Sorry (foto de promoção)

Mês em Música | Playlist de Março 2020

Num primeiro mês em casa e de vida online, a Playlist de Março acompanha-nos com a melhor música que o vírus não pôde impedir de sair.

Foi no mês em que entrámos em casa que saíram os primeiros álbuns que nos entusiasmaram. A contingência tem destas coisas e os ventos da história sopraram a nosso favor neste tempo de prova, trazendo o consolo do talento e trabalho humanos cristalizados em obra. Nem todos os artistas escolheram (ou viram-se obrigados a) adiar o lançamento dos seus álbuns, e ainda bem ou ficaríamos sem o nosso álbum do mês. Para vantagem da nossa Playlist de Março, os seus autores ponderaram e decidiram avançar:

Para nós, a ideia de não poder levar o nosso álbum em digressão é triste, mas a COVID-19 é obviamente, de um modo geral, muito assustadora, por isso esperamos que o álbum possa trazer às pessoas algum consolo e conforto nestes tempos árduos e sem precedentes. (Under the Radar)

Uma vantagem vemos neste momento de forçado retiro em casa, suspensos como estão por agora todos os eventos sociais (pelo menos, ao vivo). A quebra das vendas de álbuns em formato físico introduzida pela internet e a necessidade de os artistas apostarem cada vez mais, para sobreviverem, na oferta de música ao vivo levou a um progressivo menosprezo e esquecimento da música de estúdio e do conceito de álbum a ela associado. Mas por agora, se não quisermos abdicar de todo da música, não temos outra hipótese senão ouvi-la nas colunas da sala ou nos auriculares. Verdade seja dita, ouvir concertos dados a partir da sala ou do quarto do músico é um pobre, talvez mesmo patético, substituto daquilo que – admitamo-lo – não podemos ter. É hora de regressar a formas de relação mais exigentes com aqueles e aquilo que estimamos. Não podemos ver as caras de quem nos oferece a sua música, mas quem disse que os olhos são o espelho da alma?

Playlist de Março | Os singles

A escolha do nosso Single do Mês não foi difícil desta vez. Os Braids lançaram uma faixa de proporções épicas, fundindo experimentalismo e fórmula pop, fluindo livremente entre géneros e escapando sempre à fátua pomposidade. Talento para revestir uma sonoridade paciente da imediatez infecciosa da música pop nunca lhes faltou. A garra visceral esteve sempre lá, a borbulhar tensa sob o controlo do artifício. O canto e teatralidade vocal de Raphaelle Standell-Preston vão libertando, devagarinho mas poderosamente, a inquietude, a impaciência, a ira, o desejo e a nostalgia. O single “Miniskirt” do anterior álbum Deep In the Iris, uma das melhores canções da passada década, é exemplo perfeito disso.

E agora, “Snow Angel” revela um amadurecimento de todas essas habilidades, na fluidez com que leva cada uma delas e todas juntas ao limite, sem perder a coesão. Ameaçando despedaçar-se, a cada momento, o diálogo jazzístico da banda vai mantendo todas as componentes unidas, levando a canção para diante até ao seu melancólico desenlace. É um tenso e maravilhoso equilíbrio das forças centrípeta e centrífuga, que enchem de vida esta epopeia de nove minutos.

BRAIDS | “SNOW ANGEL”

No momento em que corremos o risco de não vir a conhecer os Squid ao vivo chega-nos uma das suas melhores canções. Estes recém-chegados à consciência pública, sem nunca terem lançado um álbum sequer, deverão vir ao Paredes de Coura este ano, se o mundo for outro por essa altura. Deverão vir com o seu disco de estreia, se o recente contrato com a Warp for sinal de mais música a caminho e se essa música sair quando deve e não muito depois, quando o mundo for outro. São muitos “se”, hipóteses para já, esperemos que não se transformem em contrafactuais.

Até lá (e porque não sabemos o que esse lá será) ouçamos atentamente este tour de force que é a “Sludge”. Acima de tudo porque nos promete que “There is a place I go where I’m all alone/there’s a place I go where nobody knows/ On my bed, one eye closed/ I’m fixated on the endless glow” e nenhum de nós sabe o que isso é neste momento, certo? Mas também porque ter hoje numa só canção a voz dos B-52s e do James Murphy (que já era a voz dos B-52s), o staccato sincopado das guitarras dos Devo ou dos Talking Heads, a repetição hipnótica dos Can e o pontual alívio melódico do pós-hardcore, tudo a culminar e a dissolver-se numa nebulosa de ruído shoegaze é uma imensa viagem (aqui entre nós, provavelmente bem melhor do que a que lhe deu origem).

SQUID | “SLUDGE”

Talvez só Blake Mills saiba o que quer dizer a expressão “Vanishing Twin”. Bom, talvez nem ele. Mas as imagens vagas e indecifráveis (muito provavelmente apenas absurdas) de que é composta a letra desta canção não precisam de fazer mais nada senão adensar a atmosfera criada pelas notas reverberantes do violoncelo. Ora mais audíveis na mistura, ora recuadas no fundo, aquelas seminímas sustentam esta faixa etérea, cuja sonoridade faz jus a um dos poucos conceitos perceptíveis na letra. As melodias da voz e do sintetizador vão entrando e saindo, ecos e sons percussivos ou ambientais vão envolvendo e abandonando o corpo da canção, o violoncelo larga a sua função de baixo e explode (tanto quanto possível) num solo, até ser substituído por violinos no final.

Se não tivéssemos percebido pela letra (de novo tanto quanto possível) que esta é uma canção de amor – “Concealed between the flashing screens/ There is a beam of love supreme/ That’s where I’ll be, come shine with me (…) I’ll never be/ Without you again” – o instrumental teria sido suficiente, a coda teria posto a boca no trombone. Ou não fosse Blake Mills quem é.

BLAKE MILLS | “VANISHING TWIN”




Playlist de Março | Os álbuns

«É difícil não comparar Saint Cloud com o registo anterior de Waxahatchee, o agitado Out In the Storm, ou ligar as canções do recente álbum ao seu percurso de sobriedade. No entanto, em Saint Cloud procurou falar-nos de coisas banais, voltando às suas origens country e folk. Katie Crutchfield vê a sua decisão como uma porta que possibilitou um novo olhar sobre o mundo e sobre si própria. O registo retrata Katie nesta vida nova, conhecendo-se melhor e acima de tudo à procura de um lugar estável, onde assentar, onde abrandar o ritmo, um lugar onde no seu quotidiano cabem o poético e o literal, ambos exprimindo os sinceros sentimentos de Crutchfield, sejam eles triviais ou reflexões profundas, desde viagens com amigas a uma vida perdida para o vício.» (Waxahatchee, Saint Cloud, em análise, Pedro Picoito)

WAXAHATCHEE | SAINT CLOUD

Playlist de Março | O álbum do mês

«Contrariamente às bandas do Sul de Londres com quem mantêm laços de amizade (Shame e HMLTD), que carregam as influências pós-punk na manga, os Sorry saúdam, de longe, as tradições da música moderna nas quais 925 logicamente se fundamenta e recorrem a uma elevada compreensão do ritmo, melodia e harmonia para imaginar peças estilisticamente camaleónicas e insubmissas às referências do passado. Ocasionalmente, apropriam-se de elementos sonoros e líricos que nos são familiares e que se encontram enraizados na cultura pop (“I’m feeling kinda crazy/I’m feeling kinda mad/The dreams in which we’re famous are the best I’ve ever had” referencia “Mad World” da célebre banda new wave Tears For Fears) em jeito de homenagem patente ou mesmo a rasar a jocosidade e um certo atrevimento.

Do ponto de vista metafísico, estas alusões a eventos reais integrantes da cronologia da música popular permitem-nos situar a narrativa de 925 num determinado espaço e tempo. O universo que os Sorry encapsulam no artefacto de quarenta-e-três minutos torna-se palpável. As personagens defeituosas que o coabitam não são meramente credíveis, mas sim reconhecíveis no rosto dos nossos entes próximos ou, se reflectirmos com humildade, no nosso próprio comportamento. No entanto, paralelamente e na mesma veia de músicos como (Sandy) Alex G, a banda dedica uma considerável porção do disco a explorar o mundo dos sonhos, a imaterial e imperscrutável utopia entranhada no fundo do ser.» (Sorry, 925, em análise, Diogo Álvares Pereira)

SORRY | 925

PLAYLIST DE MARÇO | DESTAQUES DO MÊS

  • U.S. Girls, Heavy Light (4AD, 6 de Março)
  • Snarls, Burst (Take This To Heart, 6 de Março)
  • Disq, Collector (Saddle Creek, 6 de Março)
  • Porridge Radio, Every Bad (Secretly Canadian, 13 de Março)
  • Four Tet, Sixteen Oceans (Text, 13 de Março)
  • JFDR, New Dreams (White Sun Recording, 13 de Março)
  • Ultraísta, Sister (Partisan, 13 de Março)
  • Vundabar, Either Light (Gawk, 13 de Março)
  • Dogleg, Melee (Triple Crown, 13 de Março)
  • Empty Country, Empty Country (Get Better, 20 de Março)
  • Moaning, Uneasy Laughter (Sub Pop, 20 de Março)
  • Sorry, 925 (Domino, 27 de Março)
  • Waxahatchee, Saint Cloud (Merge, 27 de Março)
  • Half Waif, The Caretaker (Anti-, 27 de Março)
  • Nap Eyes, Snapshot of a Beginner (Jagjaguwar, 27 de Março)

PLAYLIST DE MARÇO | SPOTIFY


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