Mês em Música | Playlist de Maio e Junho 2020
Nesta Playlist de Maio e Junho aglomerámos as jóias algo raras e esparsas de um mundo musical em desaceleração.
É preciso reconhecer que 2020 se arrisca a ser apagado da memória histórica musical, não apenas por culpa do vírus mas por um daqueles acidentes irredutíveis a qualquer explicação causal. Pura e simplesmente, há anos em que falta a inspiração (seja lá o que isso for) e a paisagem não abunda em genialidade (de novo, seja lá isso o que for). Mesmo assim, nenhum deserto vem sem oásis e no espaço de dois meses foi possível acumular o suficiente para desagravar e consolar uma vida por detrás da máscara, agora que o calor a vem tornar ainda mais incómoda do que já era, precisamente na altura em que mais precisamos dela.
Playlist de Maio | O single do mês
Não foi fácil escolher o melhor single de Maio. Das canções que se destacaram, nenhuma conseguia reivindicar sem margem para dúvidas um lugar entre as melhores do ano. Decidimo-nos, por fim, pela “Muted Gold” dos prometedores Silverbacks, cujo trabalho temos seguido atentamente e por cujo álbum de estreia ansiamos, agora que foi anunciado juntamente com o lançamento deste single.
Os Silverbacks são um quinteto de Dublin, a compor na tradição do pós-punk mais eriçado e angular da cena no wave nova-iorquina, com o seu trio dissonante de guitarras e secção rítmica motorik. Depois de lançar uma série de singles produzidos por Daniel Fox, o baixista dos Girl Band, datando alguns deles já de 2018, a banda recolheu alguns deles para os incluir em Fad, que sairá no dia 17 de Julho pela Central Tones. Este “representa o som de uma banda a tentar fazer sentido de um mundo ruidoso e desconjuntado, que compete pela nossa atenção a cada instante”, “um símbolo do que é tentar absorver o mundo através tanto de momentos fugazes diante de ecrãs como de prolongados e obsessivos períodos de enfoque”, seguindo como estratégia a desconstrução da “cultura pop, em busca de um novo sentido”.
Como bem o acusam os ritmos e a angularidade ainda mais pronunciada do que o habitual, “Muted Gold” adveio de um tempo passado a praticar afrobeat e técnicas de guitarra highlife, “lançando uma luz sobre situações em que as mulheres são continuamente inundadas por conselhos não solicitados”. Este novo single dos Silverbacks revela, uma vez mais, a presença de uma identidade seguramente enraizada no pós-punk, mas ao mesmo tempo flexível, capaz de se estender em inúmeras direcções, todas elas subtilmente distintas e ainda assim co-relacionadas. O virtuosismo e a facilidade mimética, aliados a um carisma inegável, que de novo se vêm aqui são garantia de um álbum de estreia cheio de confiança e de promessa para o futuro. (Maria Pacheco de Amorim)
SILVERBACKS | “MUTED GOLD”
Playlist de Junho | O single do mês
Junho foi mais generoso em geral e a concorrência para o single do mês foi portanto maior. Ainda assim (ou talvez por causa disso mesmo) a decisão final foi mais simples. “Pidgeons” de Bill Callahan abriu o ciclo de promoção do novo álbum Gold Record, encerrando ao mesmo tempo o mês com chave-de-ouro e o ramo de louro no bico.
“Em “Pigeons”, o cantautor interpreta um motorista de limousine. Callahan situa-nos na cidade de San Antonio, no interior do Texas. A faixa abre com o verso “Hello, I’m Johnny Cash”, tornando óbvia a semelhança tanto entre o timbre como a lúdica ironia dos dois artistas. No entanto, “Pigeons” não manterá esse registo jocoso por muito tempo. Ao volante da sua longa limousine branca, a personagem observa e comenta. As letras traduzem uma reflexão da personagem sobre o casamento e o nosso lugar no mundo, despoletada pelos recém-casados que transporta no carro naquele momento. “When you are married, you’re married to the whole wide world” é só um dos versos surpreendentes, o seguinte sempre mais que o anterior, que formam o poema de “Pigeons”. Na faixa, Callahan faz-se acompanhar pelo dedilhar de uma guitarra. No entanto, o instrumental vai muito para além disso. Embora os arpejos dedilhados sejam um motivo que se repete ao longo da canção, por trás deste centro passam cordas e trompetes, entre vários outros sons que dão profundidade sonora à faixa.” (Pedro Picoito)
BILL CALLAHAN | “PIGEONS”
Playlist de Junho | Debaixo d’olho
Influenciados pelo pós-hardcore da década de 90 e início dos anos 2000, em particular Unwound, June Of 44 e os descendentes mais originais dos Slint, os Sprain são um quarteto math-rock originário de Los Angeles, cuja formação data do início de 2018, fruto do vínculo entre o guitarrista Alex Kent e a baixista April Gerloff. O EP de estreia, Sprain, lançado no mesmo ano, é um projecto lo-fi slowcore onde a instrumentação minimalista e os versos carregados de angústia e visceralidade representam o esqueleto do álbum de estreia, As Lost Through Collision, e do single inaugural, “Worship House”.
Comecemos então por apresentar o tão antecipado álbum de estreia dos Sprain: As Lost Through Collision é constituído por cinco canções escritas em casa e refinadas na estrada. A engenharia de som ficou a cargo de Josiah Mazzaschi, proprietário dos estúdios The Cave, e Tim Green (The Nation Of Ulysses) misturou o álbum. O lançamento oficial de As Lost Through Collision encontra-se agendado para 4 de Setembro de 2020, via The Flenser, editora discográfica de São Francisco responsável pela divulgação de vários trabalhos notáveis ao longo das últimas duas décadas, destacando-se a reedição de 2014 do álbum de culto Deathconsciousness da banda pós-punk Have A Nice Life, assim como o lançamento do sucessor, The Unnatural World, em 2012. Sobre As Lost Through Collision, os Sprain comentaram: “Este álbum consiste numa tentativa deliberada de ir além do estilo inicial que experimentámos no último EP e alcançar algo mais único, mais pessoal”.
A audição de “Worship House” reforça a legitimidade desta declaração. O single dos Sprain resulta directamente do evidente empenho da banda em inscrever o seu nome na cronologia da música math-rock e slowcore, recorrendo ao aperfeiçoamento e a uma certa maximização da sonoridade sombria, repleta de desassossego e instabilidade, que nos deram a conhecer em Sprain. O guitarrista Alex Kent esclareceu: “Sinto que a minha abordagem composicional sofreu uma mutação devido a alguns novos desafios mentais, como ansiedade extrema, e as canções definitivamente reflectem isso”. Simultaneamente, “Worship House” revela um bom aproveitamento das virtudes do guitarrista Alex Simmons e do baterista Max Pretzer, que se juntaram ao duo inicial Alex Kent e April Gerloff, tendo em vista o atingimento da excelência sonora e de uma identidade reconhecível, ainda para mais dentro de uma escola musicalmente livre, abstracta, com fronteiras tão difíceis de delimitar, e mesmo assim pejada de imitação cega. “Now raise your arms up to the sky/ At the thought of/ Eternal life, eternal bliss”. Os gemidos exasperados de Alex Kent fazem-se acompanhar das dinâmicas características do pós-rock, guitarras dissonantes e angulares e uma notável potência instrumental conseguida através do feedback dos amplificadores, resultando numa experiência épica e acima de tudo catártica. A cacofonia é ampliada durante o grand finale, muito graças à perspicaz inclusão de saxofones caóticos reminiscentes de Challenge For A Civilized Society.
Para além dos previamente mencionados Have A Nice Life, outros artistas e grupos de culto têm vindo a desenvolver parcerias de longa duração com The Flenser, entre os quais Giles Corey (projecto solo de Dan Barnett, membro dos Have A Nice Life), Planning For Burial e Wreck And Reference. Esperamos que o mesmo possa suceder com os Sprain, cuja sonoridade abrasiva tanto nos entusiasma. À partida, a estética do grupo californiano e a aposta inconfundível da editora discográfica representam uma correspondência perfeita. (Diogo Álvares Pereira)