Mês em Música | Playlist de Março 2019

A Playlist de Março soa ao mundo em espera. Álbuns muito aguardados saíram, final da história. Um ou outro single sugere que lá para a frente há mais.

Este foi um mês em que os álbuns dominaram, mas também já sabíamos isso, certo? Há muito que esperávamos a vinda de tanto do que aqui recomendamos. Mais ou menos à altura do que os seus singles prometiam, a verdade é que a maior parte conseguiu um lugar na nossa Playlist de Março, deixando pouco espaço para os temas do que ainda está para chegar ou só foi anunciado este mês. Não que fizesse falta, porque, convenhamos, o mundo deve estar à espera da Primavera para pôr a cara cá fora. Ainda assim, uma ou duas esperanças despontaram que enchem o futuro de prospectiva.

Entre a acalmia do desenlace das várias histórias que iam terminando, semana após semana, e a inércia dos singles que iam surgindo, avulsos, colaborações, covers, ou só mesmo descoloridos, algumas surpresas animaram o fim do Inverno. O tão esperado álbum da Solange caiu do céu, com filme e tudo, logo no primeiro dia do mês. Esta foi boa. Scott Walker morreu. Esta não. Ainda estamos de luto por uma lenda e já outra desapareceu. Um dos grandes barítonos da música pop deixa atrás de si um legado histórico na forma tanto da série de pop barroco Scott (1967), Scott 2 (1968), Scott 3 (1969) e Scott 4 (1969) – este último o primeiro a exibir apenas material original – como da sombria trilogia de música de vanguarda Tilt (1995), The Drift (2006) e Bish Bosch (2012). Em certo sentido, o seu percurso foi semelhante ao de Mark Hollis: o cantor de uma banda pop, neste caso os Walker Brothers, transforma-se progressivamente num compositor de música experimental, operática e atonal. Mas se o primeiro nos leva até ao Paraíso através do êxodo, já o segundo não nos poupa, qual Virgílio a Dante, o mergulho no abismo dos infernos.

Scott Walker - Mês em Música - Playlist de Março
Pormenor da capa de Scott Walker

Playlist de Março | Os singles

Desta vez não houve dúvidas sobre qual seria o melhor single do mês. “Movies” de Weyes Blood reina incontestável nos nossos corações e na Playlist de Março desde o primeiro instante em que a ouvimos. Os anteriores singles “Andromeda” e “Everyday” alcançaram sem problemas um lugar nas listas de Janeiro e Fevereiro, respectivamente, mas o mais recente tema saído de Titanic Rising, que já pode ser ouvido na totalidade aqui na NPR, arrasou com a concorrência e chegou até ao topo, saltando por cima da faixa por nós escolhida para representar o álbum do mês. Não há outro lugar para esta canção numa lista, seja ela qual for, que não seja o de abertura. Assim que a ouvirem perceberão imediatamente porquê.

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Num andamento lento, mas subliminarmente agitada por linhas de sintetizadores, a melancólica e desejosa melodia vocal exprime, num crescendo contínuo, a relação contraditória de Weyes Blood com o cinema e as suas ilusões. Por um lado, o fascínio do amor tal como surge nos ecrãs, a promessa de uma aventura tão convincente nesta forma de ilusão que “there’s no books anymore”. Weyes Blood não consegue negar o poder que todos estes fantasmas tiveram na sua educação: “Why did so many/ Get a rise out of me?/ I love the movies”. Por outro lado, diz-lhe a razão que, na sala escura, é por simulacros que nos apaixonamos, vivendo os sentimentos daqueles que não existem. Uma suspeita de que a vida não valha realmente a pena lateja no interior de toda esta prática: “The meaning of life doesn’t seem to shine like that screen” e “the movies I watched when I was a kid/ the hopes and the dreams/ don’t give credit to the real things”.

Um estridente violino, alusivo do seu interesse por música clássica, logo acompanhado por uma inesperada, agressiva percussão, retira-nos da flutuante e dulcificada textura, onde qual placenta cinematográfica estivemos imersos até então, para nos introduzir na coda da canção. Nela, a voz explosiva de Weyes Blood resolve a contradição, exigindo uma glória tão ou mais intensa do que a prometida pelos desejos de luz projectados na tela mas vivida na carne real de que é feita: “I wanna be in my own movie/ I wanna be the star of mine/ of my own”.

WEYES BLOOD | “MOVIES”

Pressente-se a sombra do Nick Drake de “One of These Things First” ou “Northern Sky” nos acordes dedilhados e nas inflexões vocais de Bedouine, neste primeiro single do seu próximo álbum Bird Songs of a Killjoy. Mais ainda se faz sentir esta introvertida lenda folk nos sentimentos mastigados, mitigados e transfigurados na quietude da alma reflexiva de Azniv Korkejian. Bedouine guarda em si e para si um amor que, por amor, deixou ir embora, segundo o desígnio de uma liberdade que não lhe pertence. Embora “para si” talvez não seja exacto, já que as entranhas do drama vão-nos sendo reveladas, em murmúrios pacíficos, que se adivinham contudo dolorosos, nas duas canções do álbum divulgadas até agora. Qualquer uma delas merecia um lugar na Playlist de Março. É verdade que optámos por “When You’re Gone”, mas nada impede de ouvir “Bird”, ao soar do último acorde deste vídeo.

BEDOUINE | “WHEN YOU’RE GONE”

“End of World Party” é o quarto single retirado do segundo álbum dos HÆLOS, Any Random Kindness, que será lançado no dia 10 de Maio pela Infectious, seguindo-se a “Buried in the Sand”, “Kyoto” e “Boy/Girl”. Destas canções incluímos as duas últimas, respectivamente, nas nossas Playlists de Janeiro e Fevereiro e, a bem dizer, qualquer uma das três é mais merecedora de destaque do que o actual single. Mas já era tempo de chamar a atenção para este álbum de trip-hop ardente e dançável, que, a julgar pelo que dele ouvimos, ainda há de marcar presença na nossa lista de melhores álbuns de 2019.

Haelos - Mês em Música - Playlist de Março 2019
HÆLOS (© Jeff Hahn)

Originalmente um trio com o álbum de estreia, Full Circle, lançado pela Matador em 2016, os HÆLOS contam agora, para além de Arthur Delaney, Dom Goldsmith e Lotti Benardout, com Daniel Vildósola, que de apenas mero membro da banda de digressão passou a contribuir para a composição das canções, figurando já no novo álbum. Entretanto, os britânicos assinaram com a Infectious Records, com Any Random Kindness a ser produzido por Orlando Leopard e gravado nos Baltic Studios, em East London, e no estúdio doméstico da banda. A mistura ficou a cargo de Matt Wiggins (Glass Animals) e Marta Salongi (The xx). Segundo um comunicado de imprensa, o disco reflecte a tensão das relações na banda:

A parte final da gravação foi especialmente tensa, com muitas ameaças de rotura. Mas este processo levou a uma nova, mais optimista percepção uns dos outros e a música que explora o afastamento e a atracção nas relações. Surgiu uma orientação nova, crescentemente dançável, da sua sonoridade.

O álbum começa a esboçar-se, confirmando a descrição que dele fizera a banda num comunicado de imprensa, como um comentário sombrio à nossa era, à “natureza isoladora da tecnologia e das redes sociais, iminente alteração climática, relação entre eles e corrupção política”. O título de “Buried in the Sand”, que surgiu por acaso, “resumia perfeitamente o quão incongruente e desnaturado pode ser o nosso desaparecimento num mundo digital”. “Kyoto” pretende ser uma crítica de “políticos que privilegiam a economia sobre o ambiente” e “Boy/Girl” descreve “a rotura de uma relação na era digital e o recuo para a zona de conforto da tecnologia, a conversa entre um rapaz e uma rapariga impregnada de sentimentos de tristeza e frustração pela sua incapacidade de comunicar.” O desconforto humano diante destas circunstâncias talvez não seja novo, mas é sempre novo que alguém o sinta. O mais recente single alivia a tensão e a seriedade de todo o empreendimento, porque afinal “em última instância, somos todos humanos, precisando muitas vezes de desligar as notícias e aproveitar o momento.”

HÆLOS | “END OF WORLD PARTY”




Playlist de Março | Os álbuns

Não há dúvida que placeholder de Hand Habits é um daqueles álbuns especiais, que perduram na memória uma vez ouvidos e há muito que antevíamos a sua triunfante inclusão na Playlist de Março. Não há nada de temporário (apesar do título) neste conjunto de canções, bem pelo contrário. A doçura e agradabilidade das melodias e do seu andamento são enganadoras. Nada há nelas de fácil ou imediato, sendo preciso tempo e rotações até se poder chegar a cantarolar, distraídos, alguns dos seus trechos. Mas uma vez ouvido o álbum vezes sem conta, cada nota, cada tema soa terrivelmente, dolorosamente familiar. O arranque de cada canção emerge distinto do resto do cosmos, igual a nada senão a si próprio. Não só a identidade, mas também o espectro sentimental das melodias e das inflexões da voz são aqui impercetivelmente inesquecíveis. Uma plangência nunca chorosa, nada melodramática, antes ruminada e reconfigurada até ao limite da reinvenção interior, caracteriza os melancólicos devaneios de Meg Duffy, que nos conquistam na sua apenas aparente tranquilidade.

E, contudo, é precisamente esta reconfiguração interior que nos lança dúvidas sobre a autenticidade do sentimento amoroso expresso em placeholder. Apesar de alguns relâmpagos da mudança de si trazida pelo outro (“Because of you I’m capable of more”), inegável sinal da realidade de alguém a existir e a palpitar, distinto, fora da própria mente, a descrição de tudo como distanciados rumores (“words I couldn’t comprehend/ as a thousand years of feedback”), até já só se ver, em vez de ouvir, o outro falar (“she speaks clearly, tongue against her teeth”), deixa-nos na incerteza de que haja, no final, mais alguém nesta história. Não se trata, neste caso, da prerrogativa do poeta de conseguir que só a sua versão dos factos seja conhecida. Mas da estranheza de, quando somos todos pecadores e as culpas tendem a ser de parte a parte, ouvir alguém conceder o seu perdão ao outro em vez de lho implorar. Perdão por ter destruído a imagem que sobre ele se projectara: “Jessica, I forget you shattered my reality/ I forget, I do, I do forgive”. No final, temos só “the fire of my desire”, onde tudo, em vez de se forjar e crescer em límpida e irredutível nitidez, antes se funde e dissolve, numa derrocada rumo à indiferenciação: “I lost my identity inside of you, I guess we were the same”.

HAND HABITS | PLACEHOLDER

Pode ser que Miss Universe de Nilüfer Yanya não seja um título tão despropositado quanto parece à primeira vista (se bem que a insolência não passa, claro, de ironia). Alguém aqui arrisca-se seriamente a ter o mundo inteiro rendido a seus pés, jogando-se tudo na fortuna destas canções quando saltarem do que aparenta ser um grande álbum de estúdio para os palcos inclementes dos festivais. Construções delicadas, onde o máximo é retirado de cada mínimo que se oferece, cada uma destas canções se desenha como um percurso inesperado e contorcido, tão envolvente quanto a narrativa tensa que articulam no seu todo e só os interlúdios aliviam, mesmo se um pouco distrativos e imotivados.

Nilufer Yanya - Mês em Música - Playlist de Março 2019
Nilufer Yanya

O diálogo assertivo entre a guitarra minimalista e a voz soul de Nilüfer Yanya; a sua poderosa dinâmica de ruído e silêncio, cheia de tensos crescendos; a cadência e as inflexões da voz que se vai encaixando surpreendentemente na textura do instrumental – com cada sílaba ora a fugir, ora a contornar, ora a antecipar, ora a sublinhar, mas sempre a superar vitoriosa e intensa os obstáculos oferecidos pelas notas das guitarras, dos teclados e da bateria, que vêm inesperadas de todos os lados; a fascinante oscilação entre a batida poderosa do punk e a música soul fortemente sincopada; tudo isto constroi uma versão de pop/r&b que se infiltra insensivelmente quanto mais se ouve, aumentando em estranheza a cada audição, a cada novo reparo.

“What a mess I’ll be” sintetiza tanto a musicalidade, no seu caos controlado, quanto ao teor do lirismo de Miss Universe. É a confusão de uma relação que, volvendo e revolvendo sobre si, esboroando-se na tensão de pólos a atrair e repelir-se continuamente, conhece a tragédia do fim: “We’re moving on now/ And ain’t it sad?/ Giving up now, giving up all our love/ I guess it’s just too bad”. Em versos que (lá está) confusamente oscilam um mesmo conteúdo semântico entre variáveis e instáveis pronomes de primeira e segunda pessoa, Nilüfer Yanya clama por uma salvação que não chegou: “Game over, I’m/ Heartbroken/ I gave you up”.

NILÜFER YANYA | MISS UNIVERSE

Playlist de Março | O álbum do mês

Como tem sido justamente apontado, a arte de capa do mais recente American Football, o terceiro da série e o primeiro da nossa Playlist de Março, comunica uma mudança de direcção, dentro de uma identidade que se mantém, apesar de tudo, sempre a mesma e sempre inconfundível. Foi-se a casa (“the further I get from home”) e eis-nos nos nebulosos e difusamente coloridos exteriores, a meio caminho de uma vida cada vez mais “uncomfortably numb”, onde tudo é cada vez menos óbvio e a grande pergunta é sobre a vantagem de viver sem que os nossos actos deixem feridas e cicatrizes por esse mundo fora: “How will I exist/ Without consequence?” A indefinição e a névoa que contemplamos na capa tanto evoca o florescido travo a dream pop do novo álbum, confirmado pela voz de Rachel Goswell, como alude à sábia erosão das categóricas linhas em que a juventude espartilha a existência.

O jogo de guitarras dos American Football reaparece, continuando a tecer intrincadas malhas polifónicas, mas longe estão agora os laivos slowcore, à Codeine ou Red House Painters, que ainda se faziam sentir tão recentemente quanto em 2016, no segundo registo. Vivendo menos do diálogo entre os instrumentos e mais das malhas em si, bem como da forma das canções, as melodias em American Football (LP3) são mais emotivas, os arcos mais redondos e a atmosfera mais envolvente, o lamento da voz almofadado e intensificado pelos sintetizadores. No centro de uma sonoridade homogénea (cujas subtis variações em torno dos mesmos temas pedem audição repetida), o drama é outro, na esteira dos assuntos aflorados no anterior LP. Pela voz de Kinsella, casado há quase vinte anos com uma professora de liceu e dois filhos para levar à escola, são os desafios da maturidade que entram agora em cena. As dores e alegrias, as culpas desculpáveis e indesculpáveis, cada limite que emerge no “forever” de uma relação com um outro, radicalmente, quase imperdoavelmente, distinto de si próprio, evocado pelas vozes femininas que Kinsella convidou a entrelaçar na sua.

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Correndo o risco de heresia diante da devoção que rodeia o clássico disco de estreia, diria que este álbum revela uns American Football mais únicos e carismáticos, não tanto devedores do seu passado quanto do seu intrínseco talento e em total sintonia com a sensibilidade do presente. Como reverberam verdadeiras certas reflexões sobre o humano em si, pungente a perplexidade diante do “allure of inconsequential love”, dolorosamente cómica a queda naquilo mesmo contra o qual ingenuamente se revoltara na juventude, num conhecimento progressivo da própria inépcia e falibilidade: “I blamed my father in my youth/ Now as a father, I blame the booze”. Mas nesta estrada de humilhação de si mesmo, é o outro que esplende na sua quotidiana rotina: “I miss you like a past life/ I can’t remember if/ You were ever mine to miss (…) I’ll miss you in the next life”. Com o passar do tempo “there is more of you in me” e nada há de tão interessante quanto ser visto, trazido à existência pelo olhar do outro: “Just the thought of being seen is more than I can take/ I never met a mirror that I couldn’t break”. Quem disse que o rock não podia ser a música dos que crescem e sobrevivem?

AMERICAN FOOTBALL | AMERICAN FOOTBALL 3

PLAYLIST DE MARÇO | DESTAQUES DO MÊS

  • Hand Habits, placeholder (Saddle Creek, 1 de Março)
  • Solange, When I Get Home (Saint Records/ Columbia, 1 de Março)
  • Dave, PSYCHODRAMA (Neighbourhood, 8 de Março)
  • Helado Negro, This Is How You Smile (RVNG Intl., 8 de Março)
  • Stella Donnelly, Beware of the Dogs (Secretly Canadian, 8 de Março)
  • Karen O & Dangermouse, Lux Prima (BMG, 15 de Março)
  • American Football, American Football (LP3) (Polyvinyl, 22 de Março)
  • Nilüfer Yanya, Miss Universe (ATO, 22 de Março)
  • These New Puritains, Inside The Rose (Infectious, 22 de Março)
  • La Dispute, Panorama (Epitaph, 29 de Março)
  • Laura Stevenson, The Big Freeze (Don Giovanni, 29 de Março)
  • Fennesz, Agora (Touch, 29 de Março)

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