de 1950, mas acabaram por triunfar na década seguinte, importando o entretenimento diretamente para a casa dos espectadores; o austríaco Herbert Berghof parece ter sido o primeiro Maigret na televisão em 1950, a partir de um episódio retirado de um conto de Simenon; foi seguido pelo norte-americano Luis van Rooten em 1952, pelo canadiano Henri Norbert em mais três telefilmes em 1956 (um em 1964) e sucessivamente pelo inglês Basil Sydney em 1959, o checo Radovan Lukavsky em 1983, e o russo Armen Djigarkhanian em 1987. No entanto, para a maioria dos telespectadores, Maigret vai tornar-se numa personagem familiar graças aos seus vários intérpretes nas várias séries e em países diferentes: entre 1960 e 1963, foi inglês Rupert Davies que participou em 51 episódios; entre 1964 e 1969, foram os neerlandeses Jan Teulings e depois Kees Brusse, durante 17 episódios; entre 1964 e 1972, o italiano Gino Cervi participou em 15 episódios; em 1978, o japonês Kinya Aikawa fez 25 episódios; entre 1992-1993, foi o irlandês Michael Gambon — o futuro Alvo Dumbledore do terceiro filme da saga Harry Potter — durante 12 episódios. Aos olhos de toda uma geração de francófonos, o famoso comissário dos cachimbos  será interpretado por Jean Richard, ao longo de 88 telefilmes, que duraram entre 1967 e 1990. Foi a única série conhecida, a adaptar todos os romances, aos quais se juntaram ainda alguns contos com a personagem de Maigret. Finalmente, e talvez o mais conhecido das gerações mais novas seja o actor Bruno Cremer, que interpretou por cerca de 54 vezes e na perfeição, um maciço Maigret, entre 1991 e 2005. As séries de televisão protagonizadas por Jean Richard (1967/1990) e por Bruno Cremer (1991/2005) foram efectivamente as mais conseguidas; embora Simenon não gostasse da primeira porque Richard não tirava o chapéu quando entrava na casa de uma senhora e como tal não respeitava a outra personagem; a segunda é a mais conhecida e talvez a melhor de sempre, tem a particularidade de ter sido co-produzida com a Finlândia, sendo que alguns dos episódios forma mesmo lá rodados. Estes episódios são exibidos de vez em quando e são recuperáveis em vários canais, por cabo ou plataformas de streaming. Um aspecto importante relativamente a estas adaptações da obra de George Simenon, diz respeito também às memoráveis bandas-sonoras, que acompanhavam os respectivos genéricos das séries: músicas da autoria de Raymond Bernard e Laurent Petitgirard.

Lê Também:   Globos de Ouro 2023 | Lista completa de nomeados



Maigret
Entre 1992-1993, foi Maigret, o irlandês Michael Gambon, o Alvo Dumbledore de Harry Potter. | ©Granada Television

A esta galeria de actores, tão prestigiada quanto cosmopolita, que interpretou o comissário Maigret, juntou-se-lhe recentemente, numa série para a televisão da BBC produzida entre 2016/17, o britânico Rowan Atkinson: um actor quase improvável se apenas virmos nele o atrapalhado Mr Bean. Mas Atkinson é um actor notável — até já fez de uma espécie de 007 — que vem do teatro, cuja sobriedade e sensibilidade demonstram, que conseguiu perfeitamente ter a amplitude necessária, para o registo do carrancudo comissário Jules Maigret. Com esta série da BBC, que teve uma dimensão internacional, um novo público parece ter descoberto Maigret, numa altura em que o escritor George Simenon beneficia igualmente de um certo interesse e de novas edições -traduções dos seus livros, tanto nos países anglo-saxónicos, como até na China. 




Maigret
©France 3

De volta ao cinema — mas sem Maigret estreou em 2014, ‘O Quarto Azul’, um filme de suspense e erótico, realizado e protagonizado por Mathieu Amalric, na secção Un Certain Regard no Festival de Cannes. Agora, o realizador francês Patrice Leconte adaptou ao cinema, com Jérôme Tonnerre, o famoso livro ‘Maigret e a Jovem Assassinada’ e ofereceu ao melhor ator francês da actualidade, Gérard Depardieu a possibilidade de vestir, o pesado sobretudo e o chapéu do comissário Maigret. Além do prazer — dele e nosso — de encarnar o comissário, em toda a sua dimensão psicológica, Depardieu acrescenta-lhe desta vez mais qualquer coisa (ver ‘Maigret e a Rapariga Morta’ em análise). O resultado é um belíssimo filme com uma atmosfera bem à maneira da dupla Simenon-Maigret, que marca além de tudo, a primeira colaboração entre dois grandes artistas franceses Leconte-Depardieu. Quer isto dizer que a rica saga de Maigret está muito longe de terminar.

JVM

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *