Pormenor da capa de 925 (2020)

Sorry, 925 | em análise

925 pode não ser “prata pura”. Porém, impõe-se, neste início de década, como uma obra concebida por legítimos inovadores. O que, só por si, já é um feito notável.

Ouvimos a envolvente melodia no piano e o saxofone que tão devotadamente a acompanha e somos de imediato introduzidos num espectáculo decadente, tingido pelo erotismo e narcotismo poético de Les Fleurs du mal de Charles Baudelaire. Se no título da obra literária gaulesa detetamos uma oposição entre os símbolos de pureza e fragilidade frequentemente associados à palavra “flor” e a conotação negativa do “mal”, então a integração da voz imaculada de Asha Lorenz no cenário libertino habilmente fabricado através da instrumentação reflecte contraste semelhante. A sonoridade jazzística recebe, de braços abertos, a revelação preambular da vocalista dos Sorry: “I go to the same spot every night/Wanna get in your head you just want to get out of it”.

Se escutarmos com atenção os primeiros versos de “Right Round The Clock”, o potente tema de abertura de 925 e single inaugural do disco de estreia da banda londrina, rapidamente pressentimos a narrativa que se avizinha (a arte de capa de péssimo gosto dá uma ajuda): a cândida flor, aliciada por más companhias, miragens de etanol e desejos efémeros, despetala-se no veludo encarnado dos bancos altos dos bares e posteriormente nos aposentos de desconhecidos, tudo em nome de falsas promessas de amor e do desgosto que delas deriva.

Verdade seja dita, o ecletismo sonoro, alimentado por soluções criativas e ousadas e, simultaneamente, unificado pela atmosfera surrealista e de saliente veia cinematográfica, é mesmo a principal valência do trabalho dos Sorry. Todavia, 925 exibe-se na sua máxima plenitude sempre que esta sonoridade multifacetada é colocada ao serviço das letras, expondo com êxito a enchente de emoções que vocábulos isolados tendem a simplificar e convertendo a (aparentemente) vulgar história de perda da inocência e ciclos viciosos de autodestruição numa experiência única, particularmente expressiva e que nos deixa excelentes indicações do que podemos esperar da banda a curto prazo.

SORRY | “RIGHT ROUND THE CLOCK”

Tal como vários outros grupos indie no Reino Unido, os Sorry, dupla constituída pelos amigos de infância Asha Lorenz e Louis O’Bryen (o baterista Lincoln Barrett, o baixista Campbell Baum e o teclista Marco Pini juntaram-se ao projecto posteriormente), começaram por divulgar mixtapes e demos no Bandcamp, acabando por convencer a editora discográfica Domino a assinar contrato e a promover a evolução da sua música experimental, até ao momento restringida a métodos de gravação de baixa fidelidade e ao talento natural do duo: “Nós queríamos fazer música interessante e envolvente e isso levou-nos a abraçar diversos géneros que nos cativavam. Porém, também pretendíamos conservar a sonoridade coesa que despontava naturalmente. No passado, efectuámos muitas experiências com canções e sons no computador. Porventura essa abordagem abriu espaço às nossas canções para soarem de modo peculiar” (Louis O’Bryen, Under The Radar).

Contrariamente às bandas do Sul de Londres com quem mantêm laços de amizade (Shame e HMLTD), que carregam as influências pós-punk na manga, os Sorry saúdam, de longe, as tradições da música moderna nas quais 925 logicamente se fundamenta e recorrem a uma elevada compreensão do ritmo, melodia e harmonia para imaginar peças estilisticamente camaleónicas e insubmissas às referências do passado. Ocasionalmente, apropriam-se de elementos sonoros e líricos que nos são familiares e que se encontram enraizados na cultura pop (“I’m feeling kinda crazy/I’m feeling kinda mad/The dreams in which we’re famous are the best I’ve ever had” referencia “Mad World” da célebre banda new wave Tears For Fears) em jeito de homenagem patente ou mesmo a rasar a jocosidade e um certo atrevimento.

Do ponto de vista metafísico, estas alusões a eventos reais integrantes da cronologia da música popular permitem-nos situar a narrativa de 925 num determinado espaço e tempo. O universo que os Sorry encapsulam no artefacto de quarenta-e-três minutos torna-se palpável. As personagens defeituosas que o coabitam não são meramente credíveis, mas sim reconhecíveis no rosto dos nossos entes próximos ou, se reflectirmos com humildade, no nosso próprio comportamento. No entanto, paralelamente e na mesma veia de músicos como (Sandy) Alex G, a banda dedica uma considerável porção do disco a explorar o mundo dos sonhos, a imaterial e imperscrutável utopia entranhada no fundo do ser.

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Em “In Unison”, segunda faixa e deep cut de 925, Asha Lorenz lamenta a impossibilidade dos seus devaneios não poderem assumir um estado físico e serem decifrados por todos aqueles que a rodeiam, os julgadores e inflexíveis. Perdida nos seus pensamentos, a vocalista automartiriza-se por repetidamente optar por percorrer a via do hedonismo, esquivando-se do sofrimento que, a longo prazo, nos aproxima do encontro com a verdade.

Ao mesmo tempo, o primeiro contacto com a evocação do inevitável final da vida (“One day we’re here/One day we die”) leva-nos a crer que, mais uma vez, nos encontramos perante um artista emaranhado em dúvidas existenciais e inclinado para uma corrente rudimentar de niilismo, descobrindo aqui um momentâneo porto seguro e uma desculpabilização para as decisões que se arrepende de tomar (ainda assim, diferenciado pelos audaciosos intervalos de consonância e dissonância das cordas, a batida vagarosa e a cacofonia que, eventualmente, floresce na canção, favorecedoras da atmosfera de desorientação e ansiedade). Chegado o refrão melódico, Asha Lorenz faz questão de nos refutar: “When will you get round/To doing what you’re supposed to?”. Num gesto de sensatez, a vocalista desperta do sono profundo e demonstra ter plena consciência de que o tempo despendido a vaguear entre meditações acabará por se reflectir em estagnação anímica caso não agarre a vida pelo “colarinho” e a enfrente com bravura.

SORRY | “IN UNISON”

A imaturidade inerente à juventude incrementa a procrastinação e o quarteto de canções que sucedem “In Unison” fazem-nos questionar se a personagem de 925 conseguirá juntar forças para levar a cargo uma transformação de espírito, através da rejeição da tentação e derivada recuperação da dignidade. As contradições, empregues com uma boa dose de ironia e autodepreciação, flutuam como nuvens por entre faixas.

Os detalhes resultantes de um trabalho conjunto entre instrumentação e produção moderna, como os pratos de choque trap vagamente reminiscentes do sibilar de uma serpente em “Snakes” ou as exclamações de repugnância que antecedem “And you did it again” no refrão da dançável “Starstruck” intensificam o reconhecimento da nocividade de um relacionamento passado. O processo de aprendizagem que todos os vínculos afectivos acarretam, a preservação na memória de uma fase agora findada onde a dedicação das partes envolvidas seria mútua ou a superficialidade própria de uma chama inicial que depressa se apaga são destacados. Por outro lado, “Rosie” e “Perfect” trazem ao de cima uma pueril faceta, cegada por inveja, que culpabiliza o outro pelos seus próprios vícios e pela avidez que a sucumbência involuntária expõe: “It’s your choice/You know where the door is/Just know I adore you/D’ya know I adore you? (Pick it up and pack it in)”.

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Tamanha inconsistência emocional torna-se frustrante e, enquanto atentos ouvintes, tendemos a apontar o dedo. Fazemo-lo porque somos igualmente imperfeitos. Atormenta-nos a ideia de que almas forasteiras nos possam desmascarar assim, tão subtilmente. Deslumbra-nos a percepção de que a complexidade de uma forma de arte é equivalente à da vida e que, consequentemente, todas as composições carreguem em si a “redacção do inexprimível, a fixação do vertiginoso”, pelas palavras de Arthur Rimbaud.

Os agridoces harpejos e progressões de acordes de “As The Sun Sets”, que trazem à memória uma fase transitória, decorrida durante a segunda metade da década de noventa, da visceralidade e apreço pela distorção da música grunge para o tom menos abrasivo e mais radio-friendly do pós-grunge, relembram-nos que coexistimos num mundo belo, em última instância manchado não pelos erros que cometemos, mas sim pela arrogância que nos impede de admiti-los como verdadeiros ou, por outro lado, perdoá-los. O apoderamento das letras de Louis Armstrong enfatiza a admiração por toda a matéria que toca a linha do horizonte, eventualmente sumindo do campo de visão e perdurando sob o formato de recordação: “Then I think to myself/What a wonderful world”.

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“Wolf” e “Rock ‘n’ Roll Star” repescam o tema da luxúria e do desejo fugidio, cedendo-lhe contornos alternativos: na oitava faixa, as melodias vocais lânguidas de Asha Lorenz mergulham numa explosão espaçada de vibrações penetrantes e a sedução é equiparada a uma caçada, ao instinto animal e à sede de sangue. Já na canção seguinte, os instrumentos de sopro, o chiar da guitarra à la Thurston Moore e as características harmonias pop dos refrões das canções dos Sorry coloram, em matizes hollywoodescas, um conto sobre ambição de fama e sucesso que, tal como “National Anthem” de Lana Del Rey, termina em miséria, exposição de fraudes e, finalmente, eterno remorso.

A modulação de voz de Louis O’Bryen infiltra-se regularmente na mistura ao longo do disco, criando harmonias e discordâncias com Asha Lorenz, ora personificando o demónio de Nick Cave a que fomos apresentados com The Birthday Party, recorrendo a um barítono profundo (sendo “Rock ‘n’ Roll Star” um dos melhores exemplos), ora cantando notas agudas que lhe possibilitam a divisão da amargura com a parceira de banda.

SORRY | “WOLF”

Repleto de surpresas na manga, voltas e reviravoltas, 925 esconde nas suas últimas faixas, pura e simplesmente, o rosto franco de Asha Lorenz. (Parcialmente) despida de sarcasmo, transparente como nunca e vulnerável como sempre, descobrimos em “Heather” a canção mais intimista do álbum. Folk-pop deleitável, construindo à volta de uma cantautora e a sua guitarra acústica, na companhia do baixo e bateria que compassam a peça e revezando com Louis O’Bryen os versos confessionais, ocasionalmente unindo-se em harmonias vocais delicadas.

Esta busca por uma forma de amor que, por exigir dor e fadiga, não culmina no desfazer do humano ou em solidão, mas sim no almejado concílio com respostas a questões outrora indecifráveis, atinge o seu clímax em “Ode To Boy” (previamente interrompida pela pouco inspirada e mecanizada “More” – canção puramente catártica que aborda, mais uma vez, o tópico do pecado, sem reter em seu poder as qualidades idiossincráticas de outras faixas – e precedida por “Lies (Reflix)”, um testemunho de afeição trip-hop aos Portishead). Um admirável corpo estranho no contexto do álbum, dotado de sonoridade angelical e optimizado por um coro de vozes, que guarda em toda a sua graciosidade o poder da redenção e autênticos rasgos de esperança. Um derradeiro grito pela verdade injectado na estrutura de 925, proferido a plenos pulmões e isoladamente concretizado.

SORRY | “ODE TO BOY”

Na mesma veia das samples tão perspicazmente integradas em 925, aproprio-me agora de uma citação de Asha Lorenz para reforçar a minha posição favorável relativamente àquele que, a meu ver, é o primeiro grande disco de 2020: “Na verdade, [925] é uma alusão a prata esterlina, que consiste em 92.5% de prata pura. Queríamos um título abstracto, com diferentes significados para nós. Assinala o primeiro álbum que fizemos, mais ousado e superior a qualquer outra coisa que criámos no passado. Mas não é prata pura”. Pode não ser “prata pura”, mas impõe-se, neste início de década, como uma obra concebida por legítimos inovadores. O que, só por si, já é um feito notável.

Sorry, 925 | em análise

Name: 925

Author: Sorry

Genre: Post-Punk, Noise Rock

Date published: 27 de March de 2020

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  • Diogo Álvares Pereira - 85
85

Um resumo

Contrariamente às bandas do Sul de Londres, que carregam as influências pós-punk na manga, os Sorry saúdam, de longe, as tradições da música moderna nas quais 925 logicamente se fundamenta e recorrem a uma elevada compreensão do ritmo, melodia e harmonia para imaginar peças estilisticamente camaleónicas e insubmissas às referências do passado. O álbum de estreia dos Sorry pode não ser “prata pura”, mas impõe-se, neste início de década, como uma obra concebida por legítimos inovadores. O que, só por si, já é um feito notável.

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